domingo, 29 de agosto de 2004

Vítimas sem voz, carrascos sem rosto

Não há palavras par descrever a barbárie cometida contra moradores de rua em São Paulo nos últimos quinze dias. É-me difícil de conceber que estamos nesse ponto e que ainda não chegamos ao extremo. Já temos em nosso país o que há de pior da África, temos nosso pequeno inferno, será que ainda chegaremos a ter nosso campo de concentração?
Não vou tentar aqui traduzir o que sinto, mas levantar alguns pontos secundários que têm me incomodado.
O primeiro é que a única falha que os “faxineiros da sociedade” cometeram foi a de atacar tantas pessoas (pessoas? exemplares da espécie biológica homo sapiens sapiens) de uma só vez. Sabemos que moradores de rua sofrem muitas agressões, mas não temos idéia de qual a dimensão delas. Lembro na ocasião do assassinato do índio em Brasília (que segundo nosso atual ministro da justiça não foi culpa dos meninos, que só queriam se divertir, e não matar o índio) foi aquele barulho: um índio! morto queimado! Dias depois começaram a surgir notas nos jornais comentando de moradores de rua que também tinham sido queimados enquanto dormiam. Duas semanas depois e ninguém lembrava mais do índio e não se lia mais notas de moradores de rua queimados.
Com o assassinato em série em São Paulo começam a surgir todos os dias notas de outros moradores de rua mortos em todos o país: Recife, Belo Horizonte, Sorocaba. No último caso temos a dimensão da cobertura que a mídia dá a esses crimes quotidianamente: um morador de rua foi assassinado numa construção abandonada no subúrbio da cidade, no mesmo lugar em que outro morador de rua havia sido morto dois meses atrás. Posso não ter percebido, mas não recordo de nenhuma nota falando do primeiro assassinato (fiz uma rápida pesquisa na página da Folha de São Paulo e não encontrei qualquer referência). O caso de São Paulo só foi notícia porque foram 16 agredidos em duas noites. Fosse em doses homeopáticas - um por dia -, no máximo, no máximo, depois da décima-sexta morte sairia uma nota no canto do jornal dizendo que brigas entre moradores de rua causava outra morte. De qualquer forma, podemos esperar que em quinze dias em nosso país reinará novamente a paz, sem nenhum morador de rua sendo agredido.
O outro ponto que me chamou a atenção é o das suspeitas levantadas assim que aconteceu a primeira chacina: briga entre moradores, grupo de extermínio contratado pelos comerciantes da região ou grupos intolerantes. A primeira e a terceira suspeitas são “naturais”: a primeira é ótima pra encerrar logo a conversa, são pobres, eles que se entendam, nós não temos nada a ver com isso. No máximo nos incomodamos quando sujam a calçada em frente ao nosso prédio com sangue. A terceira é algo que se deve sempre cogitar, pelo menos enquanto tivermos a lembrança do século XX bem fresca em nossa memória: grupos intolerantes (geralmente ligados à ideologia de extrema-direita) são um fenômeno que pode ocorrer em todos os países ocidentais capitalistas, independente do grau de “civilidade” dele, temos desde os exemplos da França, da Alemanha, dos EUA, de Israel aos do Brasil, da Argentina e das guerras “tribais” africanas. A segunda suspeita é que faz-nos pensar. Por mais que tal suspeita se comprove falsa, “absurda”, como os comerciantes a qualificaram, ela mostra a que nível chegamos. O absurdo não está em levantar a suspeita, mas na simples possibilidade da suspeita poder ser levantada. Para tornar mais claro meu raciocínio, é como se um dos suspeitos fosse a igreja católica: chegasse a esse ponto e teríamos a certeza de que a igreja vivia numa total decadência moral, por mais que a suspeita se mostrasse falsa (atenção, este raciocínio não vale para pessoas!). O filme “O homem do ano” trata do assunto de maneira bem direta: o apoio dado por doutores, empresários, policiais, delegados a grupos de extermínio, que atuam sob a fachada de empresa de segurança privada.
Hoje na Unicamp tive um exemplo de porquê o caso de São Paulo não nos surpreende realmente: realizávamos uma reunião do grupo de alfabetização do qual faço parte e um hippie se acercou e ficou por ali, enquanto discutíamos, intervindo vez ou outra. Demorou pouco para a segurança da universidade perguntar se era aluno da Unicamp (é sempre bom lembrar, para os próprios alunos, inclusive, de que a Unicamp é um local público, em que todos podem passear à vontade pelas áreas abertas) e o que ele fazia ali. Disse que estava conosco e foi “liberado”. Pouco depois sumiu e voltou com uma cana, foi a deixa para três seguranças chamarem-no para uma conversa em particular. Exigiram que ele saísse do campus, mas ele disse que estava conosco; os seguranças vieram perguntar-nos se era verdade, e dissemos que sim (podia não ser do grupo, mas estava ali conosco). Quiseram o aluno responsável pela reunião, mas dissemos que não havia. Foram embora prometendo voltar para tomar as atitudes devidas, felizmente não voltaram. Detalhe: os seguranças que exigiam nomes e documentos estavam sem identificação.
Exagero comparar os assassinos dos moradores de rua de São Paulo com os seguranças da Unicamp? Sem dúvida, mas guardada as proporções o princípio é o mesmo. Qual o meio para os moradores de rua - pejorativamente e erroneamente chamados de mendigos - exprimirem suas reivindicações? Quem da elite está disposto a escutar as reclamações dessas pessoas? Quem foram os assassinos dos moradores de rua de São Paulo? De que adiantou o hippie dizer que estava conosco se os seguranças só pararam de persegui-lo depois que nós, filhos da pequena burguesia branca e escolarizada, dissemos que estava conosco mesmo? E se nós não estivéssemos ali e os seguranças resolvessem usar a violência física contra o jovem, quem eram os seguranças para ele poder fazer queixa depois?
Ah esse nosso país de sombras e surdos...

