terça-feira, 20 de setembro de 2005

Os defensores do capitalismo

Em uma atividade extra do cursinho comunitário em que trabalho assistimos ao filme "Suplus: Terrorized into being consumers", documentário sueco que critica a sociedade capitalista-consumista, numa linha semelhante à dos manifestantes de Seattle e Gênova. Ao meu ver, o grande mérito do filme - além de ser muito bem feito - é não impôr idéias, mas questionar padrões de comportamentos aceitos como normais. Não fala, por exemplo, "não compre", mas questiona o porquê de se ter um carro caro. Um momento que me chamou bastante a atenção desta vez é seqüência que mostra lojas cubanas, praticamente vazias, pouquíssimos produtos nas prateleiras, para logo depois entrevistar uma cubana, que explica como funciona o sistema de cupons, que supre, segundo ela, todas as necessidades básicas de uma pessoa. A imagem da "perla" - a pasta de dente cubana -, sem rótulo, sem cor, sem nada escrito, choca, assim como chocam as imagens das prateleiras vazias nas lojas. Mas depois resta a pergunta: de que vale prateleiras cheias se grande parte da população passa fome, passa frio? Qual a utilidade de se ter pasta de dentes com embalagem colorida e bonita, com pessoas de rostos europeus e sorrisos esculpidos, enquanto há pessoas que não têm necessidade de escovar os dentes depois das refeições: parte porque já perdeu os dentes, parte porque não sabe o que é uma refeição?
Depois do filme fomos discuti-lo em sala de aula, eu e cerca de 40 alunos. Nada de novo na discussão, mas não é porque algo é corriqueiro que não me choca. O primeiro ponto levantado por um aluno foi o do Fidel Castro ter dito que Cuba é um país democrático. Entramos em Cuba e lá ficamos, talvez por ser um modelo em algo diferente do nosso. Criticá-lo é uma forma de defender nossa forma de vida, esteja ela correta ou não. Questionaram o direito de ir e vir na ilha, ao que eu respondi com uma pergunta: quem ali já havia ido para a Europa. Resposta: ninguém. E para Buenos Aires, Montevidéu? Ninguém. E para o nordeste brasileiro? Três em mais de quarenta alunos. A discussão caminhava na base de ponderações sobre o sistema social cubano e o nosso, até que certa hora uma moça criticou a "perla": não tinha rótulo, era feia, não dizia do que era feito! Aqui o tom da discussão mudou um pouco. Perguntei à moça qual a importância para alguém que não é químico saber a composição da pasta de dentes. Também pus a questão de que se não possui no rótulo os elementos não quer dizer que eles sejam confidenciais, e perguntei se ela, toda vez que comprasse a mesma pasta de dentes, lia o rótulo para ver a fórmula. Aqui a ideologia dominante cerrou fileiras e partiu para o ataque, justamente em um dos pontos que o filme mais critica: e a minha liberdade de escolha?, perguntou outro aluno. Apesar da vontade de responder, tentei ficar quieto, para deixar que a discussão corresse entre os alunos. A resposta veio de uma aluna que disse concordava com o capitalismo, só achava que ele era injusto, e que se fossem pagos salários mais justos seria tudo melhor. Conforme a discussão caminhou para esse ponto me senti na necessidade de intervir, não mais maeuticamente, mas já mais professoral: falei um pouco da publicidade, que hoje não tem a função de anunciar um produto, mas de criar artificialmente a necessidade dele; tentei mostrar com um exemplo banal a produção absurda e desnecessária de lixo que há hoje; e dei meu testemunho próprio de tentativa de consumo consciente e boicote ao consumismo supérfluo, ao que recebi como resposta: se os donos das empresas não mudam, por que deve partir de nós a mudança?
Como eu disse, nada de novo, mas nem por isso deixa de me chocar. Trata-se de um cursinho popular, os alunos são de baixa renda, oprimidos, portanto. E muitos deles vêem na universidade mais que oportunidade de não serem mais oprimidos, mas a oportunidade de em breve se tornarem opressores. Soma-se a isso o medo do novo, do desconhecido e o receio de perder o que podem vir a ter. O resultado acaba por ser: e o meu direito de escolher? Como se a escolha entre dois produtos iguais, mas de cores diferentes, fosse realmente uma escolha. Como se "no Brasil, se se quer viajar para algum lugar ninguém te impede" fosse simples como a frase aparenta ser.
Pois é... as luzes de neon continuam atraindo mais que as cores do pôr-do-sol.

Campinas, 20 de setembro de 2005