domingo, 23 de dezembro de 2007

Excesso zero

Almoçando em uma cantina na universidade, vejo na mesa ao lado que um casal divide dois litros de refrigerante. Comento com a amiga que me acompanha que quando eu era criança, início da década de 90, refrigerante era coisa de domingo, e dividíamos em quatro uma garrafa de 700mL. Lembro do domingo de manhã indo até despensa escolher o refrigerante a ser gelado para o almoço – geralmente de framboesa (geralmente ou será que a memória me trai por ser meu favorito?). De qualquer forma, ainda que fôssemos capazes de beber mais, aquela garrafa nos satisfazia até o próximo domingo.
No meio da tarde, quando fui lanchar, uma pessoa ao meu lado bebia 600 mL de refrigerante “zero” e comia um pacote de biscoito de polvilho. Essas duas cenas – ou seria melhor dizer detalhes? – me fizeram lembrar de Jin, personagem secundária do livro O grito silencioso, escrito pelo japonês Kenzaburo Oe, em 1967.
Jin é uma mulher de um decadente povoado que come compulsivamente e é tida pelos demais habitantes locais como “a mulher mais gorda do Japão”, e por isso é vista como uma espécie de totem da comunidade.
Seu marido e filhos são magros, por sacrificarem parte do que comem à mulher. Em certa altura, alguns acontecimentos permitem que Jin tenha, pela primeira vez desde que começou com seu distúrbio, mais comida do que pode comer – ainda que seja comida enlatada. Diante daquela abundância, expressa seu sonho de poder comer tudo de uma vez, saciar de uma vez por todas seu apetite, e se prostrar à espera da morte. Sentimento semelhante o protagonista vê no filho de Jin, que pode, finalmente depois de muito tempo, comer o quanto quisesse. E o que faz é se entupir de bolachas até vomitar, para poder então recomeçar a comê-las.
Não sei qual era a situação do Japão quando o livro foi escrito, mas ele me parece ilustrar a chegada do capitalismo consumista em uma terra marcada até há pouco pela tradição. Algo semelhante, me parece, aconteceu no Brasil há cerca de dez anos, com o Plano Real, quando a classe média pode entrar no mundo do consumismo desenfreado. Entramos tarde mas, infelizmente, entramos. Debord, mais ou menos na mesma época em que Oe lançava O grito silencioso, comentava que as sociedades capitalistas avançadas haviam deixado de produzir produtos para produzir lixo – dada a descartabilidade de tudo, necessária para a manutenção do sistema.
Mas o sistema, sob o risco de produzir “mulheres mais gordas do Japão” em série, soube se adaptar. Os lixões continuam distante dos nossos olhos, e a abundância de comida é compensada com produtos diet, light, “zero”. Podemos comer e beber até nos empanturrar, até vomitar, porque não corremos o risco de engordar, E ainda que engordemos, uma cirurgia de redução de estômago nos permite recomeçar o ciclo novamente.
Tentamos saciar não nossa fome e nossa sede, mas nossa angústia de viver uma vida incerta em um mundo incerto a caminho de uma morte incerta. Como Jin, sofremos de um distúrbio, sintoma de uma anomia, na linguagem sociológica de Durkheim. Queremos consumir tudo, inclusive a nós mesmo – a consumação total (talvez bem representada pela ameaça nuclear, fortemente presente na década de 1960). É o que fazemos, inconscientemente, não sei se com esperança, ou com um simulacro de, estimulado pela publicidade e pelas embalagens bonitas e coloridas, reatualizando o velho ditado “cabeça desocupada, morada do diabo”. Sendo o diabo, agora, mais do que nunca, identificado antes conosco mesmos, com nossa consciência, nossa subjetividade, enfim, nossa condição humana; e a ocupação da cabeça não sendo mais necessariamente com trabalho ou orações, mas com produtos, com coisas inúteis, sem interesse, descartáveis, com comida em excesso – mas que, assim como não nos saciam, também não engordam, nos permitindo seguir nesse ciclo até o dia em que nos encontraremos com o que, no fundo, parece que almejamos, ao mesmo tempo que tememos: a consumação final, a morte.

Campinas, 29 de novembro de 2007 – Pato Branco, 23 de dezembro de 2007

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Outonos

Fim de semana fui ao Espaço Cultural CPFL assistir a um recital de música erudita, inserido no módulo “Quatro estações para o século XXI: de Vivaldi e Piazzolla à pós-modernidade”, o qual está no projeto “O fim de um mundo não é o fim do mundo”. A apresentação da vez era “o outono”. O Outono, das quatro estações de Vivaldi, Otoño Porteño, do Piazzolla, e Outono do século XXI, da compositora brasileira Silvia de Lucca, composta especialmente a pedido da CPFL.
Antes da apresentação da obra, uma breve entrevista com a compositora, que contava como buscara inspiração para compô-la, dizendo que aqui todo mundo só pensa no inverno ou no verão e o outono fica algo meio esquecido, e, por isso, ela considerava aquela composição como algo muito seu. Gostei da música, apesar de reconhecer certa dificuldade com a música contemporânea – é certo que não me impressinou como, no dia seguinte, a Orawa, do Wojciech Kilar, apresentada pela Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. Mas depois de um tempo me bateu um certo incômodo: outono?! A que estação do ano remetia aquela música?
Comecemos pelo problema mais em voga: em tempo de mudanças climáticas, como falar em estações do ano? Se não me falha a memória, o dia mais frio do ano em Campinas foi em maio, ou seja, no outono, e não no inverno. O mais quente, foi há pouco, em outubro – primavera, e não verão. Se mudanças climáticas estão em processo, ainda se discutindo o que será do clima daqui cem, cinqüenta, dez anos, como falar em outono do século XXI? Talvez mais apropriado teria sido chamar o módulo de “Quatro estações na virada do século XX para o XXI”, sacrificando a pretensão de vanguarda em nome da não-contradição com o que o projeto discutia.
Isso já seria uma questão assaz interessante, mas há outra, talvez mais inquietante. Não conheço o outono no Mediterrâneo – segundo os livros, é uma estação intermédia entre verão e inverno, em que as árvores perdem as folhas. Buenos Aires, só a conheço do seu calor infernal do verão, mas, acreditando que os livros do ensino médio não estão tão errado assim, o outono deve, em boa medida, lembrar o da Itália. Mas estamos no Brasil, mais especificamente no estado de São Paulo. Silvia de Lucca, apesar de ter morado no exterior e no sul do país, é brasileira e compõe para um espaço paulista. O que é o outono no Brasil? Nas paredes do auditório projeções de folhas caindo talvez dessem a dica: não estamos falando de Brasil. No Brasil as folhas não caem no outono e, em boa parte do país, sequer há algo que pode ser claramente definido como outono. Causa espanto, portanto, o fato da compositora (que também é psicóloga) se admirar que aqui as pessoas costumem dividir as estações do ano em verão e inverno: existe realmente outra estação além dessa duas?
Não vou pôr toda a culpa na compositora, que apenas atendeu a um pedido e falou algumas besteirinhas menores; convém questionar o curador do módulo, Henrique Lian, e a própria concepção do projeto. Na página da CPFL diz que ele pretende não apenas realizar diagnósticos, mas propôr uma agenda de intervenção. Que diagnósticos são esses que não trabalham sequer com certas especificidades brasileiras bem conhecidas, importando modelos do exterior que não condizem com nossa realidade, mesmo uma das menos suscetíveis a grandes querelas, as divisões das estações do ano? Que agenda de intervenção pode ser elaborada a partir de tais diagnósticos? A necessidade premente de perda das folhas por parte das árvores no decorrer do outono? Quem sabe aí estaremos aptos a discutir as questões brasileiras, pois estas passarão a se encaixar nos modelos dos países centrais.
Exagero ao fazer tamanho estardalhaço por conta de uma composição em homenagem a uma estação do ano que não existe e por causa de folhas que não caem. Fingir que o outono existe para compor um concerto não traz grandes transtornos à nação – pelo contrário, pode fazer bem, ao nos presentear com boa música. O problema está que nos círculos intelectuais (lembremos que o Espaço Cultural CPFL é um espaço que costuma requisitar curadores de grande quilate nos meios acadêmicos e intelectuais para dirigir seus módulos – o próprio Lian tem um currículo muito bom) essa vontade de encaixar o país em modelos exógenos não se restringe às estações do ano, e quando se trata da sociedade, não raro transformar a fórceps o Brasil em um país modelo do primeiro mundo traz tristes conseqüências a pessoas que passam frio, sede ou calor, independente de existir outono e primavera, ou termos apenas inverno e verão.

Campinas, 14 de novembro de 2007

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Carta pra folha: Memória

Na esteira do artigo "Lembretes", do professor Marcos Nobre (Opinião, 6/11), sugiro à Folha a criação da seção "Há 50 dias", para manter a memória dos seus leitores sempre fresca quanto aos comportamentos pendentes de explicação dos seus homens públicos.