Campinas, 29 de agosto de 2004

quarta-feira, 18 de agosto de 2004

Fraude na Venezuela

Sem dúvida houve fraude no plebiscito sobre a permanência de Hugo Chávez na presidência da Venezuela: fraude por parte dos oposicionistas que, clara a sua derrota, já antes do plebiscito ameaçavam romper as regras do jogo, para no final, desqualificar o plebiscito, acusando-o de fraudulento, indiferente ao reconhecimento dado por órgãos não muito favoráveis a Chávez.
Nada surpreendente nem chocante, no máximo revoltante (para aqueles que insistem em não aceitar as repetições do mundo como algo natural). A elite latino-americana parece ser igual em todos os países, diferindo somente em suas nuances regionais. Nada que não dê para pô-la toda no mesmo saco. Liberais só na economia, e só quando o liberalismo faz com que seus lucros sejam maximizados, democráticas somente quando ganham as eleições.
Ao ler artigos, entrevistas e reportagens, se tornava claro que esse plebiscito não teria seu resultado aceito pela oposição: os discursos desta eram altamente ideológicos, pouco pautados em fatos concretos e argumentos racionais; era um festival de teoria da conspiração, acusação de volta ao fascismo, ao stalinismo, de cerceamento das liberdades individuais.
A posição de Chávez, é preciso admitir, era tranqüilíssima: por se embasar no apoio das camadas mais pobres (pelo jeito vem daí a acusação de populista: para a imprensa e a elite se tem o apoio da população pobre é populista, se da elite, é estadista), ou seja, na maioria da população, a vitória parecia clara, e foi incontestável (cerca de 15% foi a diferença de votos entre os contrários e os favoráveis ao término seu mandato); mas mesmo que viesse a perder o plebiscito Chávez era o principal favorito às eleições para substituí-lo (apesar que perderia muito da sua força).
Ao meu ver, a acusação mais injusta contra Chávez é a de anti-democrático, advinda principalmente do seu “passado golpista”. Primeiro, se passado é parâmetro para julgar algum governo estamos passando por uma transição comunista no Brasil (a segunda desde 94!); segundo, se Chávez é anti-democrático, não se pode chamar a atual constituição venezuelana de “chavista”, como faz a oposição, visto que em nenhum outro país do mundo há esse dispositivo para a realização de um referendo no meio do mandato presidencial sobre a continuidade do governo sem necessidade de qualquer acusação; e terceiro, uma coisa é fazer oposição a partir de pontos de vistas distintos de um mesmo fato, outra é fazer oposição a partir de mentiras descaradas sobre os fatos. É isso que a mídia venezuelana tem feito e, ao meu ver (e não estou sozinho), o fato da mídia se pautar na mentira seria justificativa suficiente para medidas muito duras contra tais meios de comunicação de massa, o que Chávez não tem nem passado perto de fazer, muito provavelmente porque seria acusado ainda mais pesadamente de autoritário e anti-democrático. Curiosamente é nisso que julgo uma das principais falhas democráticas do presidente venezuelano: a mentira é inimiga da democracia.

