quarta-feira, 2 de janeiro de 2002

"Não são versos que irão esquentar esse teu coração de gelo"

Passando alguns de meus escritos de 2001 para o computador (não se preocupem, não vou mandar essas tralhas para o Psicusp), deparei com um poema – não muito otimista, diga-se de passagem – em que eu fazia (tentava, ao menos) um "auto-retrato". O poema terminava com o verso que dá título a esta crônica. Se eu procurasse um pouco mais, encontraria outros textos "auto-retrato" – mesmo sem a deliberada intenção – escritos em outras datas, trazem outras idéias.
Fosse eu um pintor, desses de antigamente, quando não existia máquina fotográfica e as pinturas substituíam-na (acho que é o estilo rococó), e pintasse um auto-retrato em janeiro e outro em dezembro, pouquíssimas diferenças haveria. E se em janeiro eu tivesse feito um auto-retrato de palavras, tentando me descrever, será que o de dezembro sairia parecido? É bem provável que se o tivesse feito uma semana após o primeiro, as diferenças seriam sensíveis. Não que o texto de dezembro seja antagônico ao de janeiro, mas seria preciso garimpar muitas das semelhanças.
É interessante isso, de não temos uma auto-imagem formada. Conseguimos, com muito esforço, traçar algumas linhas mestras de quem somos. Linhas estas que depois de um esforço ainda maior, ou por um golpe de sorte – ou azar, dependendo da óptica da pessoa – podem se mostrar falsas.
Ter auto-conhecimento pleno só me parece possível para aquelas pessoas que se isolam completamente do mundo, e passam a viver de meditação, batata e neve derretida. Todavia, nós vivemos uma cegueira quase total a respeito do "quem sou eu". E se somos assim conosco, como não seremos em relação ao outro? O bombardeio que sofremos da indústria cultural, a influência do meio, dos amigos, acabam por tornar essa tarefa de separar o "o que sou" do "o que pareço ser" ainda mais difícil.
Difícil mas não impossível. Embarcar, todo início e todo fim do dia, na nossa canoa solitária e partir, rio acima, em busca da terceira margem do rio (como dizia Guimarães Rosa), pode não nos levar à plenitude do auto-conhecimento, mas com certeza, se feito com sinceridade, nos mostrará muito do que somos, e sequer imaginávamos.
Para aqueles que partem nessa viagem, coragem. Muito do que se encontra pelo caminho é desagradável, é doloroso. A vontade que se tem é de voltar à nossa vida de superfície.
E quais vantagens se arriscar assim traz? Apenas duas: a melhor compreensão e melhor convivência consigo e com o próximo. Se você acha que existe coisa mais importante que isso – um salário de um milhão de dólares, talvez – seja feliz, tente comprar uma noite de sono em paz sem efeitos colaterais.
Falei, logo acima, que os amigos tornam a busca por nós mesmos mais difícil. Depende, entretanto, da relação com esse amigo. E era mais ou menos sobre isso que eu queria falar quando comecei a escrever. Fica para a próxima crônica.

Pato Branco, 02 de janeiro de 2002

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