Campinas, 07 de novembro de 2007

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Uma árvore, um livro, um filho

Lembro-me de que quando era pequeno – o que não faz tanto tempo assim, mas faz alguma diferença neste tempos de rápidas mudanças – ouvia de algum lugar – dos gibis da Turma da Mônica, talvez? – que uma pessoa, para que sua vida fosse completa, precisava plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. Condições necessárias mas não suficientes. Pelo menos foi o que sempre entendi, já que sempre julguei reduzir a vida a uma árvore, um livro e um filho fosse um tanto limitado – por mais que nunca tenha tido um filho para saber o tamanho da dor de cabeça nem nunca conseguido escrever um livro.
Faço esse preâmbulo todo porque tenho pensado qual seria a validade e a aplicabilidade hoje de tal pensamento do século passado (me sinto quase um ancião citando “no meu tempo” e com isso remetendo a um século passado).
Da árvore, é fácil. Basta entrar em uma dessas páginas da internet em que se lê “clique aqui e plante uma árvore”, clicar no local indicado e ir dormir com a certeza de já ter concluído um terço dessa trilogia vital.
Com filhos não se tem a mesma facilidade, felizmente! Não somente isso. Uma série de empecilhos são fornecidos (felizmente, novamente!) para que novos rebentos não venham ao mundo a cada fornicação, arrebentando, assim, nosso já superpovoado mundo. Há aquelas pessoas que gostariam que se encaixasse na categoria filho seu cachorrinho, ou seu animalzinho de estimação. Não raro pessoas como essas chamam seus “filhos” – ou aceitam que sejam chamados – pela mesma alcunha que se dá à garrafa descartável de refrigerante. Isso, para mim, já dá indicação suficiente de que não devemos levá-las tão a sério em sua reivindicação. Há ainda aquelas que, como Machado, se questionam se se deve transmitir o legado de nossa miséria, se vale a pena pôr um filho em um mundo como esse. Como mundo – até onde podemos conhecer – só há este, trata-se de uma questão que não se pode fugir, mas que é muito extensa e não quero tratar aqui.
Um tanto fora da moda, citei Machado. Isso me faz lembrar: resta o livro. Como hoje lê-se cada vez menos, cheguei a imaginar que ele poderia ser substituído – talvez seja melhor dizer atualizado – por um filme. Mas então lembrei do Alexandre Frota. Se já plantou uma árvore, não sei. Mas vimos que isso é fácil de fazer. Se tem um filho, também não sei. Mas fornicador profissional que é, creio que tem conhecimento suficiente para fazer um rapidinho, talvez até com alguma plasticidade – mas torço, de coração, para que ele seja do grupo dos que se questionam se vale a pena pôr um filho no mundo, ainda que tenha sérias dúvidas se ele é capaz de tão elevado exercício mental (poupo-me de levantar dúvidas mais sobre o senhor supracitado). Pois bem, Alexandre Frota já fez filme, que eu cria ser o substituto do livro neste tempo atual, mas mesmo assim escreveu um livro. Nunca vi um filme seu, nem li o livro que (diz que) escreveu, e não me sinto nem um pouco infeliz por isso (talvez na situação contrária me sentiria, sim, infeliz; envergonhado, ao menos). E o fato de não conhecer sua obra pouco importa para o que estou escrevendo, já que não faço aqui uma crítica de arte, mas um comentário sobre um comportamento eventualmente citado nos gibis da Turma da Mônica (creio que eram nos gibis da Turma da Mônica). Talvez com o exemplo do Alexandre Frota possamos desconfiar de que o livro não tenha sido substituído de todo, mas que sozinho já não basta. A trilogia vital virou tetralogia, com o livro com papel acessório – acessório inútil, convenhamos, pois quem algum dia se interessou em ler o livro do Alexandre Frota?
Encerremos, enfim, essa conversa de cerca lourenço e adentremos ao móbil desta crônica.
Com as mulheres tenho cada vez mais a impressão de que a tetralogia vital tem se imposto de maneira muito mais contundente. Mantém-se os pilares da trilogia: plantar a árvore, dado que é fácil; o filho também, já que nossa sociedade insiste na crença do tal de instinto materno, “fato” que as mulheres – salvo as feministas e as inteligentes – aceitam sem questionar; já o livro de nada vale se não for acompanhado da capa da Playboy. Eis aqui o quarto pilar da trilogia transformada em tetralogia. Para as mulheres da nossa sociedade, se não posou nua para Playboy, não é uma mulher completa. Pouco importa o que fez ou como é. Ou melhor, importa como é, e aí descobrimos que mulher de verdade só as gostosonas enxutas – nem que gostosonas enxutas made in photoshop.
Tudo isso vêm à tona com a senhora Mônica Veloso fazendo pose de senhorita na próxima Playboy. Para ela plantar uma árvore, já dissemos, não será difícil. Um filho, já tem. Muito bem tido, por sinal, com um figurão da política nacional. E graças a esse rebento pode posar para a Playboy – prometendo para breve seu livro. Não sei bem qual a relação de parentesco dela com Renan Calheiros (aproveito para admitir o que aqui se desvela: não me interesso muito por antropologia, não), além de que é mãe do filho dele. Mas é por isso – ser mãe do filho do Renan – que ela é conhecida. E Renan é conhecido não por ser um garanhão comedor de garotinhas fúteis e gostosas, mas por político comedor de migalhas do Estado e dos governos. Não que Mônica Veloso não possa ser fútil e gostosa – não a conheço para saber da sua futilidade nem vi sua Playboy para saber se é gostosa –, mas certamente não é mais garotinha, a Lolita que Playboy está sempre à caça para disponibilizar aos seus ávidos, digamos, leitores. Também nada contra uma quarentona posar nua, tivesse ela ganhado notoriedade por seus atributos físicos. Mas Mônica Veloso não ganhou a notoriedade instantânea que possui por seus atributos físicos – talvez tenha ganhado a atenção de Renan por isso, mas trata-se de assunto particular deles –, mas por – sem querer – acabar se tornando peça-chave de uma disputa política por poder. E aqui pergunto: o que tem a ver ficar pelado com disputa política? Se não tem nada de mais ligar uma coisa com a outra (como muitos muito provavelmente dirão), por que convidaram a Mõnica Veloso e não o Renan Calheiro para posar nu para a capa da próxima revista? Ou os dois juntos, para contracenar com o Alexandre Frota? Será que na nossa sociedade a mulher só tem valor se for gostosa, enquanto o homem se garante por ser inteligente ou poderoso? Se uma mulher não vale os dez reais da Playboy (quanto custa uma Playboy?), não vale nada.
Falo da Mônica Veloso, mas poderia ter citado a secretária do Marcos Valério, Karina Somaggio, que não sei se chegou a posar nua, mas que entrou na bolsa de apostas das próximas capas da revista, quando no seus nove minutos de fama.
Em suma, pelo andar da carruagem, espero que a próxima Marilena Chauí que aparecer por aí não precise posar nua para a Playboy para só então estar apta a lançar seu livro de filosofia, sobre a hermenêutica do ser ou o que for. Sou dos que ainda acham que mulher é algo um pouco além do que uma boneca inflável aquecida.

Campinas, 05 de outubro de 2007

domingo, 9 de setembro de 2007

Xamãs midiáticos

Ainda estou me perguntando se o programa que escutei pelo rádio agora há pouco era para valer ou era algo como um humorístico meta-lingüístico. Chama-se “No divã com Gikovate” e, aparentemente, se pretende sério. Nele, pessoas manda e-mails ou telefonam e o apresentador supra-citado dá o seu palpite como bom psicólogo.
Escutei apenas o início do programa, o primeiro telefonema. Nele, uma mulher de 50 anos e que fazia terapia, contava brevemente seu histórico de vida e seu problema atual (com boa vontade, esse breve se aproximou de um minuto), e questionava, por fim, ao sábio psicólogo: “estarei eu me encaminhando para a homossexualidade?”. Este, como bom apresentador da indústria cultural, não podia deixar a pobre senhora que se interessava por pessoas de classes subalternas sem uma resposta. E não convinha, claro, qualquer resposta, como “e eu sei?” ou “já conversou isso com seu terapeuta? Ele é quem tem condições de te dizer qualquer coisa, eu, o máximo que posso, é desejar-lhe sorte e sucesso”. Nem mesmo era interessante para o horário e o meio questionar um pouco mais, “qual a importância de definir isso agora para a sua vida?”. O que o senhor Gikovate sentenciou, depois de um breve momento de silêncio destinado à reflexão (coisa de cinco segundos), foi “não”. E ainda justificou. Disse que tendo em vista todo o histórico de vida da mulher, suas experiências pregressas, ela já não estava mais em tempo para mudanças na orientação sexual. Impressionante o tom professoral e certeiro do apresentador! Contudo, desconfio que as profecias telefônicas do Walter Mercado deviam ter um melhor embasamento do que os conselhos do nosso psicólogo radiofônico.
Não vou me perguntar o que leva um psicólogo (que nem é tão desconhecido assim) a fazer esse papelzinho ridículo. Mas chama a atenção o fato de uma mulher aparentemente madura, experiente e que tem seu terapeuta, ligar a um xamã midiático pedindo uma resposta simples, um sim ou não. A necessidade de ser classificada: o que sou? Como se esse ser fosse capaz de ser apreendido em um minuto em uma conversa telefônica, e a partir da qual ela guiará sua vida. Guiará para onde? A certeza de saber ser heterossexual talvez dê à mulher a impressão de um caminho iluminado, mas que iluminação é essa, que caminho é esse? Seremos nós, será a vida passível de esclarecimentos tão simples: sim ou não, masculino ou feminino, hetero ou homossexual? É curioso: se a mulher fazia terapia já há certo tempo, teria ela ficado encabulada de fazer tal pergunta ao seu (ou sua, não sei) terapeuta? É uma hipótese, mas julgo improvável. Acredito que a pergunta já tenha sido feita reiteradas vezes, mas a mulher nunca tenha recebido do terapeuta a resposta desejada, o sim ou não. E nesse nosso mundo binário, enquanto não conseguimos definir com clareza o que somos, resta-nos certa sensação de desamparo, de náufragos em nosso próprio corpo. Então buscamos essa definição clara e precisa do que somos e do que os outros são. Como o náufrago que se agarra desesperadamente a uma tábua que restou do que antes era um barco, e com ela pode desfrutar de um breve instante livre do medo do afogamento, nós nos a agarramos qualquer tábua. E passamos a ter a sensação de que rumamos seguros para terra firme.