Campinas, 18 de agosto de 2004

terça-feira, 3 de agosto de 2004

O perigo do crescimento

Crescer é perigoso. A ata do Copom divulgada na quinta-feira, dia 29 de julho, é uma bela peça do teatro do absurdo em que o Brasil interpreta-se a si mesmo no papel principal. Enquanto a China toma medidas para diminuir o ritmo de seu crescimento (na faixa dos 10% ao ano), a Coréia do Sul vê sinal de crise porque a estimativa do seu crescimento em 2004 caiu de 5,5% para 5,2%, o Brasil não tem sequer tempo de comemorar seu “espetáculo do crescimento” de 3,5%. Aumento das vagas de trabalho, diminuição do desemprego, aumento do consumo e conseqüente arrecadação de imposto, o que seres humanos brasileiros normais vêem como coisas benéficas (apesar de serem ainda insuficientes), parte do governo vê como um dos maiores feitos da política econômica do globo nos últimos anos, e outra parte vê como um grande problema, um perigo para o... crescimento do país.
Os dez, doze anos de crescimento sustentado e sem inflação que o primeiro-ministro do Brasil, digo, o ministro da economia, Antônio Palocci, falou que estavam se iniciando começa a morrer nos primeiros meses. Se o Brasil crescer então haverá inflação, é o dilema posto pela vulgarmente chamada “equipe econômica”. Claro que esses senhores sempre se esquecem de dizer que essa temível inflação sempre pronta pra atacar novamente não é a inflação de 10% ao mês, mas de 10% ao ano, bem acima da irreal meta de inflação para o ano que vem (4,5%).
A equipe econômica do senhor Lula vê perigo no crescimento porque, segundo levantamentos, a taxa de ocupação da capacidade produtiva da indústria brasileira é a maior dos últimos anos, e o crescimento do consumo não está sendo seguido por um crescimento equivalente dessa capacidade. Nada mais natural. É sabido que não há uma distinção clara entre capital produtivo e capital financeiro, como pregam certas pessoas e jornais, o capital – pelo menos o grande – é capital, e vai procurar maximizar seus lucros. Se lucrar mais produzindo, vai produzir, se lucrar mais especulando em papéis do governo, vai comprar papéis do governo. O capital produtivo que não segue esta lógica é o capital produtivo do pequeno agricultor, do dono da lanchonete da esquina, do carrinho de cachorro-quente.
O capital que especula paga menos imposto e tem rendimento maior, alguma dúvida pra onde irá o dinheiro dos endinheirados? A bufunfa que o empresariado brasileiro torra em papéis do governo, que rendem 16% ao ano (isso que é a taxa mais baixa dos últimos anos!), não seria posta em baixo do colchão, mas aplicado na ampliação da capacidade produtiva da sua empresa. Disso entramos num círculo vicioso o qual com a atual política econômica não sairemos nunca: primeiro, a taxa de juros é alta, o país cresce pouco, e o investimento na ampliação da capacidade produtiva é mínimo; depois a taxa de juros baixa (mais ainda é alta), o país cresce um pouco mais (mas ainda pouco), e o empresário começa a fazer as contas se vale a pena aumentar a capacidade produtiva, se o crescimento observado não é só uma “bolha”; como corre o risco de aumentar a inflação (que ainda é baixa), o BC aumenta os juros, estimula a especulação com papel do governo, diminui o consumo e desestimula o investimento em capacidade produtiva que iria acontecer; a seguir, inflação controlado, juros baixados, retomada do crescimento, capacidade produtiva defasada, risco de inflação, aumento de juros, e por aí segue ad eternum, se depender dos atuais donos do poder.
Claro que um governo lulista-petista, com anos de história de militância em movimentos sociais e defesa dos oprimidos, não vai deixar que estes fiquem desamparados. Para diminuir as mazelas da globalização e do neoliberalismo praticado por ele, diz que focará sua assistência nos menos favorecidos, para corrigir “distorções” do Estado brasileiro, ou em linguagem mais popular, diz que vai dar esmola aos menos favorecidos, aos coitados e aos incompetentes que não conseguem aproveitar todas as oportunidades dadas pelo capitalismo para saírem do seu estado de miséria – com a contrapartida, é claro, de retirar direitos das classes trabalhadora e média, afinal, alguém sempre acaba perdendo. Um discurso horrível, que não ataca as causas e só disfarça as conseqüências, e que ainda por cima não é posto em prática: a verba para 44 projetos prioritários (repare no prioritários!) ficou abaixo de 1% no primeiro semestre. Vivêssemos esta situação na Suécia e isto seria um absurdo. Mas vivemos no Brasil, e o Brasil, ora, o Brasil é assim mesmo, dirão nossos formadores de opinião.
PS: Não entendo nada além do mais mais elementar de economia, mas desconfio que a declaração de possível aumento nos juros, feita pelo presidente do BC, deve fazer com que os efeitos de tal aumento sejam sentidos em breve, antes mesmo do aumento ocorrer, tal como parece que ocorreu com o aumento dos juros estadunidenses, conforme as “Expectativas Racionais”. Alguém que entende isto poderia explicar?
PS2: A partir desta, minhas crônicas serão publicadas também na página do Centro de Mídia Independente – Brasil (http://www.midiaindependente.org/)

Campinas, 03 de agosto de 2004.