terça-feira, 24 de dezembro de 2002

O tapa na mão e a propaganda de sabão em pó

O principal passatempo da minha mãe é o bordado em ponto-cruz. Por não ser uma atividade conhecida pela dinamicidade ou pelo acaso, dá-se que minha mãe não tem muitas histórias para contar, apenas mostrar os bordados que fez, que está fazendo ou que pretende fazer.
Ao mostrar um dos bordados por ela feito, ela gosta de contar uma história do meu irmão. Conta ela que estava em seu quarto, bordando, com meu irmão ao lado, e interrompeu o bordado para atender o telefone. Enquanto no telefone a conversa ia e vinha, meu irmão pegou o bordado dela e começou a espetar a linha. Ela pensou em “dar um tapa na mão dele”, mas não o fez, depois desmancharia o que ele estava fazendo, não havia qualquer problema. Qual não foi a sua surpresa, ao retomar o bordado, que meu irmão, apenas vendo a forma das linhas já bordadas, fez o ponto certo – ponto esse que minha mãe aprendera em um curso e não sem certa dificuldade o executava. E pensar que se minha mãe tivesse dado o “tapa” na mão do meu irmão – fosse o tapa físico, ou palavras –, ela nunca saberia dessa facilidade que ele tem para analisar a “lógica do bordado”
Trata-se, é claro, de um exemplo banal. Mas quantos e quantos tapas nós já não recebemos ou demos, no decorrer da nossa vida? Quantas potencialidades – nossas e alheias – não ficaram latentes porque temíamos perder um minuto a mais em certa atividade?
Não se trata de fazer a defesa da educação que os pais têm dado hoje aos filhos, permitindo que eles façam tudo, se ausentando da responsabilidade de pais com a desculpa de que eles devem aprender com os próprios erros. Trata-se de pensar duas vezes antes de impedir que alguém faça algo só para evitar um pouco de trabalho depois. Tal como uma propaganda de sabão em pó, veiculada há certo tempo, em que as crianças faziam uma pintura, uma escultura, não lembro bem, e sujavam a roupa toda. Dizia em seguida o locutor, que se a mãe não quisesse sujeira, também não haveria arte.
É isso que eu defendo: não ser uma roupa suja, um trabalhinho extra na arrumação da casa, “o que os outros vão pensar” que impeça as pessoas de agir, fazer novas atividades, buscar suas potencialidades, extrapolar seus limites. Não sejamos carrascos das potencialidades das pessoas – nossas e dos outros. Um elogio, ou mesmo uma crítica, quando feita de maneira construtiva, é sempre gratificante, estimulante.
Esta crônica dirige-se também aos velhos que acham que pensam não ter mais potencialidades escondidas. Conheço muitas pessoas que começaram a pintar, esculpir, tocar um instrumento somente depois de uma idade avançada. Pessoas assim esbanjam jovialidade – talvez porque a juventude seja justamente a busca pelas potencialidades escondidas que existirão enquanto estivermos dispostos a encontrá-las.
E da próxima vez que você for impedir alguém – ou a si mesmo – de inventar um novo prato, só porque depois vai ter uma panela a mais para limpar, pense duas vezes. Você pode estar matando um grande “gourmet”.

Pato Branco, 24 de dezembro de 2002

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