segunda-feira, 28 de março de 2005

Carta pra folha: Gabeira

Fantástica a sensibilidade de Fernando Gabeira em seu artigo "Blues da piedade em versão guarani-caiuá" (Ilustrada, pág. E10, 26/ 3): onde seus colegas vêem apenas números, cifras e estatísticas, Gabeira consegue ver pessoas, consegue ver vida -ainda que uma vida sofrível, difícil, severina, a fugir diariamente da morte sempre à espreita. Torçamos para que essas flores de humanidade que insistem em brotar em meio ao lodo do poder sejam um dia maioria e tenham força o bastante para embelezar os caminhos da vida, e não apenas adornar a morte.

Campinas, 28 de março de 2005

terça-feira, 15 de março de 2005

Esclarecimento sobre o ato no bandejão dia 14 de março

Apesar de diversos grupos estarem desde o ano passado se manifestando em oposição ao cartão universitário (C.U.), ao menos na forma com que ele tem sido implementado, cremos ser válido mais uma vez trazer nossas dúvidas à comunidade acadêmica, visto que este movimento de questionamento ganhou destaque após o ato no bandejão esta segunda-feira, 14/03.

A invasão do R.U. foi tirada em assembléia do DCE, quarta-feira, dia 09/03, e teve o apoio de CAs e de diversos grupos não ligados ao movimento estudantil tradicional (Bateria Pública, Bateria Alcalina, Surplus-Unicamp, além de alunos de diversos institutos, IA, IEL, IFCH).

Nossos questionamentos quanto ao C.U. recaem em três aspectos principais:

1) a forma como foi implementado, sem o debate esperado em uma universidade que se encontra em uma sociedade democrática de direito;

2) a falta de transparência no contrato firmado entre a Unicamp e o Banespa-Santander: o que sabemos é que nos primeiros cinco anos o banco bancará as despesas, mas... e depois? Já é perceptível o direcionamento dos alunos a abrirem conta no banco Banespa-Santander ou Banco do Brasil, único meio de evitar três filas para almoçar; e

3) o controle despropositado sobre a vida estudantil: não há qualquer motivo razoável para o controle da entrada nas bibliotecas, além de que esta medida prejudica academicamente os alunos, impedidos de estudarem ou se utilizarem da estrutura da biblioteca caso esqueçam o C.U. Não é despropositado acreditar que em breve esse controle se expanda para as salas de aula, para controle de freqüência, atentando contra a liberdade pedagógica dos professores e aumentando ainda mais a burocracia interna (quem precisou ir na DAC este ano já pode constatar o aumento da burocracia).

Além disto,causa-nos indignação não haver a ampliação da estrutura (física e humana) para atender ao aumento de vagas na Unicamp.

O ato de segunda-feira foi uma medida radical, sem dúvida, mas diante do completo desdém da reitoria para com os estudantes essa medida nos pareceu a única capaz de abrir o diálogo entre estudantes e a instituição, como atestam diversos exemplos, como o SUBA ou a greve de 2004 (que só foi reconhecida oficialmente com a ocupação da reitoria e teve seu fim antecipado quando os funcionários começaram a radicalizar).

Como o pula-catraca desta segunda se tratava de um ato questionador e radical, natural que houvesse grande tensão entre os seguranças e os alunos; mas estes fizeram questão de que o ato fosse não-violento e, pelo menos por parte dos alunos, assim foi feito: não houve qualquer agressão física ao pessoal da segurança que tentou barrar o ato. Evitou-se também ao máximo o dano ao patrimônio público: a máquina fotográfica com a qual a segurança registrava o ato , e que por nós foi tomada, será devolvida. Quanto ao crachá que um vigilante deu por falta, levantando a possibilidade dele ter sido pego por alguém da manifestação, reiteramos o que temos dito desde o início: não pegamos o crachá de ninguém; ele pode muito bem ter caído no empurra-empurra da manifestação.

Aproveitamos a visibilidade da manifestação desta segunda para trazer novamente as nossas reivindicações:

1) que o contrato entre a Unicamp e o banco Banespa-Santander venha à público na sua íntegra e seja verdadeiramente discutido na comunidade;

2) rediscussão do papel das empresas privadas na relação com a Unicamp (tendo em vista se utilizarem de recursos públicos para interesses particulares, como no caso do Banespa-Santander, Ajinomoto, Microsoft, UOL, entre outros);

3) fim da obrigatoriedade do C.U. para entrar nas bibliotecas e no Restaurante Universitário;

4) venda de créditos do bandejão também no R.U.;

5) a construção de outro restaurante universitário, em local acessível.


