sexta-feira, 15 de outubro de 2004

O maravilhoso - e desestimulante - mundo da cidadania

Aprendi no cursinho, com um professor que sempre que tenho a oportunidade gosto de citar, o Fernando Gelfuso, que existia escravidão no Quilombo dos Palmares: o negro fugido só ficava livre quando fazia por merecer - salvando outro negro da escravidão branca, por exemplo. Moral da história, que o próprio Gelfuso fazia questão de ressaltar: liberdade não se ganha, se conquista. Ouso hoje ir um pouco além: direitos não se ganham, se conquistam. E mais do que conquistá-los é preciso fazer uso deles.
Fiz semana passada uma compra pela internet. Duas tentativas frustradas de entrega da mercadoria, a empresa entregadora liga pra marcar um dia. Dia marcado, passo o dia em casa (já que não era possível precisar uma hora nem mesmo o turno da entrega), e já no fim do dia, ligo para a dita empresa e eis que me avisam que meus cedês já haviam sido devolvidos para São Paulo, porque já haviam sido feitas cinco tentativas de entrega, todas frustradas, e que era determinação da loja em que comprei devolver o produto após três batidas com a cara na porta. Perguntei quais foram os cinco dias em que houve a tentativa de entrega, e a atendente não sabia dizer (curiosamente o dia em que eu havia marcado era o quinto dia útil desde a primeira entrega, e eles não entregam nos domingos e feriados). As soluções eram: ou eles tentavam reaver a mercadoria e eu deveria retirá-la na empresa (no centro de Campinas, sei lá onde), sendo que eu havia pago o frete e que essa retirada custaria quase o mesmo valor; ou refazer a compra e torcer pra estar em casa na hora da entrega. Estava meio amuado com essa história, tinha achado uma baita promoção de cedês de uma das minhas bandas favoritas (a escocesa Mogwai), e aceitei buscar a mercadoria na loja (caso eles conseguissem reavê-la antes dela ser devolvida). Mas para não deixar em branco meu aborrecimento com o ocorrido resolvi pedir o telefone de reclamações da loja, mais com o intuito de aprimorar os serviços (eita eu contribuindo para com o sistema capitalista?), como deixar um aviso escrito da tentativa de entrega, e um aviso na hora da compra de que após três tentativas o produto seria devolvido à loja. Definitivamente não era minha intenção ferrar com ninguém.
Mas eis que esse meu pedido me abriu o maravilhoso mundo dos consumidores com direitos, e de 'quem sabe amanhã você possa vir pegar sua compra aqui' o discurso mudou para 'amanhã nós com certeza entregaremos na sua casa, só precisamos que você esteja lá'! Diga-se de passagem com direito a falar com o chefe da empresa! Uma conversa assaz desagradável, diga-se novamente de passagem. Tentou ser prestativo, é certo, mas queria saber o nome do funcionário que havia combinado que a mercadoria seria entregue no dia marcado para demiti-lo. Felizmente (nesse caso) minha memória anda um tanto fraca, e eu não lembrava (assim como não lembro o nome do chefe nem da atendente que me atendeu esse dia), mas foi o suficiente pra eu me decidir a ligar pra loja assim que recebesse a mercadoria.
Penso o porquê dessa ameaça de demissão, levanto três hipóteses: a primeira foi que ele me disse isso somente para me agradar, visto que achava que eu estava puto da vida com todo esse rolo (na verdade não estava, apenas estava aborrecido e preocupado de perder a compra e não ter mais o desconto), e que o consumidor tem sempre razão e quer ver sangue; a segunda foi que ele fez isso pra me intimidar, como se dissesse 'Está vendo? Quer bancar o cidadão e vai fazer um pai de família perder o emprego'; ou então essa é realmente a política da empresa e o chefe não foi mais que sincero. Qualquer que seja a alternativa, meus cedês chegaram e minha reclamação será feita ainda este final de semana: eficiência na entrega é bom, mas fazer isso à base de terror psicológico não dá pra admitir.
Corta para cena dois:
Caminhava eu debaixo de chuva da Unicamp para o centro de Barão Geraldo (o distrito em que está situada a universidade) e vejo três crianças entre sete e dez anos de idade pedindo dinheiro no sinal. Fiquei indignado, ainda mais porque vi duas delas recebendo dinheiro! Dar dinheiro pra criança é um crime: contra a criança, contra a sociedade e contra quem dá o dinheiro. Explico melhor. Um amigo meu, estudante de psicologia na U$P Ribeirão, fez estágio com crianças em 'situação de risco psicossocial' (crianças fora da escola, de famílias desestruturadas, crianças de rua, etc), e disse que uma criança, até seus 12, 13 anos, enfim, enquanto mantivesse suas feições de criança ganhava em média R$ 40,00 por dia (isso no final de 2002, início de 2003), e que no natal a soma crescia para cerca de R$ 70,00 diários. Entretanto, bastava a criança começar a parecer adolescente e de 'ah, coitadinho' a frase que ela escuta passa a 'vai trabalhar, vagabundo'. Creio que não preciso discorrer muito mais sobre o que se passa com tais crianças: enquanto criança ganha dinheiro, não vai pra escola, vira adolescente, pára de ganhar esmola, não tem educação, vai virar trombadinha, até a polícia pegar, mandá-lo pra Febem, e daí ele está concursado para freqüentar os melhores assaltos da cidade, inclusive contra aqueles que de bom coração deram dinheiro para ela enquanto criança. Claro que simplesmente parar de dar esmola não resolve - visto que o problema é estrutural, não conjuntural -, mas enquanto as estruturas não mudam nós devemos ir fazendo o pouco que está bem ao alcance de nossas mãos na conjuntura.
Pois bem, fiquei indignado com essa cena e resolvi agir, ainda que timidamente e dentro da legalidade. Liguei pra polícia militar, expliquei o caso e pedi pra encaminhassem pro conselho tutelar. Como resposta eles me deram o telefone da guarda municipal. Liguei pra guarda municipal, expliquei o caso e me deram o telefone do conselho tutelar. Liguei pro conselho tutelar e... ninguém atendeu. Tinha compromisso marcado, estava atrasado e não pude continuar brincando de 'eu sou cidadão'. Mais tarde conversei com duas pessoas sobre minha decepção de tentar exercer minha cidadania, e elas comentaram que também haviam visto as crianças e também haviam se indignado, mas ficaram nisso, não pensaram em chamar a autoridade responsável.
Sou contra buscar eficiência à custa de terror psicológico com os funcionários, mas um pouco de eficiência na burocracia brasileira iria muito bem. Não seria muito trabalhoso uma central de chamadas que encaminhasse o que é caso de polícia pra polícia, o que é caso de bombeiros pros bombeiros, o que é caso de conselho tutelar pro conselho tutelar, ou mesmo que houvesse uma comunicação fácil entre esses órgãos. Mas enfim, descobri que no Brasil é bem mais fácil aplicar a cidadania ao consumo do que à cidade. No primeiro caso, caso o serviço prestado seja ruim pode-se reclamar no Procon. E no segundo, pra quem eu reclamo que ninguém atendeu o telefone no conselho tutelar? Pro padre? Pro bispo? Pra quem quiser escutar ou ler? O mais difícil é que diante disso não se pode desanimar, se desistir de exercer a cidadania (por favor, sem essa baboseira sem tamanho de que exercer a cidadania é votar) é que as coisas vão ficar como estão, e como estão não dá.