Campinas, 09 de setembro de 2007

sábado, 1 de setembro de 2007

A esquerda na sua própria arapuca

Aviso logo de cara: trata-se de uma interpretação a partir do capítulo “A social-democracia como um fenômeno histórico”, do livro Capitalismo e social-democracia, em que Adam Przeworski descreve a entrada e a acomodação dos partidos operários (sociais-democratas, trabalhistas e afins) no jogo político liberal-burguês, e que não pude discutir em sala de aula.
Atendendo a uma estratégia de agir dentro e fora do sistema é que a esquerda revolucionária resolveu lançar seu partido na arena política. A entrada desses partidos serviu para desvelar o caráter de classe – não neutro, portanto – do Estado e da política, ao mesmo tempo que unia e fortalecia a identificação da classe operária. O raciocínio era que, com o capitalismo crescendo e a classe operária acompanhando esse crescimento, em breve os partidos operários seriam capazes de conseguir a maioria absoluta necessária para implementar a revolução de dentro do sistema. Já afirmar o caráter classista da política, além do fortalecimento da classe operária, serviu para desmanchar o discurso da pretensa busca pelo bem comum: o que cada partido buscava era o bem para sua classe, seus simpatizantes. Porém, junto com essa máscara, a esquerda jogou fora também o ideal burguês do bem-comum.
E o tempo foi passando, mudanças aconteceram no sistema capitalista, e com tais mudanças o ritmo de crescimento do operariado diminuiu, ascendendo de maneira expressiva as classes médias. A previsão de que o partido operário conseguiria maioria absoluta não se realizou, e a estrutura dos sistemas políticos impediam que nos países esses partidos, por mais que se tratassem da maior força política individualmente, fossem capazes de governar sozinhos, sem um governo de coalizão com outros partidos – o que ia contra a estratégia de revolução por meio das eleições, uma vez que tais coligações significavam necessariamente o abandono de certas propostas mais radicais. Como (para certa ala do movimento operário) tampouco convinha um partido que somente disputasse as eleições, sem trazer ganhos para seus eleitores, os partidos operários foram obrigados a ampliar sua base. Fizeram-no não mais declarando-se partidos operários, mas partidos de todos os trabalhadores. Com isso, sua base potencial crescia de cerca de 40% da população para próximo de 95%. Segundo Przeworski, com essa ampliação da base potencial de eleitores, os partidos operários perderam a capacidade de organizar o operariado como antes, e o aumento da base tampouco bastou para prescindir de coalizões.
Talvez um dos motivos da dificuldade dos partidos de esquerda de conseguirem a maioria absoluta, mesmo tendo ampliado sua base potencial de eleitores, tenha se dado por conta da tática utilizada inicialmente. Ao passar a se identificar como partido dos trabalhadores, e não somente de uma classe de, os partidos de esquerda tentavam retomar o ideal por eles destruído inicialmente, a idéia de que a política era feita para a busca do bem comum. Ocorre que a direita, nessa época, já havia incorporado a idéia de política como busca dos interesses particulares, reforçando clivagens eleitorais e abandonando, ela também, o ideal liberal. A teoria política do economista neoliberal James Buchanan, por exemplo, afirma claramente que a política é lugar de disputas de interesses pessoais (ou de grupos, mas nunca de classes, óbvio), e que o tal bem comum era o resultado imprevisto desses diversos conflitos de interesses. Temos hoje, portanto, quase que uma inversão de papel: a direita a afirmar o caráter interesseiro da política, a esquerda a tentar reconstruir um ideal de bem comum. Não por acaso, como comentou uma amiga, a revista Veja reforça em matérias quase mensais clivagens no Brasil: ricos x pobres, sul x norte, etc, ao mesmo tempo que o governo atual anuncia “Brasil, um país de todos”, ou diversos movimentos bradam com seu plebiscito “a Vale é nossa”. É a esquerda tentando desarmar a arapuca que ela tão bem armou.

Campinas, 01 de setembro de 2007

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Preparar para o trabalho

Pode dar a impressão de que quero ser chistoso no que vou falar agora, mas digo-o sério: o curso de filosofia não me preparou para o mercado de trabalho. Tampouco falo aqui o óbvio, ainda que não se trate de nenhuma novidade. Uma faculdade de engenharia não prepara para o mercado de trabalho somente ensinando cálculo e aspectos técnicos da profissão, há algo mais profundo, que adentra a “alma” de quem encerra a graduação. Uma faculdade filosofia, óbvio, não vai me dar o instrumental para ser engenheiro, mas quando digo que não me preparou para o mercado de trabalho é justamente por conta desse outro aprendizado, sutil, mas poderoso, que me faltou.
Dizia Foucault, em Vigiar e Punir, que a escola não é nada mais do que um aprendizado do bom-comportamento (estou vulgarizando bastante Foucault), um adestramento para o ritmo fabril, uma versão diluída do controle encontrado na prisão. É justamente esse treinamento que a faculdade de filosofia não me deu: não fui bem adestrado para ficar oito horas por dia me comportando como um macaco adestrado, em trabalhos sem criatividade, repetindo esquemas prontos, ainda que tais esquemas exijam criatividade.
Não tenho vergonha alguma, pelo contrário, em admitir que das 37 disciplinas que cursei para me bacharelar, estudei mesmo para 16, segundo meus cálculos aproximados, das quais quatro eram disciplinas de orientação de estudo e, portanto, não havia aula. O resto foi para “queimar crédito”, como se diz na Unicamp. Felizmente, o tempo que teria perdido em sala de aula, graças a uma frouxidão difundida no departamento de filosofia quanto à presença, pude estudar e me dedicar a essas 16 disciplinas, assim como estudar muita coisa por fora. Creio que foi graças a isso que considero minha formação como ótima. Apenas lamento que essa “vagabundagem” não seja oficial.
Mas eis que começo minha segunda graduação, em ciências sociais, um curso teoricamente muito mais crítico do status quo do que o de filosofia. Como já sabia, pelas matérias de ciências sociais que havia feito durante a graduação em filosofia, aqui o controle é mais rígido: professores que reprovam por falta, fichamentos valendo nota, provas, trabalhos, nota por participação em sala de aula. Um aprendizado difícil e doloroso para quem passou cinco anos relativamente livre para descobrir e praticar a forma pela qual aprendia melhor. Outra coisa que também tenho apanhado para aprender: encher lingüiça. Em filosofia, um professor avisa que um trabalho com menos de cinco páginas não conseguirá responder à questão formulada, e que mais do que vinte ele não conseguirá corrigir em tempo. Em geral, em ciências sociais, o trabalho precisa ter um mínimo páginas não porque a questão exige, mas porque o professor exige. Você escreveu sete páginas e acha que falou tudo o que sabia e precisava sobre o assunto, mas o professor exige vinte páginas. Você, para não arriscar, já que o professor é a autoridade, com poderes de te reprovar, cumpre o exigido: escreve outras treze páginas dizendo nada, coisa alguma e repetindo o que já foi dito, duas vezes.
Esse foi o primeiro choque. O segundo foi quando comecei o estágio na prefeitura. Foi aí que vi a diferença entre o curso de sociais e de filosofia: precisei aprender a levar oito horas para fazer o trabalho que precisaria de duas. Algo difícil para qualquer um, mas mais ainda para quem não precisou se habituar a ficar quatro horas trancado em uma sala de aula, como uma criança no primário, olhando para frente com cara de interessado, enquanto pensa o que vai fazer quando terminar aquele suplício. Ou, para passar um pouco o tempo, começa a anotar as besteiras, erros e gafes cometidos pelo professor. Quando não passa a se comportar como uma criança do primário. Mas, ao que tudo indica, por mais que você não goste, ao fim de quatro anos terá aprendido a matar tempo docilmente, como se isso fosse necessário ao bom andamento do universo.
Aqui entra uma observação curiosa: enquanto o curso de ciências sociais é mais crítica do que a filosofia quanto a essas coisas mundanas, como trabalho, exploração de classe, etc (conheci estudantes de filosofia que só souberam das torturas no Iraque três meses depois da famosa foto de Abu Grahib), ela é, ao menos tempo, muito melhor adaptada às relações que diz criticar. Inclusive por professores que julgam imprescindível a um bom revolucionário unir teoria e prática. E se consideram bons revolucionários. Impõem hierarquias, adestram para o ritmo fabril, para a docilidade frente as regras, ao mesmo tempo que ensinam uma retórica crítica, explosiva, embasadas em análises cortantes. Para eles a prática se faz na luta revolucionária, não nas ações quotidianas. E depois não entendem o que houve com a experiência do comunismo real.

