domingo, 26 de março de 2006

A dança

Ao ver a dancinha da deputada petista Ângela Guadagnin comemorando a absolvição do deputado João Magno, receptor de R$ 400 mil no esquema do mensalão, fiquei indignado. Porém, ao abrir o jornal no dia seguinte, a indignação foi ainda maior. Não sou nem um pouco adepto de teoria conspiratória anti-PT – apesar de reconhecer que a mídia era mais boazinha com FHC – mas a proporção dada à dança em si – chegado a cogitar a caçassão da deputada por quebra de decoro – é completamente desmedida. Além de darem essa proporção absurda os comentários, tanto de deputados quanto de jornalista, são de um preconceito e machismo injustificável.
A qualquer brasileiro sério a indignação pela dança da deputada não é pela dança, mas pelo motivo da dança. Ver deputados contentes, comemorando vitórias no plenário não é de forma nenhuma falta de decoro – é até um ótimo momento para ver o verdadeiro lado dos deputados. Ver deputados cantando o hino nacional quando aprovaram a privataria estatal tem muito mais razão para ser quebra de decoro – se não crime lesa-pátria. Não me lembro de ninguém pedindo a caçassão de uma penca de deputados que levantavam os braços e sorriam quando Severino Cavalcanti foi eleito. O problema da dança da sra. Guadagnin é que ela ilustra a degradação moral do partido que parecia ser o único arauto da moralidade pública: o partido que antes denunciava a corrupção hoje comemora a absolvição de corruptos. Mas quase tão indignante quanto é PFL e PSDB tentarem construir a imagem de partido ético, sob os escombros do petismo: seria como tentar colocar Pinochet como democrata ou Bush como pacifista.
Quanto aos comentários, o preconceito e ofensa diretamente à pessoa da deputada – devido ao seu porte físico –, mostram a falta de uma razão plausível para a dimensão dada ao fato: a “avultada parlamentar”, nas palavras do jornalista Marcos Augusto Gonçalves, como se o fato da deputada ser gorda ou magra, feia ou bonita, tivesse qualquer importância merecedora de comentário. O deputado do PSDB paulista, Alberto Goldman, foi bem mais descarado no seu machismo: “O melhor que ela faz é arrumar um emprego de dançarina do ventre”. Como disse a socióloga Maria Victoria Bernevides, o senador Arthur Virgílio, do PSDB, ter dito que ia dar uma surra no presidente se mostra muito mais grave do que uma demonstração de alegria.
Em suma, o Brasil mostra ser uma república bananeira sem perspectivas de mudança de rumo: um deputado corrupto é absolvido e as pessoas se indignam com a dança de uma outra deputada no plenário. Precisa falar mais?

Campinas, 26 de março de 2006

quarta-feira, 22 de março de 2006

Para que lado?

Faz tempo que penso em escrever algo sobre as últimas velharias do nosso país (que repetem de maneira vergonhosa a política do império), mas sempre me vem à mente uma tirinha da Mafalda. Nela a Suzanita chega para a Mafalda: “Oi, derrotista! Que há de ruim? Como andam a política, as guerras, as injustiças sociais e todas as calamidades que você vive se amargando? E o futuro como será: negro petróleo ou negro pólvora, hein? Até logo; vou sobreviver um pouco por aí antes que a humanidade se acabe de uma vez”, à qual responde: “Derrotista é você. Não acho que as coisas estejam tão mal a ponto de fazer piada com elas”.
Me pergunto: de que vale dar a gravidade merecida aos fatos? Por que buscar alguma seriedade no escárnio que se transformou, ou melhor, que se revelou, a vida nacional? Mas, quando tento pôr ao menos um ar mais leve (tenho a dona Emengarda pronta para analisar as eleições deste ano) me pergunto: cheguei a este ponto, derrotista? Chegamos a este ponto, em que só nos resta rir para não chorar?
E não falo de nenhum fato específico. É o governo Lula e seus arrombos revolucionários (“revolução” de 64, é bom deixar claro), tentando – no melhor estilo FHC – desviar o foco das denúncias do denunciado para o denunciador. É Lula na Inglaterra falando de Charles Miller ao invés de Jean Charles. É Alckmin e o PSDB com seu discurso incorporado ipsis literis da TFP. É a “alternativa Serra” e suas rampas anti-mendigo. É ver carta na Folha falando que votaria em Fleury para governador. É Ubiratan (para deputado 11.111) sendo absolvido. É a direita raivosa (direitos humanos para humanos direitos) crescendo. É a esquerda burra em disputas fratricidas por qualquer aparelho, em nome de uma sociedade futura que ela tem preguiça de pensar, quanto mais de agir. São os políticos um pouco (atenção ao advérbio “um pouco”!) mais lúcidos que se não desistem da política, tampouco conseguem grande projeção nacional (por interesse daqueles que detêm o poder de “projetar”). São economistas discutindo números, marxista discutindo Marx, a classe média discutindo Big Brother e futebol, e pessoas (dessas de carne e osso, que respiram, pensam, e que chegam até a ter sonhos e a acreditar em Deus) morrendo de fome.
Diante do nosso belo quadro social e político resta a pergunta: para que lado fica a saída?