Campinas, 15 de outubro de 2004

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

O acordo de paz simbólico

Depois de dois anos de negociações, palestinos e israelenses devem assinar um virtual acordo de paz no dia 4 de novembro. Infelizmente os israelenses que assinarão tal acordo não são os que estão no poder, e sim a esquerda. Uma pena, sem dúvida, já que todo esforço pela paz – desde que não resulte em guerra ou retaliações – deve ser elogiado. Não sou entendido no assunto Oriente Médio, meu conhecimento se resume aos jornais diários, algumas aulas no cursinho e alguns trechos de livros que abordavam de uma forma ou de outra o problema. Mas aos olhos de um leigo, a proposta parece muito boa.
O acordo prevê a criação do Estado Palestino. Apenas 2% da faixa de Gaza continuaria em poder de Israel, que compensaria o Estado Palestino cedendo parte do deserto de Negev. Dos mais de cem assentamentos na Cisjordânia, apenas 20 ficariam do lado israelense. Os demais e todos os da faixa de Gaza seriam desmantelados. Jerusalém seria dividida pela fronteira estabelecida internacionalmente. As áreas de maiorias árabes sob controle dos palestinos e as judaicas, dos israelenses. Apenas a área de Har Homa, de maioria judaica mas no lado árabe (oriental) da cidade, seria esvaziada por Israel. A parte antiga de Jerusalém também seria dividida. A porção judaica e o muro das Lamentações continuariam com Israel e as demais seriam parte e a mesquita de Al Aqsa passariam para o Estado palestino.
Quanto aos refugiados palestinos, esta seria a principal concessão palestina: eles teriam três opções: permanecer no país onde vivem, com direito a uma compensação; viver no Estado Palestino, ou tentar ir para Israel, mas precisariam de autorização do governo para isso.
E a direitona que está no poder, o que achou do acordo simbólico? Disseram que o plano fere os interesses nacionais israelenses e chega a arriscar a segurança do país.
Nas palavras do vice-premiê israelense, Ehud Olmert: "É inacreditável que esse bando de irresponsáveis assine um acordo que prevê a entrega de lugares sagrados em troca de algo [a renúncia ao direito de retorno] que talvez eles não cumpram". Com essa mentalidade e, mais ainda, com essa confiança no outro, a paz vai longe, longe do Oriente Médio.

Pato Branco, 14 de outubro de 2003