domingo, 24 de março de 2002

Quem se adapta a quem

Estava eu, dia destes, a conversar com uma amiga, e ela me comentou de certa dificuldade que tinha em lidar com um objeto de uso quotidiano deste nosso admirável mundo novo. Já havia reprovado em um vestibular por causa disso, disse ela. Perguntei-lhe porque não trocava tal objeto por um outro modelo, mais moderno, de mais fácil leitura. A resposta que recebi foi-me um tanto desconsertante: "Eu que tenho que me adaptar ao mundo, e não ele a mim". Desconsertante tanto que somente hoje, quase um mês depois, consegui atinar um raciocínio a respeito.
É interessante notar como no mundo atual nós acabamos por nos adequar ao mundo, mesmo quando parece ocorrer o inverso. Por exemplo: lançaram o computador e o editor de texto, que permite que você, no seu texto, apague, recorte, cole, selecione, sublinhe. É a tecnologia servindo ao homem! E hoje, para escrever qualquer coisa, qualquer recado, você usa o super editor de textos de seu computador; que é totalmente dispensável caso você tenha à mão lápis e papel (com a vantagem que estes podem ser levados para qualquer lugar e não necessitam tomada nem para recarregar). Argumentar-se-á (ó!) que com o computador economiza-se tempo. Como contra-argumento, sugiro a crônica da psicanalista Anna Veronica Mautner "E o tempo corre", publicada na Folha de São Paulo do dia 24 de janeiro de 2002.
São inúmeros os exemplos de situações em que somos forçados a nos adaptar ao mundo que os homens constroem; e nos adequamos a ele com aquele sorriso, crente de que dominamos a situação.
Entretanto, a propaganda do Sistema de que devemos fazer o mundo se adaptar a nós não se refere ao mundo social, apenas às quinquilharias. Quando se trata de discutir as desigualdades, a pobreza, a ordem é aceitar as coisas como são (estão), é se adaptar ao mundo, sem reclamar, sem questionar. É o que a maioria faz. Aceita as injustiças como algo natural; impossível, inútil tentar mudar.
Acredito que nosso conformismo em nos adaptar ao mundo é devido, primeiro à impressão de que quem se adapta é o mundo, e segundo porque estamos habituados a isso: fomos desde pequenos condicionados a agir e pensar assim. Não seja impossível mudar tal hábito. O mais difícil é notá-lo. Depois é uma questão de disciplina para podermos ser outro no lidar com o mundo.

Campinas, 24 de março de 2002