quinta-feira, 8 de agosto de 2002

Mangá humano (ou eua made in China)

Tem dias em que abrir os olhos para a manhã que nasce, simulando um renascimento que nunca ocorre, me desgasta. O mundo me amedronta, as pessoas me deprimem, a sociedade me enoja, a vida me cansa. Desculpem a fraqueza e, principalmente, a sinceridade do escriba. A sinceridade é uma desvio de conduta de presença considerável em nossa sociedade, que eu, a duras penas, tento corrigir. Quanto a fraqueza, não sei se é algo inato ou aprendido, e tampouco me interessa saber de quem é a culpa, se de Deus, minha ou dos meus pais; interessa que desde que me conheço por gente tenho essa nuvem pairando sobre minha cabeça, às vezes maior, às vezes menor, mas sempre grande o suficiente para inibir qualquer ação realmente útil de minha parte.

Chega de reclamar da vida, porque, dizem, vida é só uma. Dado que discordo, por ser um, um número catastrófico demais. Pelas minhas contas, o que chamamos de vida, cerca de 10% da população deve ter; os outros 90% têm apenas o que os biólogos chamam de vida.

Porém, esta crônica não tem por objetivo tais discussões existenciais, e sim fazer um comentário de um fato quotidiano, de uma notícia de jornal.

Nos séculos XV, XVI, enquanto muçulmanos impunham sua cultura através de "chantagem financeira", os europeus, os educados e civilizados europeus, impunham-na na base da pólvora. Os tempos mudaram, os métodos violentos e explícitos de impor uma cultura e um padrão de homem ficaram em segundo plano, superados pelas teses científicas e pelo uso da educação (ou seria da ignorância?) para inculcar essas teses e demais preconceitos na população.

Além de humanitários, esses novos métodos eram também muito mais eficientes. Tanto que, no início do século XX, no Brasil fadado ao fracasso por ser um país de negros e mestiços, os negros tinham vergonha de serem negros, e os índios de serem índios. A história mudou um pouco no final desse século: o número de pessoas desses grupos que tinham vergonha de sê-los diminui, os negros porque seguiram o conselho dos mais velhos e embranqueceram, os índios porque seguiram para o cemitério.

Para completar a imposição humanitária, no mesmo século XX ganhou força a propaganda, ainda mais eficiente que a educação, quando aliada à tv e ao cinema.

Se até o século XX impunha-se religião, vestes, língua, a partir dele passou a ser imposto também a forma de agir, de pensar e a forma do corpo.

Mas o mundo não estará completo enquanto não formos todos iguais (será que nos aproximamos da imagem de Deus?). Não basta a forma de olhar ser padrão, o olho também deve ser. Não falo em ter olhos azuis, falo da moda da cirurgia plástica, que chegou à China com um pequeno adendo, além do tradicional silicone: a operação para arredondar os olhos (negamos nosso corpo, nossa raça, nosso rosto, porque não negamos logo nossas vidas?).

Felizmente, ao contrário do que alguns idiotas afirmam, a história não chegou ao fim. Ela segue seu curso, como fez até hoje, e logo há de haver uma curva brusca nesse curso. Não fosse assim, no futuro as pessoas estariam agindo, olhando, se vestindo, falando, sorrindo, comendo, pensando, todas exatamente da mesma maneira. Poderíamos, enfim, afirmar, tão categóricos quanto Fukuyama afirmou o fim da história, dessa vez, porém com alguma (para não dizer total) propriedade, a vida é só uma.


Campinas, 08 de agosto de 2002

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