Campinas, 24 de agosto de 2007

domingo, 12 de agosto de 2007

Pessoas com trilha sonora

Javier Castañeda, colunista do jornal espanhol La Vanguardia, já comentou (em www.lavanguardia.es/lv24h/20060316/51243793999.html e www.lavanguardia.es/lv24h/20070621/51365451215.html) da atual onda evasiva iniciada com os ipods e seus similares, em que as pessoas, no trânsito da sua casa ao seu serviço fogem do tédio de uma cidade conhecida e de seus barulhos desagradáveis, das conversas desinteressantes das pessoas nos ônibus. Não somente isso, no Brasil ganha adeptos a instalação de DVD nos automóveis (já que o sistema de transporte é ruim e classe média não anda de coletivo), aumentando ainda mais a alienação – e a conseqüente indiferença – com a cidade, com o entorno da pessoa. Ao comentar isso com uma amiga recebi como resposta: “mas em São Paulo, quer o que?”, como se coubesse a nós somente ver o que é belo, o que é feio escondemos (atrás de outdoors, por exemplo) e, na impossibilidade disso, nos escondemos, como se não fosse assunto nosso a cidade em que vivemos.
Mas voltemos aos toca-mp3, hoje já um tanto fora de moda com os novos celulares, cada vez mais cheio de utilidades (para disfarçar o fato do celular ser uma necessidade induzida, desnecessária, portanto?). Tenho a impressão de que os fones no ouvido não servem apenas como evasão do entorno, mas também para preencher um pouco uma vida em si sem graça – pelo menos sem a graça vendida pelo cinema e desejada por tantos, que não conseguem buscar nada além do que uma vida que imita a “arte”. Se não vivemos aventuras mil, se não topamos com o grande amor da nossa vida em uma inesperada situação, se não temos uma paixão caliente e arrebatadora em cada esquina, a música nos ouvidos ao menos nos permite termos uma trilha sonora, para fingirmos que somos protagonistas de uma aventura marcante prestes a acontecer. Se não podemos viver, ainda nos permitem sonhar com as emoções do cinema em nossas vidas, e a trilha sonora, ao menos, já temos.
Já tinha um pouco essa impressão com certas pessoas que passavam alheias à tudo com seus ouvidos tapados por fones – quase Richard Ashcrofts no clipe da música Bitter Sweet Symphony. Mas essa trilha sonora particular se mostrava um tanto limitada. Guardávamos para nós mesmos, e talvez por isso as aventuras do cinema não aconteciam conosco. Poderíamos dividir nossa trilha sonora andando com um radião no ombro, colado ao ouvido, como os estereótipos de filme de periferia negra dos EUA, mas não creio que fosse muito prático carregar um rádio para faculdade ou trabalho, segurá-lo dentro do ônibus, guardá-lo na bolsa. Nem que fosse do interesse de muitos passar por negro da periferia dos EUA no centro de uma cidade brasileira.
Mas tenho a suspeita de que uma nova geração de celulares veio sanar esse problema. Tem me admirado o tanto de pessoas que andam pela rua com o aparelho tocando alto, dividindo com todos a sua trilha sonora, queiramos ou não escutar o que elas escutam. Por enquanto isso apenas me causa admiração, mas creio que em breve, quando o som de tais celulares ficar mais potente, tal comportamento irá me causar profunda irritação, para dizer o mínimo, como me causam os carros e seus potentes sons automotivos (uma coisa que ainda não consigo entender é a tara das pessoas por carro e por som que incomoda os outros). Em uma época de individualismo cada vez mais extremado, já se aproximando da sociopatia, e em que as pessoas de vidas medíocres fazem esforços homéricos para serem diferentes sendo iguais e chamarem a atenção para tanto, espero com temor o dia em que a sinfonia de motores da cidade for abafada pela competição de sons automotivos, sons de divulgação e sons pessoais. Será que precisarei comprar um toca-mp3 mais potente para fugir a toda essa barbárie?

Campinas, 12 de agosto de 2007

domingo, 29 de julho de 2007

E agora, José, como salvar as agências reguladoras?

Está curioso – para dizer o mínimo – a reação ao acidente com o avião da TAM. Ao contrário do acidente com o avião da Gol, em que era fácil atribuir a culpa aos pilotos estrangeiros ou ao governo federal, o que tornava desnecessário maiores explicações sobre o tal “caos aéreo” brasileiro, ou a definição do que seriam os “quase-acidentes” que aconteciam (acontecem?) aos borbotões todos os dias no nosso espaço aéreo, fazendo com que viajar de avião seja quase tão inseguro quanto pegar uma estrada; neste novo triste episódio, com a suspeita recaindo sobre a empresa – logo a maior empresa aérea do país – e, pior, sobre agência reguladora da avião civil, a Anac, muita cautela, nada de conclusões precipitadas, ainda que suspeitas devem-se levantar todas, principalmente as que inocentam tais instituições.
Mas, independente do resultado das investigações, a Anac sai muito chamuscada do episódio, e põe em risco a grande panacéia mundial: o controle de tudo pelos mercados. Vale lembrar: na década de 90, com os mercados sendo apresentados ao distinto público como a solução para todos os problemas mundiais e governantes letrados buscando na tal “terceira via” ou “governança progressista” um nome mais chique do que neoliberalismo, as agências reguladoras eram parte essencial para que o Éden viesse ao nosso encontro. O papel do Estado, para além de protetor da ordem via repressão policial, consistia em sustentar tais agências e nomear seus dirigentes de tempos em tempos. A essas agências cabiam o papel de fiscalizar a sua área delimitada, conforme critérios “técnicos”, de modo a garantir o investimento e, assim, preservar os interesses dos consumidores. Tudo livre de pressões políticas, já que seu dirigentes não eram demissíveis.
E tudo vinha funcionando muito bem até o acidente da TAM: o governo, seguindo critérios técnicos, indicava os dirigentes conforme apadrinhamento de tal ou qual político, esses dirigentes, afinados com com as empresas do setor que deviam regular, prestavam um bom serviço (para elas), o povo ficava em casa assistindo Faustão ou alguma bunda que se agigantava na tela, e estávamos todos felizes e satisfeitos.
As mensalidades dos planos de saúde tiveram um grande reajuste? Culpa do governo, que ainda não liberalizou totalmente o setor. Os valores da telefonia são abusivos? Culpa do governo que segue interferindo na Anatel. O avião caiu, os aeroportos são ruins, culpa do governo, dos controladores de vôo, da Infraero, que segue estatal. A pista de Congonhas foi liberada por pressão das empresas, culpa... do piloto, do fiscal imprudente, do dirigente da Anac, escolhido sem os devidos critérios “técnicos”.
A imprensa liberal se viu em aporia: se criticasse a escolha do governo e os dirigentes da Anac, o que iria defender? O fim da agência? Mandato revogatório aos dirigentes? Mas, se assim for, isso criará precedente, pode afugentar investidores, rompe com toda essa aura técnica que o neoliberalismo, perdão, a governança progressista traz à política comensal e pequena que se perpetua em nosso Estado – não porque é grande, mas porque é de poucos. A solução até agora encontrada foi bater nos dirigentes e no governo pela sua “insensibilidade”, assim como Marta Suplicy foi linchada publicamente por um comentário infeliz sobre um problema de uma área que não era a sua. Outra tática, ainda não bem clara, está em criticar os critérios técnicos utilizados para a escolha dos dirigentes e co-responsabilizar o congresso pela nomeação. Talvez para mostrar como a política estraga tudo, e estivesse na mão de técnicos escolhidos pelo mercado nada disso teria acontecido?
A discussão ainda deve render muito, mas não seria de se estranhar se um acordo de cavalheiros entre governo, empresa, imprensa, “sociedade civil”, técnicos e peritos selasse por culpar o piloto pelo acidente: sem chances de se defender, os vivos poderiam seguir tranqüilamente sua vida, defendendo a eficiência do mercado e as promessas de civilização vindas com os últimos inventos vindos do norte. Até o próximo acidente.

Campinas, 29 de julho de 2007

segunda-feira, 16 de julho de 2007

“O caminhar para a civilização pela liberdade”: a imigração na construção da nação em Tavares Bastos (trabalho de tópicos em imigração)

