sábado, 26 de agosto de 2006

Consumo sem renda

Há alguns dias o presidente Lula comentou que se emocionara quando ouvira que um trabalhador tinha comido filé mignon pela primeira vez na vida. A propaganda política do candidato Lula anuncia que milhares de famílias tiveram acesso facilitado a diversos bens, como aparelhos de dvds e televisores.
Em 2002 o candidato Lula prometera criar 10 milhões de empregos. Criou 5 milhões, majoritariamente em setores precarizados que pagam até R$ 700,00. Prometera também dobrar o poder de compra do salário mínimo, então em R$ 200,00. Segundo a matemática do segundo grau, esta promessa também não foi cumprida, visto que R$ 350,00 não é sequer o dobro nominal de R$ 200,00, quanto mais dizer que seu poder de compra seja o dobro – constatado que nesses quatro anos, por mais que o governo tenha “domado a inflação”, como gostam de dizer os “especialistas” da área, não houve deflação.
Se não houve aumento significativo do salário mínimo, nem do salário médio, nem na porcentagem de empregados, de onde saíram essas “boas notícias”, de que o brasileiro está podendo desenvolver seu impetus consumistas há tanto tempo engasgado? Lula mente? Mentir, não mente, mas age de extrema má fé. O aumento do consumo, se não se dá por aumento da renda, só pode se dar por aumento do crédito. Consumidores felizes, bancos mais ainda! A facilidade para se obter crédito, aliada à ignorância de quase a totalidade da população frente ao funcionamento do sistema de crédito, compra a prazo e outras alegrias do consumista-imediatista; e a não melhora dos salários, cria uma bomba relógio que já começa a explodir, como reportou a Folha de São Paulo desta semana.
Se Lula fosse apenas candidato, e não presidente-candidato, talvez se emocionasse mais com o trabalhador que está tomando um empréstimo a juros exorbitantes para pagar os juros do empréstimo tomado a juros quase tão exorbitantes quanto, tomado, por sua vez, para pagar os juros quase tão exorbitantes quanto de um empréstimo tomado para comprar uma televisão nova – ou, quem sabe, para comer filé mignon pela primeira vez na vida. Mas Lula é presidente-candidato, esse trabalhador enforcado não lhe interessa. Lembrar que ele existe é coisa de “fracassomaníaco”, como diria seu antecessor.
Por falar em antecessor, o governo Lula parece seguir o mesmo script de FHC: um primeiro mandato maquiado, fazendo artificialmente a alegria de uma parte da população, e um segundo mandato apenas administrando a crise preparada no mandato anterior. Ainda não começou seu segundo mandato – que sequer está garantido, é bom lembrar que as eleições ainda não ocorreram – mas uma coisa curiosa que o mecanismo da reeleição resultou é que as bombas têm estourado na mão de quem a armou. Quem sabe se se fizesse política com uma visão para além do curto prazo não só a bomba não estouraria no próprio colo, como sequer seria armada. Mas Lula já mostrou que sofre de miopia brava.

Campinas, 26 de agosto de 2006

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Ah, as maravilhas da tecnologia...

