sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

Soma

Até certa época, me impressionava o tom premonitório que eu cria haver nos livros 1984 e Admirável Mundo Novo, de George Orwell e Aldous Huxley, respectivamente. Hoje esses livros me parecem cada vez menos premonitórios, e o que me impressiona é a capacidade de discernimento dos autores, contrapondo à nossa cegueira, incapaz de perceber o elementar, mesmo quando ele já nos foi revelado.

A impressão que se tem hoje é que só é infeliz, só é triste quem quer. Psiquiatras e cientistas de todo o mundo comemoram os 45 tipos diferentes de medicamentos contra depressão. Anunciam esse arsenal químico como uma novidade e um grande bem para a humanidade.

Mais de 50 anos atrás, Lenina já tomava pílulas da felicidade. Não tinha o arsenal que temos hoje, contentava-se apenas com o Soma, e ele era eficiente, mais que qualquer uma das 45 pílulas atuais.

Quem leu Admirável Mundo Novo deve se lembrar que qualquer aborrecimento, qualquer coisa chata que acontece, qualquer problema que surgisse, era motivo para usar o Soma.

Numa entrevista para a revista Cláudia de outubro de 2002, o psicofarmacologista inglês Mike Briley, chefe da equipe que desenvolveu um dentre os 45 antidepressivos existentes (o mais recente, por isso chamado de última geração. Entretanto, sabemos que cada geração desses medicamentos para doenças dos ricos dura muito pouco tempo, por isso não podemos arriscar chamá-lo assim dois meses depois de lançado), só não citou a obra de Huxley para não deixar muito explícitas as fontes que norteiam o seu trabalho. Diz ele a certa altura da entrevista, quando perguntado se a depressão pode ser curada sem os medicamentos: “É possível superar uma crise sem remédios. Mas, por ser recorrente e acontecer em episódios, ela voltará e será cada vez mais séria e longa. Não há motivo para não se tratar quando há tantos recursos”, a não ser, talvez, que as vezes é preciso enfrentar o problema com a cara limpa, sem máscaras, sem remédios, sem pílulas da felicidade, para evitar esse ir e vir de crises depressivas. Solucionar as causas, e não simplesmente curar as conseqüências.

Se esses remédios resolvessem realmente o problema da depressão, não seria preciso usá-los por até cinco anos, como relata o entrevistado. Em cinco anos, num mundo cada vez mais dinâmico, como é o nosso, os problemas que levam uma pessoa à depressão já desapareceram há muito tempo. O que se fez foi fugir do problema e não enfrentá-lo. Provavelmente, se depois de cinco anos usando remédios a pessoa, ao se deparar com uma situação semelhante a que a levou à crise anterior, acabará voltando a se esconder atrás da máscara dos remédios. Vale lembrar que uma terapia – cuja morte é anunciada todo ano –, que segundo o entrevistado é um processo caro e longo, nesses cinco anos teria conseguido efeitos semelhantes, mas de duração muito mais efetiva, pois teria atacado a causa que levaram à depressão.

Apelar, logo de cara, para um remédio antidepressivo é típico de uma sociedade onde as pessoas fogem dos problemas, ao invés de tentar resolvê-los. É típico de uma sociedade infantilizada, igual à descrita por Huxley e por Orwell. É o Admirável Mundo Novo se desnudando sob nossos narizes, e nós insistindo em nossa cegueira.

Um brinde ao Prozac!


Pato Branco, 20 de dezembro de 2002

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