Conforme Caio Prado Júnior, o Segundo Reinado talvez seja o período mais interessante da história brasileira, uma vez que é durante ele que ocorrem as mudanças significativas da ordem colonial que resultarão na modernidade brasileira dos nossos dias: “A complexidade do Brasil de hoje, em que encontramos lado a lado uma civilização moderna e que se emparelha à dos povos mais desenvolvidos da atualidade, e formas antiquadas que sobraram da colônia, explica-se precisamente pela história do Segundo Reinado, onde se situa, em sua parte fundamental e essencial, o processo da modificação parcial sofrida pelo país” (PRADO JÚNIOR, 1979, p. 191). A tentativa de conciliar as idéias em voga na Europa e nos Estados Unidos com uma sociedade ainda marcada fortemente pelas heranças coloniais não poderia deixar de ser contraditória(1).
Tavares Bastos foi um homem do seu tempo. Filho de família de elite de Alagoas, bacharel em direito pela Faculdade São Francisco, deputado por três legislaturas na década de 1860 – década na qual produziu sua obra –, oscilando da facção moderada do Partido Conservador para a tentativa de criação do “novo” Partido Liberal, é considerado um dos principais pensadores liberais do Segundo Império. Isso não significa que Tavares Bastos fosse um radical, disposto a sair à rua em companhia do povo para defender a liberdade – como, por exemplo, Cipriano Barata, em fins do século XVIII e início do XIX –, ainda que a sociedade imperial não possa ser tida como grande exemplo do liberalismo, seja político, seja econômico. Fortemente influenciado por Stuart Mill, Tocqueville e os Federalistas estadunidenses, nosso autor acreditava que era a partir de leis bem feitas que o Brasil seria capaz de superar a barbárie e chegar à civilização, identificada com os Estados Unidos – sua grande referência e então em guerra civil – e com a Inglaterra: “Nada mais liberal. A lei como instrumento privilegiado das relações sociais, na medida que somente assim se poderia operar uma ordem institucional 'civilizada', onde os sistema representativo virtualmente traria para a arena política parcelas cada vez maiores de 'homens superiores', forjados pela fortuna e pela educação, como afirmaria Stuart Mill” (REGO, 2002, p. 94). Defensor do livre-cambismo inglês em uma época em que ele já não tinha mais crédito nas políticas dos países centrais(2), e, principalmente, defensor do federalismo, apesar desse federalismo não estar necessariamente ligado à República.
Ainda que o federalismo seja o ponto mais marcante do seu pensamento, não nos ateremos aqui de maneira específica a este aspecto, e sim tentaremos ver como a imigração, para Tavares Bastos, contribui para a formação da nação brasileira. Porém, o faremos sem tratar dos aspectos mais operacionais da questão, como a descentralização, ou as políticas para o estímulo à criação de correntes espontâneas de imigração. Servirá como guia nesta nossa análise a interpretação de Antonio Carlos Robert Moraes, para quem a colonização americana, por ser um processo de ocupação de territórios pelas metrópoles européias, acaba por marcar o pensamento das elites desses países, mesmo emancipados, pela questão geográfica. No caso brasileiro, o território é fator de agregação das elites e determinação da forma monárquica de governo pós-independência (para o qual também contribuiu o contexto europeu de tentativa de restauração da ordem pré-napoleônica):
“Neste quadro de formação nacional tem-se um território a ocupar e um Estado em construção, mas a população disponível não se ajusta à identificação de uma nação conforme os modelos identitários vigentes nos centros hegemônicos. No contexto, ao abandonar-se o caminho de construção da nacionalidade proposto por José Bonifácio (cujo eixo repousava na gradativa abolição das relações escravistas), começa a tomar corpo uma concepção que vai identificar o país não com sua sociedade mas com seu território, isto é, o Brasil não será concebido como um povo e sim como uma porção do espaço terrestre, não uma comunidade de indivíduos mas como um âmbito espacial. (...)
“Controlar a terra e o trabalho, e expandir fisicamente a economia nacional constituem os alicerces do pacto [oligárquico firmado entre as elites regionais], que expressa bem na ótica geopolítica que o fundamenta. (...)
“O Estado será o guardião da soberania e o construtor da nacionalidade, entendida como o povoamento do país. A idéia em foco, além de bem costurar o poder das elites e do Estado forte, ainda qualifica a população em seu lugar subalterno no projeto, o povo sendo visto como instrumento da construção do país.
“Tal visão instrumental dos segmentos populares expressa-se claramente num debate que atravessa o pensamento brasileiro por todo o século XIX, adentrando nas primeiras décadas do século XX: com que povo contamos para construir o país. Toda a discussão sobre a política imigratória, por exemplo, tem esta questão como pano de fundo.” (MORAES, 2005, p. 93-94).
Como dito acima, Tavares Bastos cria que boas leis eram fundamentais para a melhoria moral do povo. Porém somente elas não eram o suficiente. Ainda na esteira de Stuart Mill, tinha a educação, o trabalho e o comércio livres como outros fatores determinantes para a entrada do Brasil na civilização. Essa necessidade do trabalho livre, todavia, não resultava, necessariamente, na abolição radical da escravatura – a qual poderia trazer o colapso econômico ao país –, mas deveria ser feita de maneira gradual(3), conforme as características de cada província do império, e conciliada com a afluência de trabalhadores livres ao país. Concomitante à abolição, inclusive, Tavares Bastos defendia a educação para os negros libertos, para que não ficassem lançados à própria sorte: “emancipar e instruir é a forma dupla do mesmo pensamento político. O que haveis de oferecer a esses entes degradados que vão surgir da senzala para a liberdade? O batismo da instrução” (TAVARES BASTOS, 1870, p. 240).
No que tange o ponto mais específico que nos propomos a tratar aqui, podemos dizer que a imigração, para nosso autor, se articula de três maneiras principais na construção da nação: a necessidade de mão-de-obra, a necessidade de se trazer a civilização a estas bandas, e a questão da ocupação do território.
A década de 1860, marcada pelo avanço da cultura cafeeira no sudeste do império, já deixa transparecer o problema de falta de mão-de-obra – devido à expansão do café e ao fim do tráfico negreiro na década anterior –, problema que se apresentava grave quando se vislumbrava a abolição da escravidão, então base da produção econômica nacional, e o possível êxodo dos negros das fazendas. A imigração surgirá como possível resposta ao problema.
Apesar de defensor da livre-iniciativa, no que diz respeito à imigração, nosso autor defende a participação dos governos imperial e provinciais, enquanto não se estabelecesse uma corrente espontânea de imigração para o país, a exemplo do que então ele observava ocorrer nos EUA. Essa corrente precisava de um estímulo inicial pois, não obstante o Brasil fosse um país “dotado de vastos recursos naturais; um terço possui excelente clima, todo ele grandes rios, extensas costas e ótimos portos a pouca distância da Europa” (TAVARES BASTOS, 1861, p. 59), as heranças coloniais e os arrombos centralizadores da capital federal serviam de desestímulo à vinda de imigrantes para o país: falta de liberdades individuais, escravidão, predomínio de grandes propriedades, justiça mal-remunerada, falta de rede de comunicações, dependência excessiva dos poderes geral e provincial são alguns dos problemas levantados (idem, p. 59-60). Assim sendo, e não fazendo parte das suas propostas mudanças radicais e abruptas na estrutura social, Tavares Bastos defende que o governo deva criar mecanismos para estimular a imigração, já que não o fazem os particulares (TAVARES BASTOS, 1870, p. 272): “nos Estados Unidos, sim, a intervenção do governo é inútil. Aqui, porém, há um motivo poderoso, uma razão de alta política, para se recomendar que o governo continue a intervir, que as administrações geral e provinciais se apressem em criar a corrente de imigrantes para o Brasil” (TAVARES BASTOS, 1861, p. 68), inibida principalmente pelo “regime servil” (idem, p. 69). Esse “motivo poderoso” é o período de crise que o autor prevê para após o fim da escravidão (ainda que esta ocorra de maneira gradual), ao fim do qual a imigração poderia ser deixada às “causas naturais”, como nos EUA. Porém, se a escravidão é fator de inibição de uma corrente imigratória espontânea, a imigração de braços livres não é incompatível com o trabalho escravo, mas apenas com o tráfico negreiro, já extinto (idem, p. 64). Vale ressaltar que se Tavares Bastos defende participação dos governos na criação de uma corrente imigratória, se opõe ao centralismo existente e que marca as tentativas de colonização da época: “abandonemos a pretensão de adivinhar, no retiro de um gabinete, os interesses peculiares de localidades tão distintas e tão diferentes, e de impôr-lhes um mecanismo administrativo qualquer sem audiência delas” (TAVARES BASTOS, 1870, p. 274).
Ainda que o problema central para o qual a imigração é chamada a resolver seja o da mão-de-obra, seu papel não deve ser simplesmente o de trazer braços, e sim ser um estímulo a mais para a civilização, junto com a educação, para o fomento do “'homem do progresso', aquele capaz de absorver as inovações da civilização no processo de trabalho, removendo pois o personagem dominante no Brasil: o 'homem de rotina'” (REGO, 2002, p. 169): “Que sorte aguarda nossa indústria agrícola, quando, verificada a impotência da rotina secular, o proprietário inteligente carecer de temperar a crise da deficiência de braços com os processos da arte aperfeiçoada?” (TAVARES BASTOS, 1870, 216-217). Portanto a imigração que deve ser estimulada pelo governo é a das “raças civilizadas”, ou seja, a imigração branca, seja ela européia ou de estadunidenses descontentes com a situação política do seu país. A imigração de trabalhadores asiáticos, cogitada por políticos da época, ainda que não deva ser proibida, deve ser feita por particulares, cabendo ao governo apenas o papel de fiscalização: “condenemos, vivamente condenemos, este desvio da opinião mal esclarecida: não é essa [de asiáticos] a imigração que carecemos. Estéril para o aumento da população, dispendiosa, bárbara como o próprio tráfico de negros, ela é acompanhada de um triste cortejo de imoralidades” (idem, p. 276).
Para a grande lavoura, ao contrário do que seria de se esperar, Tavares Bastos não vê o problema da mão-de-obra como crônico, e crê ser desnecessária a importação de braços para tal fim: braços têm-se os dos trabalhadores negros, uma vez libertos, já acostumados ao clima e comprovadamente eficientes no trabalho pesado; a temível falta de mão-de-obra nas lavouras poderia ser sanada se se introduzisse inovações técnicas:
“Queixa-se a grande lavoura de falta de braços? Singular queixa sob o império da escravidão, que permite a cada canto os mercados de cativos! Queixa-se de si, da sua rotina, da sua resistência a qualquer melhoramento. Pode-se ouvir sem impaciência lastimar a falta de braços o proprietário que ainda lavra a terra a enxada? Quanto aos capazes de progresso, tenham eles ânimo, e avante! Renovem o seu material, mudem os seus processos, abandonem a rotina: e, quando soar a hora da emancipação, aí tem à mão o melhor trabalhador dos países tropicais, o negro indígena e aclimatado” (idem, p. 277-278).
Tais inovações, capazes de suprir a falta de braços reclamada pelos produtores rurais, dependem de romper com o homem de rotina e adotar os avanços tecnológicos dos países civilizados; por isso a importância da imigração, ainda que não para suprir de maneira imediata o trabalho negro, mas para estimular novas soluções, como trabalhador das grandes fazenda ou como mero vizinho dessas grandes propriedades, cujo exemplo serviria já de estímulo.
Mas, para que o processo de importação de civilização fosse realizado com êxito, também era necessário que o governo, quando fosse buscar na Europa imigrantes, buscasse emigrantes agricultores e operários agrícolas, evitando os mendigos, vagabundos e artistas medíocres que geralmente eram os encaminhados pelos agentes oficiais (TAVARES BASTOS, 1861, p. 69). Uma vez estabelecidos no país, “essa população, melhor educada e superior à das antigas províncias, exerceria sobre a destas uma ação eficaz e irresistível” (idem, p. 80).
Os destinos propostos pelo pensador alagoano para os imigrantes europeus uma vez no Brasil eram dois: como trabalhadores das cidades ou como colonos em áreas ainda despovoadas ou parcamente povoadas.
Aos que se dirigiam às cidades, centros da indústria e do trabalho assalariado, o governo necessitava inibir a concorrência com os escravos negros, principalmente por meio de aumento de impostos sobre, proibição do aluguel de, ou de possuir mais negros do que os necessários para os serviços domésticos. Mesmo se não se conseguisse essas melhoras institucionais, havia a possibilidade do imigrante ir para algum núcleo colonial, ou para alguma província em que não houvesse tantos escravos, como Paraná, Santa Catarina, Ceará e Amazonas (idem, p. 66).
Se nas cidades o trabalho escravo era fator complicador da chegada das populações civilizadas, o processo de modernização via ocupação do território esbarrava na herança colonial dos grandes latifúndios e na inépcia das províncias em promover a ocupação dos seus rincões selvagens. Para sanar tais impedimentos, as propostas de nosso autor têm dois pontos principais, inspiradas na experiência estadunidense: a compra das áreas desocupadas das províncias, para a criação de núcleos coloniais e posterior formação de novas províncias (idem, p. 80), sendo a venda dessas áreas feita a preços simbólicos, tal como no Homestead Act promulgado nos EUA em 1862, pois, diz ele, “o maior proveito do Estado consiste não no pequeno preço da venda [de terras], mas na reprodução da riqueza pública pela exploração de domínios incultos” (idem, p. 82-83); e a criação de um imposto territorial, principalmente nas áreas próximas às vias de comunicação ou às cidades, “que já tiram proveito imediato dos sacrifícios do Estado” (idem, p. 88), visando o estímulo à produção nessas terras – ainda que latifúndios –, tornando-as rentáveis, e contribuindo para o fortalecimento da missão do Brasil do mundo, ser o celeiro da Europa (TAVARES BASTOS apud REGO, 2002, p. 102); ou seu desmembramento em pequenas propriedades para a venda e ocupação por colonos europeus.
Temos, portanto, que mesmo para um pensador liberal, defensor da não intervenção estatal, o pacto entre as elites resultava em soluções que demandavam a presença intensa do Estado no processo de colonização e formação da nação: seja através da venda e distribuição de terras, seja através da seleção dos imigrantes que deveriam vir para o país. Como comenta Pontes: “Anti-intervencionista, como era, fascinado pelos mais extremes princípios liberais, transigia entretanto, em que se tratando da questão imigratória, onde lícito lhe fora a ação dos poderes públicos” (1975, p. 150). A corrente espontânea, ideal para Tavares Bastos pois respeitadora da liberdade e das causas naturais, ficava para um futuro distante, em que boa parte da “nação” já houvesse sido selecionada pelo Estado.
Nas considerações final do capítulo “Memória sobre imigração”, de Os males do presente e as esperanças do futuro, vemos a forte marca da territorialidade no pensamento de Tavares Bastos, em que o terra é caracterizada com nobreza, enquanto o povo merece como qualificação a de “pacífico”: vencidos os entraves institucionais para a ocupação do território e tendo feito o governo um levantamento estatístico detalhado dos recursos e da situação dos imigrantes no país, publicizando-o no exterior, “pouco a pouco o desfavor que o persegue [nosso formoso país] no mundo converter-se-á na simpatia que ele merece por seu excelente clima, por sua fertilidade, pelo seu sistema fluvial de comunicações internas, por suas instituições livres, pela ilustração do seu governo e pelos hábitos pacíficos do seu povo” (TAVARES BASTOS, 1861, p.125). Ou, nas palavras de Pontes, comentando a influência do alagoano no manifesto de 70:
“Era justamente a volta às nossas leis naturais e históricas, o que propugnava Tavares Bastos e, inspirado nele, que acentuara as nossas tendências descentralizadoras desde a própria formação das Capitanias, o manifesto de 70, desenvolvendo-lhe as idéias, visava as mesmas conclusões: 'A topografia do nosso território, as zonas diversas em que ele se divide, os climas vários e as suas produções diferentes, as cordilheiras e as águas estavam indicando a necessidade de modelar a administração e o governo local acompanhado e respeitando as próprias divisões criadas pela natureza física e imposta pela imensa superfície do nosso território.'” (PONTES, 1975, p. 179. grifo do autor)
Ou seja, as leis naturais que o país devia seguir estavam determinadas pelos seus morros, vales e rios, assim como seu papel de celeiro da Europa era tão natural quanto. Se na Europa o Estado-nação moderno que então se estabelecia pode ser definido como um território sobre o qual dominava a totalidade da população, esta, por outro lado, exercia crescente influência no Estado – via representação eleita, por exemplo (HOBSBAWM, 1990, p. 101) –; no Brasil, em que a grande massa da população era posta à margem do processo político por uma elite dirigente que desprezava a população aqui residente, Tavares Bastos – que, ainda que não chegasse a propostas extremas como a expulsão dos negros do território brasileiro(4), rejeitava a população autóctene como elemento formador da “raça brasileira” (PONTES, 143-144) – não difere essencialmente de seus pares, e nada mais “natural” do que não restasse a ele, como a essa elite, outra coisa que o território para se identificar, cabendo buscar na Europa ou nos EUA raças civilizadas, populações superiores, para ocupar e garantir o território, aptas – quem sabe – a participar das decisões políticas, e então, sim, permitir ao país a constituição de um Estado-nação civilizado, aos moldes dos centros hegemônicos.

