domingo, 3 de abril de 2005

Frio ou humano?

Conversava eu ontem com uma amiga e ela comentava que, ao ver na tv a notícia da chacina na baixada fluminense, não se conteve e começou a chorar tamanha barbaridade. Isso me fez lembrar de um caso em 2000, quando eu assisti no noticiário da tv (aquela época não só eu tinha tv como ainda perdia tempo na frente dela) que a polícia do Paraná, então governado pelo senhor Jaime Lerner (ex-PFL, hoje PSB), para impedir que uma passeata do MST continuasse sua marcha, matou um integrante e tratou os demais em total desacordo com os direitos humanos. Tremi de raiva, por pouco não chorei, ao ver aquelas pessoas sendo tratadas como trastes. Hoje, passados cinco anos daquele meu acesso de raiva, depois de muita leitura, muita vivência, muita notícia de assassinatos de integrantes do MST, da Pastoral da Terra, de pessoas inocentes e "culpadas", de chacinas de crianças, jovens, mulheres, adultos, velhos, pobres; de guerras cirúrgicas, de atentados terroristas, me pergunto se estou mais frio, mais "calejado" - para usar um termo mais eufemístico -, pois apesar de me indignar, não me comovo mais da forma exacerbada como antigamente.

Ao mesmo tempo me pergunto: será possível que esse "sentimento profundo", produzido a partir de uma imagem de tv, de uma "imagem espetacular", seja autêntico? Será que tenho tamanha empatia por essas pessoas distantes, que eu sequer sabia que existiam, que continuo sem saber nada além do que foi noticiado na tv, que nunca me atingiram diretamente, a ponto de chorar sua desgraça como se fosse a de um parente próximo e querido? Não seria esse sentimento o mesmo - e de mesma intensidade - que muitas pessoas sentem ao assistir um drama romântico com a Julia Roberts?

Assistimos a essas notícias sobre barbaridades gritantes, choramos, trememos de raiva por cinco minutos, falamos depois disso a quem encontramos primeiro "Que barbaridade!", e nossa indignação se dilui na barbárie quotidiana, descompromissados pelas lágrimas de qualquer ação direta, pois tudo está tão distante de nós.

É claro que uma chacina é de uma dimensão muito maior do que um problema familiar qualquer; mas preferimos nos envolver mais com o primeiro do que com o segundo, pois afinal é muito mais cômodo se envolver com uma notícia da tv, que apresenta algo que já foi, e que portanto, não nos permite fazer nada a não ser chorar cinco minutos, recostados no sofá da sala com o ar-condicionado ligado para espantar o calor, do que ter que conversar com o vizinho, uma conversa que pode durar horas sobre um assunto enfadonho, que continuará amanhã, e depois de amanhã, e depois de depois de amanhã, em locais muitas vezes desconfortáveis, fazendo com que ajamos de verdade, pensemos em atos possíveis e conseqüências almejadas, tomando nosso precioso tempo - que poderia estar sendo utilizado de maneira produtiva - numa novela em que não tem pessoas bonitas nem a certeza de final feliz.

É curiosa essa relação pessoal que dispensa o próximo. Preferimos manter nossa humanidade com sentimentos de mentira.


Campinas, 03 de abril de 2005