sábado, 12 de novembro de 2005

O 68 dos pobres

Creio eu que a escola (na verdade, não só a escola, mas não fujamos do nosso tema) ao tentar sistematizar o conteúdo a ser ensinado, acaba por ter de ignorar o caráter dinâmico do conhecimento e, pior, simplificar as contradições existentes no mundo, no conhecimento, ou na tentativa deste de explicar aquele. Resultado: corre-se permanentemente o risco de ensinar algo errado. Uma das coisas que me ensinaram, eu me lembro bem, é de que quem nasce no Brasil é brasileiro, assim como quem nasce na China é chinês e quem nasce na França é francês. Não cheguei a ler toda a tinta impressa para relatar e comentar o 68 dos pobres que acontece na França há mais de duas semanas. Também não me proponho aqui a fazer maiores comentários sobre a revolta popular em curso: devido à falta de conhecimento, o máximo que eu poderia escrever seria repeteco do que li e concordei. Apenas levanto o curioso ponto de que os alvos prioritários dos "vândalos" (segundo o chamado da imprensa) serem carros e não sedes de grandes corporações multinacionais ou prédios públicos, nem mesmo pessoas (o que, por este ponto, assemelha-se aos protestos não-violentos de Gênova e Seattle).

Como acabei de dizer, não farei um repeteco do que li, mas comentarei algo que me chamou a atenção e que talvez ajude a compreender um pouco a situação. De tudo o que li, falava-se quase sempre em imigrantes e filhos de imigrantes, e não em "franceses de ascendência africana-islâmica", "franceses moradores da periferia" ou algo de teor similar. De onde surgiu minha pergunta: os filhos de imigrantes de ascendência africana-árabe, moradores das periferias, nascidos na França - como fica bem entendido - não são franceses? São, mas... É aqui que entra minha crítica à forma que se ensina na escola: todos os que nascem na França são franceses, mas existem os franceses de primeira classe: loiros, cristãos, olhos azuis, possuidores de bons carros, descendentes dos galeses; e os franceses de segunda classe: morenos, islâmicos, cabelos escuros, moradores da periferia. Há uma dicotomia implícita entre civilização e barbárie, quando se fala do medo dos franceses quanto aos protestos dos filhos de imigrantes. Há um resto do sentimento de colonialismo etnocêntrico, que julgava ter como seu último suspiro a ida de Le Pen ao segundo turno das eleições de 2002; mas Sarkozy mostrou que esse sentimento ainda está muito vivo. Há uma demonstração implícita de que 1789 está longe de alcançar seus objetivos.

Não é raro, em especial na grande imprensa, um certo ar de perplexidade: esses jovens, filhos de imigrantes, foram acolhidos pela França, vivem melhor do que se vivessem em “seus países”, do que podem estar reclamando? Esquecem-se, todavia, de que limpar fossa por toda a vida, por mais que resulte em um padrão de vida melhor do que na África, não é exatamente o sonho de todos os jovens. Esquecem-se de que ter um padrão de vida melhor do que o africano não significa necessariamente ter um padrão de vida bom, nem mesmo aceitável. E esquecem-se de que esses "filhos de imigrantes" são franceses, e sendo a França uma república são todos iguais perante a lei, sejam filhos de imigrantes ou descendentes de Pepino, O Breve. Ou deveriam sê-lo.

Mas o mais interessantes neste 68 da periferia é o fato de não haver uma liderança que encabece os protestos, que verbalize as reivindicações. E essa ausência não faz falta alguma: não houve analista sério - seja de esquerda, seja de direita - que não soubesse bem contra o que protestam os "filhos de imigrantes", o que reivindica a "escória". É evidente que a situação entre riqueza e pobreza está insustentável, que os ideais da revolução francesa estão cada vez mais longe, em todas as partes do globo. Os norte-africanos da França, os turcos da Alemanha, os indígenas da América, os negros dos EUA, os favelados do Brasil, a escória está em todo lugar, pronta a explodir - ou pelo menos a emergir -, falta apenas riscar o fósforo.


Campinas, 12 de novembro de 2005