NOTAS
(1) Ver Schwarz, R. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis.
(2) Esta idéia de defasagens entre a sociedade brasileira e o pensamento de Tavares Bastos, e deste com as sociedades européias é defendida por Rego (2002) e questionada por Abreu (2004). Vai além do escopo deste trabalho aprofundar tal contenda.
(3) A defesa radical da abolição da escravatura ganharia força somente na geração seguinte à de Tavares Bastos, e teria em Joaquim Nabuco seu grande nome.
(4) Ver Lourenço, F. Agricultura ilustrada: Liberalismo e escravismo nas origens da questão agrária brasileira. p. 158-159

BIBLIOGRAFIA
Abreu, Eide Sandra Azevedo. O evangelho do comércio universal: o desempenho de Tavares Bastos na liga progressista e no partido Liberal (1961-1872). Tese de doutorado. Campinas, 2004
Hobsbawm, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. [Tradução de Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
Lourenço, Fernando Antonio. Agricultura ilustrada: liberalismo e escravismo nas origens da questão agrária brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
Moraes, Antonio Carlos Robert. Território e história no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
Pomer, Leon. O surgimento da nações: o poder político; a natureza histórica do Estado; os estados nacionais. Tradução de Mirna Pinsky. São Paulo: Atual; Campinas: Editora da Unicamp, 1987.
Pontes, Carlos. Tavares Bastos (Aureliano Cândido, 1839-1875). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975.
Prado Júnior, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 1979.
Rego, Walquíria G. Domingues Leão. A utopia federalista: Estudo sobre o pensamento político de Tavares Bastos. Maceió: Edufal, 2002.
Schwarz, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2000.
Tavares Bastos, Aureliano Cândido. Os males do presente e as esperanças do futuro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. [1861]
_____________________________. A província. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. [1870]
Zorzetto, Alessandra Ferreira. Propostas imigrantistas em meados da década de 1860: a organização de associações de apoio à imigração de pequenos proprietários norte-americanos: análise de uma colônia. Dissertação de mestrado. Campinas, 2000.

Campinas, 16 de julho de 2007

terça-feira, 10 de julho de 2007

Barricadas em três tempos (e-meio para o Fernando Lourenço)

Olá professor Lourenço, tudo bem?

Quinta passada você falou sua opinião sobre a greve e as barricadas, as “cadeiradas”, como chamou. Abriu o espaço para expormos nossas opiniões, mas, como não gosto de falar em público, preferi não comentar nada. Depois de hesitar se ainda estava em tempo, resolvo fazê-lo agora, por e-meio. Espero que não se incomode por não ter falado antes, no espaço aberto. Não é meu interesse contrapor diretamente minha opinião à sua, antes apenas apresentar a minha.

