segunda-feira, 3 de julho de 2006

Um sentido para o absurdo

Assisti hoje à peça “Era... uma vez?”, montagem da companhia de teatro Terraço Teatro, com a direção de Alexandre Caetano. A peça é uma adaptação do ensaio do pensador argelino Albert Camus sobre o mito de Sísifo ao problema do transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Uma tentativa de uma releitura médico-conteporânea do mito grego.
O mito de Sísifo é o mito do inferno, do trabalho inútil, uma vez que o herói grego fora condenado a carregar uma pedra ao alto de um cume, de onde ela invariavelmente cai e o trabalho recomeça, sem perspectiva de final ou de mudança.
Uma peça feita em cima de um ensaio filosófico, não é de se surpreender que não seguisse muito os padrões consagrados à dramaturgia. Não se trata de nenhuma montagem revolucionária, mas é muito bem feita, não apela para clichês (mesmo sendo o pessoal saído do Instituto de Artes da Unicamp), e permite trabalhar a questão do trabalho inútil, do transtorno obsessivo compulsivo de maneira metalingüística.
Falei acima que se tratava de uma adaptação do mito de Sísifo – seu trabalho inútil, repetido todos os dias –, ao problema do TOC – seus rituais necessários para dar segurança à pessoa frente a vida, e que acabam por empurrar as pessoas ao isolamento. Melhor do que falar em adaptação é falar em sobreposição, comparação, uma vez que é claro quando é Camus e quando são relatos de TOC. Não se consegue, no transitar entre esses dois pólos, encontrar o equilíbrio para trabalhar Sísifo e TOC de maneira una. Não se trata de um problema. Essa falta de unidade permite um discurso incompleto (que eu tanto elogio) da peça, e é justo essa falta de algo que instiga o público a prosseguir com o questionamento, a investigar por si mesmo o que ainda há por dizer – assim o fiz, assim escutei outras pessoas fazendo.
Contudo, desse questionamento que percebi o que me parece o ponto fraco da montagem (junto com o risquinho no queixo dos atores, que me irritou): o mito de Sísifo trata do trabalho inútil – carregar uma pedra morro acima, que depois rolará morro abaixo, para ser carregada morro acima novamente, sem fim de perspectiva –; a leitura de Camus mostra como somos todos Sísifos em potencial em um mundo cujo trabalho é alienante e embrutecedor, em um mundo em que as pessoas não possuem mais uma finalidade transcedental que justifique a permanência aqui – em potencial porque a tragédia começa somente quando a pessoa se dá conta do absurdo da vida, e nem todas se dão conta disso. A interpretação do Terraço Teatro se centra no trabalho inútil – mas necessário subjetivamente – dos rituais neuróticos que dão certa estabilidade e segurança a essas pessoas. Passa ao largo de tentar respostas para o seu porquê. Sem dúvida, tentar dar indicações do porquê as pessoas acabam se aprisionando a rituais doentios, misturar observação com especulação, demandaria um estudo mais aprofundado dos temas, com grandes chances de resultar em uma polêmica, ou em fechar em uma explicação, que faria com que a peça perdesse justamente o discurso incompleto que faz com que ela dure mais do que o tempo em que os atores estão no palco. Mas é essa ausência que acaba fazendo com que peça transite entre os dois pólos sem encontrar o equilíbrio. O problema é que a montagem pode acabar passando a idéia do TOC como algo transhistórico, biológico, curável somente através de medicamentos. Faltou minimamente situá-lo no tempo.
No texto de apresentação da peça o diretor pergunta: “como tornar poético um comportamento patológico significativo sem trazer ao palco uma experiência apenas didática?”. Na ausência de se questionar o patológico (o que é, por que é, quem define?), a peça acaba transitando também entre esses pólos: o poético e o didático. Isso não tira os méritos da peça, apenas convida para uma continuação do debate (e da peça).

Campinas, 03 de julho de 2006

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