quarta-feira, 2 de março de 2005

Elefante

Se um dia eu fosse fazer uma lista de filmes para mostrar mais ou menos como eu vejo o mundo, Elefante, de Gus van Sant, certamente estaria nela (sugiro àqueles que ainda não assistiram ao filme e pretendem um dia fazê-lo, encerrar esta crônica por aqui). O filme foi lançado em 2003, mas só tive a oportunidade de assisti-lo ontem. O filme - uma sutil homenagem (ou seria crítica?) a Laranja Mecânica, de Kubrick - mostra o dia de alguns alunos de uma escola estadunidense no dia em que dois estudantes do último ano resolvem promover uma carnificina na escola. O genial do filme é que ele trata da violência, mas o tema principal é a sua banalização. O modo encontrado pelo diretor para mostrar essa banalização foi justamente dar cores banais ao filme, aos personagens, à rotina da escola. O diretor consegue passar essa sensação de banal às rotinas banais de pessoas banais, não muito diferentes de nós.
O filme é de uma objetividade que deveria ser chocante, se não estivéssemos tão acostumados: acompanhamos os jovens cujo quotidiano a câmera capta e vemos cabeças em que não se passa qualquer drama existencial, moral, em que encontramos o mínimo de subjetividade possível. Não são estereótipos, gostariam de sê-lo. Gostariam de ser todos o mesmo estereótipo: pessoas bem sucedidas, atraentes e sem fraquezas. É aqui que está a violência do filme: a violência quotidiana desses jovens para tentarem se enquadrar nesse estereótipo. Violência direta e indireta, interna e externa. A diferença entre as amigas bulímicas e a moça nerd e feia, é que as primeiras tiveram sucesso na sua empreitada em se adequar, através de uma violência direta contra o próprio corpo, enquanto a segunda, oprimida pelo seu fracasso prefere violentar-se escondendo-se e ao seu corpo ao máximo, ao mesmo tempo em que é rejeitada e ridicularizada pelas colegas. O filho do pai alcoólatra que chora escondido também se violenta ao conversar com seu amigo cinco minutos depois como se não houvesse nada a incomodá-lo. O mesmo com o garoto que comandará a matança, humilhado em sala de aula pelos colegas, que se não esboça qualquer reação no momento, se limitando a ir se limpar no banheiro, e que por falta de diálogo prefere resolver suas pendências e frustrações atirando contra todos (diálogo esse que o filme só mostra existir, timidamente, é certo, no "grupo de gays e héteros", ou seja, numa situação forçada).
O filme consegue tão bem banalizar essa banalização do nosso quotidiano, que ela nos salta à vista quando os dois amigos promovem a carnificina no colégio e isso não nos choca: é apenas outro ato de violência, a mesma violência a que nós assistimos até então e permanecemos indiferentes, um ato extremado de uma banalidade que não nos incomodou quando em doses (teoricamente) homeopáticas.
Como eu disse, um filme que aborda a violência e sua banalização. A banalização da violência praticada contra o diferente. A banalização da violência praticada contra si próprio. A banalização da violência inerente ao próprio sistema, que condena a pessoa a ser uma máquina de produzir e consumir. A banalização de uma sociedade em que as pessoas não conversam, não se conhecem, não se amam. A banalização da indiferença pelos problemas dos outros. A banalização da violência que é uma rotina tocada em frente sem pensar e sem sentir. A banalização da violência que é quotidiana, e por ser quotidiana nós não pensamos nela, e aceitamos, como algo natural, normal. Violência que passeia como um elefante pelas ruas da cidade, pelas páginas dos jornais, pelos canais da televisão, pelas conversas de bar, pela nossa sala de jantar, e que nós insistimos em ignorar. Elefante que ocupa cinco páginas de jornal para falar da saúde de alguém que já há tempo, devido à própria idade, está no bico do urubu, e três pra falar da maior chacina do Brasil.
Que o filme de van Sant nos faça pensar um pouco se tudo o que é rotineiro é bom.

Campinas, 02 de março de 2005

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