Na minha visão, de estudante um tanto distante do movimento estudantil, mais um espectador – assistia às assembléias, mas não falava nada, nem participava ativamente do movimento –, acho que as barricadas tiveram três momentos principais. O primeiro foi quando, decida a greve dos estudantes, optou-se por essa forma de coação dos professores, forçando todos a pararem. Acho que foi uma ação importante – diria até mesmo acertada –, e uma forma interessante de chamar a atenção, além de ter aflorado uma série de questões recalcadas – que resultaram, creio, depois de todo o desenrolar, no clima não-amistoso comentado por você em sala.

Digo acertada porque quebrou um pouco – um pouco! – com a rotina de greve do IFCH: todo ano, no fim do mês de abril, início de maio, é hora de falar em greve e entrar em greve. Este ano não foi diferente: fim de abril, início de maio, fala-se em greve, ainda que os decretos sejam de janeiro e fevereiro! Volta e meia entramos em greves pífias, quase que exclusivas do IFCH, cuja adesão é de apenas alguns professores, geralmente os mesmos. Este ano, ainda mais com a entrada dos alunos da pós, tivemos um movimento mais forte dos estudantes. Mas muito provavelmente alguns professores continuariam suas aulas, forçando os alunos a assistirem, mediante as formas de controle que possuem, enquanto outros entrariam em greve porque todo ano, no mês de maio, é assim. As barricadas, nesse aspecto, me fizeram lembrar certos poemas (cujo nome não consigo lembrar), como “o operário disse não”, do Vinícius de Moraes, “a flor e a náusea” ou “stop”, do Drummond: quebraram a rotina, o tédio, alguns velhos hábitos, tornou a greve consciente. Por que exatamente estamos aqui, fazendo greve, protestando?

Outro ponto porque julgo necessárias as barricadas foi o “despreparo” (não achei termo melhor, apesar de não achar despreparo adequado) dos alunos e funcionários (e dos professores também). Como falou a professora Yara, da filosofia, na primeira assembléia: “tirem as barricadas e elaborem um discurso para convencer”. Por quase dez dias não havia um discurso capaz de justificar a greve! Havia alguns fragmentos perdidos, sem muita consistência e sem densidade, ou o velho pregar para os convertidos. “Os decretos são ruins”, mas ninguém era capaz de explicar o porquê! Por que prestar conta era o atentar contra a autonomia universitária? Depois, para mim, ao menos, conseguiu-se elaborar argumentos mais claros e consistentes, capazes de incitar um diálogo inteligente. As barricadas mostraram uma fragilidade do movimento, necessária de ser reparada para que tivesse sucesso, acredito que de outra forma esse “pequeno” lapso iria sendo levado, talvez até o final, sem se dar a devida importância.

O terceiro ponto foi, como disse, aflorar certas questões recalcadas, como as relações professor-aluno, professor-funcionário e aluno-funcionário (tanto é que os terceirizados foram “proibidos” de seguirem limpando os banheiros durante a greve). Foram poucos os professores, inclusive, que se mostraram abertos ao diálogo franco, dispostos a responder as colocações – muitas vezes ingênuas ou estúpidas – de alguns alunos. Cito dois que me chamaram a atenção: o Bianchi e a Yara.

As barricadas foram um ato “violento”? Se usarmos violento aqui em um sentido amplo, pode-se dizer que sim. Mas creio que foi muito mais um “violento” no sentido da desobediência civil em Rawls: um ato extremo que visa pequenos acertos em uma estrutura (assim digamos) à qual não se opõe de todo, uma estrutura justa. Tanto é que ela aconteceu, não por acaso, no IFCH, onde a abertura para o diálogo existe e acredita-se (julgo) estar em um caminho razoavelmente justo, dentro das possibilidades de uma estrutura universitária.

O segundo momento das barricadas foi o de quando os professores aderiram à greve. A oposição veemente e sem justificativa de certos professores às barricadas (a Yara foi uma das poucas a aceitar participar de um debate com os alunos e argumentar tudo o que podia e não podia sobre fins que justificam os meios, princípio da diferença, respeito às liberdades, etc, para pedir a retirada delas), chegando a extremos de mandar aluno calar a boca; ou então na “condicional” dos professores para abrirem diálogo quando, eles também, entraram em greve (ao menos assim foi entendido pelos estudantes aquele comunicado feito em frente o prédio das secretarias, em que você também estava), acabaram por dar razão a muitas das reclamações dos estudantes sobre a questão da hierarquia, de que os professores se negam a tratar todos como iguais, não importa a situação. Foi aí, creio, que houve a grande cisão dos alunos com os professores, justificada mas difícil de ser justificável. Minha opinião nesse momento foi – e segue sendo – em cima do muro. Acho que deveríamos ter retirado as barricadas sob condições (não expostas de maneira direta): já que estávamos todos em greve, não haveria mais coação para os alunos voltarem às aulas, os funcionários ao trabalho; caso houvesse, seria justificável o retorno das cadeiras, pois os professores não seriam capazes de cumprir com os acordos, não eram dignos da confiança necessária para o diálogo e a democracia. Mas também havia um pouco essa vontade – talvez mesmo necessidade – de enfrentamento. De exigir, como condição para o diálogo, o fim da condicional dos professores para o diálogo. Foi como um grito, desçam!

O terceiro momento foi o retorno das barricadas. Esse foi um ato que julguei equivocado, aí sim, dando justificativa para acusar as cadeiras de violentas, de atentado contra a liberdade. O diálogo que as barricadas poderiam fazer aflorar já haviam aflorado; o foco da discussão sai dos decretos para, novamente, ser as barricadas. “Porque deu certo” era a justificativa do que, para mim, se tornou um ato de rebeldia despropositado. Era um momento de “refluxo do movimento”, como os figurinhas de sempre das assembléias gostavam de chamar, aquele empolgante movimento de estudantes diminuía, os professores fora da greve já era uma pressão para o retorno, os decretos ainda estavam lá, apesar do decreto declaratório: vitória ou engodo? será que não conseguiríamos mais, a revogação dos decretos? começamos a greve, não deveríamos encerrá-la? Ainda tínhamos a ocupação da DAC, feita inicialmente em solidariedade com a ocupação da USP e para tentar reanimar o movimento. A USP desocupou, e aqui o reitor não aceitava dialogar – ato óbvio do reitor, uma vez que já havia negociado na ocupação da reitoria, ridícula, boçal, por sua pauta de reivindicações. O movimento chegou a reanimar – até ano passado nunca tinha visto assembléia do DCE com mais de 100 alunos, ver uma com 1200 assusta! - mas já estava no fim. Aquele movimento que começou com as barricadas já não se sustentava mais, por mais que voltassem as barricadas. Havia também um considerável ressentimento com os professores, por se oporem inicialmente às barricadas, por porem condicionais para o diálogo, por saírem antes da greve: de pouco adiantou o Bianchi dizer que era momento de evitar cisões para permitir a união de forças em um possível embate futuro. Creio que esse terceiro momento ajudou muito as barricadas a perderem legitimidade para aqueles que estavam em cima do muro.

Acho que me estendi além do que seria de bom tom - e só falando das barricadas. Não creio ser oportuno ainda querer palpitar sobre a greve, o antes da greve, os professores, etc. Apenas ressalto uma coisa que muito me agradou no movimento dos estudantes deste ano: tanto os partidos políticos, PSTU, PCO, DCE-PSOL, quanto os grupelhos organizados não conseguiram impor uma direção ao movimento, pelo contrário, o tempo todo tiveram que ir aonde os estudantes “desorganizados” decidiam ir. Falavam, ocupavam espaço, tentavam direcionar. Mas perdiam.

Fico por aqui.

Um abraço,

Daniel Dalmoro

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Educação: hora de aprofundar o debate (a quatro mãos com a Mari)