A tecnocracia da Unicamp encheu a boca para falar das maravilhas do Cartão Universitário, conhecido inicialmente como CU, que depois eles tentaram chamar por Cartão Inteligente, um nome menos constrangedor (mas completamente inverídico). A grande inovação do CU era que se tratava de um cartão atrelado a um banco privado e a uma operadora de cartão de crédito, que tinham, inclusive, direito de estampar suas logomarcas maiores do que o símbolo da universidade. Dado a recepção nada amistosa dos alunos da Unesp – que implementou primeiro tal modelo de cartão –, com ocupação de bandejão por várias semanas e ondas de protesto, a Unicamp evitou problemas parecidos e mudou a aparência do tal CU, deixando somente seu símbolo – sabe-se lá a qual preço no contrato firmado sob sigilo com o banco e a operadora de cartão.
Outra grande vantagem que diziam que o CU traria era maior agilidade e modernidade nas operações corriqueiras dentro da universidade – como o empréstimo de livros. Uma grande mentira, visto que, salvo a entrada no bandejão, as facilidades acarretadas pelo cartão dependiam do código de barras que ele trazia estampado e que o cartão antigo também trazia (não estou aqui encarando como uma “facilidade” dificultar, atrapalhar, e alongar a entrada em bibliotecas e outros locais da universidade); mas aproveitaram a deixa para dizer que era tudo graças ao “Cartão Inteligente”.
Antigamente, o bibliotecário precisava digitar o seu código de estudante, o código do livro, pegava um carimbo e marcava na sua carteirinha a data de devolução do livro. Hoje, ele passa seu CU no leitor ótico, depois o código de barras do livro e carimba na fim do livro a data de devolução.
Eis minha grande surpresa hoje com essas maravilhas tecnológicas, quando fui renovar um livro pego na biblioteca central. Tratava-se do livro “Uma teoria da justiça”, do filósofo John Rawls, uma importante obra da filosofia política da segunda metade do século passado. A Unicamp possui apenas dois exemplares do livro e não fosse eu com minha mania de ser honesto, a partir de hoje teria apenas um.
Semana passada, havia pego o referido livro, mas no sistema estava registrado outro, um tal de “Speed-the-plow” (?!), de outra biblioteca. Sorte minha que o livro estava na prateleira e assim ficou evidente o equívoco. Resolvido o problema, renovei o livro do Rawls, ou melhor, agora sim retirei ele conforme manda o figurino. E não é que descubro que não estou com esse livro emprestado? Ao invés de registrar na minha conta, saiu na de um outro Daniel. Imagino se eu resolvesse ficar com o livro pra mim, pelo menos por ora, enquanto preciso dele, e que me pouparia de ter que ir toda semana renová-lo, ou mesmo ter que devolvê-lo, caso alguém resolvesse. O pobre infeliz do outro Daniel ganharia uma suspensão considerável (são quatro dias de suspensão por cada dia atraso) enquanto não restituísse a Unicamp do livro que perdera (na internet, o livro está na faixa do R$ 90,00).
Para surpresa ainda maior, fui verificar quantos livros emprestados eu tinha registrado no sistema, e dos cinco que tenho aqui em casa (descontando o supracitado), apenas três estão constam no sistema. Ou seja, poderia, em uma semana, ter ganho três livros (dois deles importados)! Não é de surpreender que são muitas as histórias de livros que desapareceram desde que o sistema foi mudado. Mas o importante é que a Unicamp parece moderna, chique, cosmopolita, vanguarda, tecnológica, in para todos aqueles que vêm de fora visitá-la. Para a tecnocracia, diante de todas as vantagens que a evolução e a tecnologia trazem, todos os custos são insignificantes.
Por isso que eu sempre digo: “cartão inteligente: burro é quem usa”.

Campinas, 14 de agosto de 2006

PS: Mandei minha reclamação pra ouvidoria da Unicamp, ligada ao sistema de ouvidorias do estado. Vamos ver o que dá, se é que vão responder; ou se eu fiz outra vez papel de palhaço-cidadão.

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

Ritmo

Ritmo. Uma das muitas coisas que caracteriza nossa atual sociedade é o ritmo. Parece ser um imperativo que tudo tenha um ritmo, uma cadência: a sociedade, a cidade, a fábrica, as pessoas. Geralmente o ritmo destas é ditado pelo ritmo das demais. E poderia ser diferente? É o que geralmente me pergunto, sempre em busca de uma resposta afirmativa.
Costuma-se dizer que em nossa sociedade há uma grande liberdade para as pessoas buscarem seu rumo, trilharem seu caminho, tornarem-se, em certa medida, senhores de seus narizes. Mas tente caminhar a passos de tartaruga, hesite entre escolher ir pela direita ou ir pela esquerda, pare, no meio da tarde, para ver uma gata carregando seus filhotes, e veja o que acontece. Se você tiver a oportunidade de ter tais liberdades, muito provavelmente não lhe ocorrerá nada, além de um grande peso na consciência.
Nosso mundo é hoje marcado pelo progresso, pelos carros que vão de zero a cem quilômetros por hora em seis segundos, pela vias expressas de mão única, separadas por canteiros e quase sem retornos; pelas oportunidades únicas de alguém que te ligou no celular na hora em que você entrava no cinema; pelas descobertas da ciência que se acumulam a cada dia, pelas decisões ousadas, pelas pessoas de convicções firmes.
Parar para contemplar a paisagem é desperdício, perda de tempo, e time is money! Hesitar sobre que decisão tomar é prova de fraqueza, e a garantia indubitável do fracasso, pois o mundo é dos fortes, dos audazes! Achar que errou e querer voltar atrás é suicídio na certa, é querer dar marcha ré em via expressa. Ir a um ritmo mais lento? Cada um faz o que quer, mas a vida vai passar por você, você vai sendo ultrapassado, se torna um retardatário, e quando você chegar as portas já estarão todas fechadas.
A vida tem um ritmo, ou você segue, ou você sobra. Àqueles que têm oportunidade de ir mais lento do que a “vida”, mais do que oportunidade, precisam de coragem e persistência. Mas um dia você pára. Se a “vida” tem um ritmo e a sua tem outro, o que fazer? Conviver, e não se adaptar. E você começa a notar as pessoas te “ultrapassando”, e não se incomoda, pois não está disputando uma corrida. E começa a se preocupar que está postergando seu futuro, e percebe aí a oportunidade de antecipar o presente. E começa a se questionar sobre quando a morte chegar, e não vê interesse na questão, pois a morte virá, independente do ritmo que se siga, e então, sim, as portas estarão todas fechadas.
Então um dia você se pergunta: por que eu preciso de um ritmo?

Campinas, 04 de agosto de 2006