domingo, 8 de outubro de 2006

O desgosto, visita à dona Josefa

Muito ocupado, somente este fim de semana arranjei um tempo para visitar dona Josefa, do Clube da Sogra, que há tempos está de cama. Dona Emengarda já me havia dito qual era seu problema: desgosto. “Meu filho, a escolha do presidente nos tempos da ditadura era mais emocionante: havia pelo menos a possibilidade de mudar alguma coisa, se se conseguisse tirar os linhas dura do trono. É certo que nós não participássemos da escolha, mas e hoje, participamos? Passei por duas ditaduras, e acho que nunca me senti tão alheia da política como hoje, vivendo numa democracia – e olha que eu sou mulher e no meu tempo não era fácil!”
Tentei dar uma suavizada: e a questão das liberdades, e a repressão? Mas dona Josefa estava bastante azeda – nada surpreende, se era essa a razão dela estar de cama: “Que liberdade, meu filho? Que liberdade tenho eu com minha aposentadoria de 400 reais, impedida de me locomover porque dependo de ônibus, mas só se me levantarem sou capaz de subir os degraus de um? A única grande liberdade que tenho agora é que posso me endividar com mais facilidade. E esse negócio de repressão e tortura, a dona Emengarda que sempre diz: 'quem diz que na ditadura é que tinha tortura é porque é um branquinho com dinheiro! A diferença da tortura dos militares pra de hoje é que hoje ela voltou a ser destinada só aos pretos e pobres, deixou de ser democrática'. E dona Emengarda já está quase perdendo a razão. Eu lembro que meu menino mais velho às vezes ia se meter em manifestação contra os militares. Chegou a apanhar algumas vezes, ser detido, mas como não era envolvido com politicagem nunca teve maiores problemas – ainda bem! Esses tempos o filho dele foi participar de uma manifestação por não sei o que, ou contra o governo, não sei, na Avenida Paulista. Apanhou mais do que o pai, foi detido, e ainda ficou horas preso num quartinho, sofrendo pressão psicológica. Meu filho, você precisava ver o estado que o pobre garoto chegou em casa.”
Vendo que se a conversa seguisse por esse rumo não mudaria o tom, tentei mudar de conversa. Mas dona Josefa queria falar de política: “o primeiro turno foi semana passada, quer assunto mais quente?” Digamos que não temos muitas afinidades com urubus – apesar de não termos nada contra a simpática ave – então política era realmente um assunto bem mais interessante do que aviões que caem. Ainda consegui pôr a conversa em termos um pouco menos dramáticos: viu o Suplicy? E o Gabeira? Que surpresa na Bahia, hein? A conversa fluiu mais um tempo, até que se fez hora de eu voltar à minha casa. E na hora de me despedir, no momento em que desejei melhoras à dona Josefa, é que me dei conta do seu mal. Não consegui disfarçar a expressão e ela percebeu: “É, meu filho. 2006 está feio, mas que perspectivas você anda vendo para 2010?” Insisti no desejo de melhoras, mesmo vendo que as perspectivas andavam desoladoras. “Isso passa, a gente tem que se acostumar, ou então morre cedo. Eu pretendo viver mais um pouco.”
Não tivesse que trabalhar amanhã, e eu também cairia de cama: desgosto.

Campinas, 08 de outubro de 2006

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