Campinas, 22 de março de 2006

domingo, 19 de março de 2006

Irmão Gallager e os Coelhinhos da Duracel, ou Oasis

Mais tietagem do que chou. Eis o chou do Oasis. Um chou bom, mas não tão empolgado quanto as 14 mil pessoas que foram assisti-lo.
Se o ótimo último disco do Oasis pode ser comparado (em qualidade, não em sonoridade) aos seus primeiros, o chou deixa um pouco a desejar. Primeiro, faltou empolgação da “banda” (já explico as aspas), segundo, faltou um lado B, ao menos, para aqueles que são fãs e não tietes da banda: preferiram ficar só nos sucessos de aceitação fácil.
Explicando as aspas: depois de várias mudanças de formação, o que sobrou do Oasis original foram os irmão Gallager. E no palco, ao menos, eles são a banda: Irmãos Gallager e os Coelhinhos da Duracel. Os coelhinhos seriam os quatro outros músicos que estavam no palco, que tocavam bem, mas que mal tinham direito a ficar na parte iluminada do palco. Pareciam mais banda de apoio (na verdade, dois eram mesmo banda de apoio). Se “destacavam” desses quatro o baterista, por ser filho do ex-Beatles Ringo Starr (tão destacado que pouca gente sabe o nome do infeliz), e o tecladista, que se não era Jesus Cristo era o Humberto Gessinger.
Quanto à banda de verdade. Liam até se mostrou simpático. Mas mais do que isso, mostrou que seus hormônios continuam na pré-adolescência, apesar do marmanjo já ter mais de 30 anos e as rugas começarem a aparecer. Parece criança que aprendeu a se masturbar a um mês e não consegue parar de bolinar. Deve ter saído um pouco triste de São Paulo, pois nenhuma rapariga da platéia entendeu que ele pedia para que levantassem a blusa (como todo chou), mas ganhou como prêmio de consolação, graças à chuva, algo parecido com um concurso de “wet shirt”, como o próprio disse. Já seu irmão, parado no seu canto com a guitarra, roupa simples – calça jeans e camiseta – mostrava-se muito mais atitude e conseguia levar a galera sem necessidade de ser imbecil.
Falei da chuva. Essa começou a cair assim que começou o chou, e só parou na penúltima música antes do bis. No início foi bom para refrescar, o problema foi quando começou a cair o mundo e a subir o (agradável) cheiro do rio Pinheiros, mas nada que atrapalhasse o chou.
Em suma: foi um bom chou, mas se conseguiu ser o chou da vida de alguém, sinal que essa pessoa precisa assistir a mais chous.

Campinas, 19 de março de 2006.

quinta-feira, 9 de março de 2006

Manual prático do ódio (inacabado)

Terminei de ler o livro Manual prático do ódio do Ferréz. Morador da periferia de São Paulo, Ferréz geralmente é tido como um autor que retrata o quotidiano violento do local em que vive. Não se pode dizer que isso está errado, mas reduzi-lo a um mero retratista de periferia é empobrecer sua obra. Assim fosse e seus livros seriam um mero renascimento do movimento naturalista do final do século XIX, início do XX, em que com um olhar “objetivo” retratava-se homens como animais.
Em meio ao cenário de violência Ferréz capta o humano das pessoas que há muito perderam o direito de sê-lo. Os sonhos, tanto os que não deixaram de ser apenas sonhos quanto os que ainda podem a vir a ser realidade, se a realidade deixar. A solidão, a busca de um sentido para a vida, se um dia a sociedade lhe permitir viver. Pois o livro trata de humanos, mas que trazem junto a marca de marginalizados. O que muitos ali querem não é nada além de uma vida pequena burguesa, como as que assistem na televisão: uma casa e uma família. Ou então seus sonhos são sonhos de consumo: um tênis caro, uma moto cara para impressionar as garotas, curtir a vida sem preocupação, assim como os jovens das classes abastadas curtem-na. Mas se esquecem do grande abismo que há entre a favela e o Morumbi: dinheiro. E se a propaganda diz que a vida só pode ser curtida se se tiver carro, moto, tênis, roupa, por que seria diferente para quem não tem dinheiro?
O trabalho honesto é a vontade da maioria, mas distante: a vergonha do ex-operário da Metal Leve que agora sobrevive de bicos, o salário que obriga família a recolher os restos da feira, o drama do pai morrer e a família não ter dinheiro para o enterro – ela que geralmente não o tem sequer para a comida; os “bandidos” não vendo a hora de trocar de vida e comprar um sítio, e voltar para a Bahia, dar uma vida boa para os filhos: com brinquedos iguais ao vistos na tv.
O livro trata também da degradação moral da periferia. Essa degradação vem junto com a degradação do próprio local. Sem qualquer perspectiva alguns jovens preferem ter fama – qualquer fama – a qualquer preço. Matam indiscriminadamente, somente para se sentirem temidos e falados, mesmo dentro da comunidade. A degradação vem também da vida sempre miserável, ou cada vez mais miserável. E a degradação vem também do Estado: não é o crime que corrompe a polícia, é a polícia que corrompe o crime: é o delegado corrupto quem dá o suporte ao bandido que não respeita a lei da periferia.
Mas ser da periferia não é estar fadado a virar bandido – como brinca a patroa ao gracejar com o filho da empregada. Ser da periferia é correr o sério risco de ser morto a tiro, por estar no lugar errado, que são muitos. O livro começa com dois salmos: o salmo 18, versículo 37, e o salmo 58, versículo 10; mas poderia muito bem começar com o pai-nosso: e não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. As perspectivas dos moradores da periferia são sempre péssimas – seja na honestidade, seja na malandragem –, mas o caminho que cada um segue deve-se também da história de cada um da sua escolha: se foi capaz de resistir à tentação, se foi capaz de escapar do mal.

Campinas, 09 de março de 2006