Campinas, 15 de março de 2005

PS: Fotografar os organizadores têm sido um procedimento comum sempre que há manifestações ou festas na Unicamp; estas fotos, acreditamos, poderão ser utilizadas em um dossiê contra um aluno escolhido como bode-expiatório.

Para: Surplus-Unicamp

quarta-feira, 2 de março de 2005

Elefante

Se um dia eu fosse fazer uma lista de filmes para mostrar mais ou menos como eu vejo o mundo, Elefante, de Gus van Sant, certamente estaria nela (sugiro àqueles que ainda não assistiram ao filme e pretendem um dia fazê-lo, encerrar esta crônica por aqui). O filme foi lançado em 2003, mas só tive a oportunidade de assisti-lo ontem. O filme - uma sutil homenagem (ou seria crítica?) a Laranja Mecânica, de Kubrick - mostra o dia de alguns alunos de uma escola estadunidense no dia em que dois estudantes do último ano resolvem promover uma carnificina na escola. O genial do filme é que ele trata da violência, mas o tema principal é a sua banalização. O modo encontrado pelo diretor para mostrar essa banalização foi justamente dar cores banais ao filme, aos personagens, à rotina da escola. O diretor consegue passar essa sensação de banal às rotinas banais de pessoas banais, não muito diferentes de nós.
O filme é de uma objetividade que deveria ser chocante, se não estivéssemos tão acostumados: acompanhamos os jovens cujo quotidiano a câmera capta e vemos cabeças em que não se passa qualquer drama existencial, moral, em que encontramos o mínimo de subjetividade possível. Não são estereótipos, gostariam de sê-lo. Gostariam de ser todos o mesmo estereótipo: pessoas bem sucedidas, atraentes e sem fraquezas. É aqui que está a violência do filme: a violência quotidiana desses jovens para tentarem se enquadrar nesse estereótipo. Violência direta e indireta, interna e externa. A diferença entre as amigas bulímicas e a moça nerd e feia, é que as primeiras tiveram sucesso na sua empreitada em se adequar, através de uma violência direta contra o próprio corpo, enquanto a segunda, oprimida pelo seu fracasso prefere violentar-se escondendo-se e ao seu corpo ao máximo, ao mesmo tempo em que é rejeitada e ridicularizada pelas colegas. O filho do pai alcoólatra que chora escondido também se violenta ao conversar com seu amigo cinco minutos depois como se não houvesse nada a incomodá-lo. O mesmo com o garoto que comandará a matança, humilhado em sala de aula pelos colegas, que se não esboça qualquer reação no momento, se limitando a ir se limpar no banheiro, e que por falta de diálogo prefere resolver suas pendências e frustrações atirando contra todos (diálogo esse que o filme só mostra existir, timidamente, é certo, no "grupo de gays e héteros", ou seja, numa situação forçada).
O filme consegue tão bem banalizar essa banalização do nosso quotidiano, que ela nos salta à vista quando os dois amigos promovem a carnificina no colégio e isso não nos choca: é apenas outro ato de violência, a mesma violência a que nós assistimos até então e permanecemos indiferentes, um ato extremado de uma banalidade que não nos incomodou quando em doses (teoricamente) homeopáticas.
Como eu disse, um filme que aborda a violência e sua banalização. A banalização da violência praticada contra o diferente. A banalização da violência praticada contra si próprio. A banalização da violência inerente ao próprio sistema, que condena a pessoa a ser uma máquina de produzir e consumir. A banalização de uma sociedade em que as pessoas não conversam, não se conhecem, não se amam. A banalização da indiferença pelos problemas dos outros. A banalização da violência que é uma rotina tocada em frente sem pensar e sem sentir. A banalização da violência que é quotidiana, e por ser quotidiana nós não pensamos nela, e aceitamos, como algo natural, normal. Violência que passeia como um elefante pelas ruas da cidade, pelas páginas dos jornais, pelos canais da televisão, pelas conversas de bar, pela nossa sala de jantar, e que nós insistimos em ignorar. Elefante que ocupa cinco páginas de jornal para falar da saúde de alguém que já há tempo, devido à própria idade, está no bico do urubu, e três pra falar da maior chacina do Brasil.
Que o filme de van Sant nos faça pensar um pouco se tudo o que é rotineiro é bom.

Campinas, 02 de março de 2005