e Mariana Oliveira do Nascimento Teixeira

Em artigo publicado no espaço “Tendências e Debates” desta Folha no dia 8 maio, a socióloga Maria Alice Setubal, comenta em seu texto “Um falso dilema para a educação” da sua satisfação em perceber que a educação entrou para a agenda das discussões quotidianas do país, e levanta o que ela chamou de falso dilema na educação básica pública: se sua melhoria passa pela gestão eficiente ou por mais recursos. Se embasando tanto em exemplos da iniciativa privada quanto da escola pública, ainda que de maneira geral, a socióloga nos apresenta que o bom funcionamento de uma escola depende tanto de recursos quanto da gestão desses recursos.
Concordamos com aquilo que ela apresentou e fazemos coro à sua satisfação de ver a educação ganhando destaque – ainda que tarde e aquém do que imaginamos ser necessário – nos círculos de formadores de opinião.
Contudo, trazemos aqui nossa preocupação quanto ao debate que tem ocorrido e se intensificado nestes últimos tempos. Não parece haver grandes discordâncias quanto à necessidade de se garantir o acesso e a permanência das crianças e adolescentes do Brasil na escola, e que a educação por eles recebida seja uma educação de qualidade, independente de ser uma escola pública ou privada, da região norte ou sul, de um bairro pobre ou rico. Porém, não temos visto discussões quanto a que tipo de educação deve ser ministrada, tendo em vista que objetivos, como devem ser organizadas (não somente geridas) as escolas, as aulas, de que forma estas devem ser dadas.
Acreditamos que a busca por soluções para os problemas da educação brasileira passa, necessariamente, pela “boa governança”, levantada pela Maria Alice Setubal, mas demanda mudanças radicais a serem feitas. O problema de comportamento e indisciplina, apesar de geralmente mais visível nas escolas públicas, está fortemente presente também nas escolas particulares; ajuda a explicar este problema a caducidade do atual método vigente na maioria das escolas, de um professor na frente da sala recitando o conteúdo para alunos em formação militar, e a relação professor-aluno. A própria divisão das matérias em disciplinas estanques e separadas está obsoleta para as exigências da sociedade atual, algo que o MEC já tem notado, haja visto as mudanças introduzidas no Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, divido em três grandes áreas, linguagens, códigos e suas tecnologias, ciências naturais, matemática e suas tecnologias e ciências humanas e suas tecnologias.
Quanto à relação da escola com a comunidade, são várias as pesquisas que demonstram que as escolas onde a participação dos pais se faz mais presente o rendimento médio dos alunos é melhor do que aquelas em que o que ocorre dentro dos muros da escola é de responsabilidade exclusiva desta. A melhora da educação passa pelo comprometimento de todos e este é alcançado de maneira mais fácil e efetiva na medida em que a escola, mais do que se abrir à comunidade, passa a se integrar a ela, e deixa de ser um local onde as crianças e jovens vão para ter aulas, mas onde todos, professores, alunos, pais de alunos e não alunos vão para momentos de aprendizado, de lazer, de leituras, de debates, para palestras. A escola deve ser encarada como um dos pólos de socialização da comunidade, um local de vivência, troca de conhecimentos e discussões sobre o mundo atual.
Diante do que foi apresentado acima, cabe perguntar que pessoa será formada ao fim do ciclo básico de educação. Que tipo de cidadão esperamos e o Brasil necessita? Será cidadão respeitador da ordem – qualquer ordem – ou será um cidadão crítico e conhecedor dos meios legais para fazer valer os seus direitos? E que nação projetamos quando imaginamos os jovens formados pelas escolas no bicentenário da nossa independência? Qual a demanda principal do nosso país que projetamos para daqui quinze anos? Agronegócios, indústrias de alta-tecnologia, setor de serviços e turismo? É preciso ter em mente este aspecto até para poder ajustar os mecanismos de avaliação da educação ministrada: estamos dizendo que o ensino ministrado nas escolas está ruim em relação a que? O das escolas públicas está ruim em relação às escolas privadas, mas o ensino destas é bom? Não é o que mostram as avaliações internacionais, como o Pisa. Mas as demandas do Brasil serão as mesmas dos EUA e da Europa, por exemplo, para podermos nos comparar a eles sem qualquer ressalva?
Uma última questão se põe, ou melhor, não se põe: qual o papel da universidade na construção dessa educação básica universal e de qualidade? Concomitante à discussão sobre educação básica temos também a discussão da reforma universitária: não seria o momento de juntar – aproximar, ao menos – esses dois debates, já que ambos estão fortemente imbricados? Pois é absurdo tanto discutir a universidade sem levar em conta que formação terá o aluno nela ingressante, assim como discutir a educação básica sem considerar que espécie de professor é formado nos bancos da academia.
Sabemos, evidentemente, que todas essas perguntas não têm resposta fácil – teoricamente e mais ainda na prática. Entretanto, acreditamos que somente através de um debate que realmente questione visões sobre os objetivos e a forma da educação no Brasil caminharemos para respostas e sua implementação efetiva. Ficamos contentes, pois, que o assunto esteja ganhando espaço na agenda, o governo cobrado a assumir suas responsabilidades, e vemos que é chegada a hora para darmos um passo além no debate, questionando o ensino e o sistema educacional do país como um todo.

Campinas, 17 de maio de 2007

domingo, 6 de maio de 2007

Especialistas e experiências

Caminhamos para uma sociedade em que a experiência, para ser aceita, precisa ser quantificável. Qualquer experiência que não possa ser contabilizada em títulos, artigos, carimbos ou renda é descartada não como secundária, mas como desprezível, praticamente inexistente. Ao se desprezar esse tipo de experiência, despreza-se junto toda a experiência, toda vivência quotidiana – até o momento em que ela renda frutos visívei$. A experiência de olhar, do olhar, por exemplo, soa absurda na vida atual. Ainda que vivamos em um mundo cujo olhar seja a percepção dominante, o que temos, no máximo, é o adestramento desse sentido pelo cinema, tv e outros meio – algo muito distinto de viver uma experiência visual.
O absurdo a que nos leva essa questão da experiência pode ser vista nas prateleiras de uma livraria. Foi-se o tempo em que auto-ajuda se restringia ao sucesso e à sua conseqüência natural, a felicidade – algo que, em tese, somente alguns alcançam e por isso nós, reles mortais, precisaríamos conhecer a sua experiência. O que pensar quando nos deparamos com um livro sobre beijo? Que experiência pode haver no ato além da vivida? E como é possível transmitir “experiências” como essa? Ou então um livro sobre a importância das crianças brincarem? Não que a recomendação de deixá-las brincar seja absurda em nossa sociedade do sucesso, mas será preciso um livro – escrito por um PhD, óbvio – para segui-la? Por que não escutar nossas avós, nossos pais? Por que a necessidade de um especialista até para termos segurança quanto ao óbvio?
Isto levanta uma outra questão: na sociedade do sucesso, deve-se evitar a todo custo qualquer erro, qualquer fracasso. E qual não é a chance de errar ao se arriscar? “Quem não arrisca não petisca”, diz o manjado ditado. No fundo, o que a auto-ajuda se pretende é ensinar como “petiscar sem arriscar”, ou “como se arriscar com segurança”. O que resulta em uma legião de covardes, que não querem arriscar, experimentar, criar, e muito menos assumir grandes responsabilidades. Falta tempo aos pais para poderem lidar mais intensivamente com seus filhos? Mas se vivemos em um mundo que despreza esse tipo de experiência quotidiana, de que adiantaria uma maior vivência nesse sentido? As pessoas antes acreditam e aceitam de pronto o que fala o especialista no programa da Ana Maria Braga, e preferem olhar cheios de receios a educação que receberam de seus pais – ainda que a admitam acertada na sua maioria –, porque um especialista estudou a fundo o assunto, e o que fala, fala com propriedade, enquanto nós, reles mortais... que podemos saber além do que vivenciamos? Além do mais, se algo sair errado, a culpa não é dos pais, que se esforçaram para dar o melhor – o mais avançado – para seus filhos em matéria de educação.
Claro que essa questão da experiência tem várias outras perspectivas, que tornam o problema bem mais complexo. Mas há um porém inicial que nenhum livro de auto-ajuda levanta, seja do sucesso-felicidade, seja do beijo, seja do guia para pais: na prática, a teoria é outra. E querer enfiar a prática no quadrado da teoria é caminho quase certeiro para o fracasso.

Campinas, 06 de maio de 2007

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Os especialistas e o maluco-assassino-suicida

Era plenamente previsível. Estava lá, bastava olhar para notar o perigo. Suspeitou-se, encaminhou-se para as instâncias legais, mas um juiz falhou, e por causa dessa falha, 32 mortes. Retroativamente, tudo é previsível. Todos os lances levam ao fim que realmente teve. Um determinismo científico que muitas pessoas – pessoas de poder! – não conseguiram notar a tempo. Problemas mentais, idéias suicidas, compras de armas, introversão... Estão aí as peças do quebra-cabeça do massacre do Instituto Politécnico da Virgínia. É o que nos diz a imprensa, ainda que o manifesto de Cho nos dê outras peças. Em quem acreditar? Nos especialistas com seus pós-doutorados ou em um maluco-assassino-suicida?
No maluco-assassino-suicida, sem dúvida. Primeiro porque ele tem a liberdade de falar tudo (ainda que provavelmente não use de toda essa liberdade). Segundo porque os interesses por trás dos especialistas são enormes. Já imaginou a paranóia coletiva ao se afirmar o óbvio: que acontecimentos como esse podem acontecer em qualquer lugar, a qualquer momento, e não há nada que possa prevenir?
Mas quando se mostra que as peças estavam todas lá, à mostra, e por pouco, muito pouco, não se evitou o massacre, as coisas ficam mais tranqüilas: as autoridades zelam por nós. Zelam mas, curiosamente, sempre falham. Talvez, para mostrar que não falham sempre, em breve teremos uma prisão espetacular, mostrada ao vivo em todos os canais dos EUA, repetidos à exaustão no resto do mundo, de um ex-quase-futuro assassino de colégio.
As peças do quebra-cabeça são sempre as mais estúpidas, mas nós acreditamos, pois é mais cômodo aceitar uma mentira boa do que se angustiar com a verdade dolorosa e que exige mudanças e sacrifícios. Problemas mentais, garoto problema, tentativas de assédio, idéias mórbidas, timidez. Se formos monitorar todas as pessoas que têm esse perfil, quanto da população não deverá ser enquadrada no sistema prisional? 20%? E se juntarmos o perfil dos atiradores de Columbine, pessoas que gostam de Marilyn Manson e se interessam por segunda guerra, 30, 40% da população seria enquadrada preventivamente? Mais do que 1984, acabaríamos revivendo O alienista.
"Casos como esse têm de ser encarados como problema de saúde. A grande questão é o estigma da doença psiquiátrica”, diz uma especialista brasileira. A doença psiquiátrica é que é estigmatizada ou a sociedade é que é tabu? A especialista ainda conclui: “é preciso intervir”. Sem dúvida, é preciso intervir, mas onde? No maluco-assassino-suicida que reclama de ser humilhado - óbvio -, e não na sociedade que o humilha. Cho diz no seu manifesto que “vocês tiveram tudo o que quiseram”, Mercedez, colares, propriedades, bebidas, boemia, mas que isso não preenchia as necessidades hedonísticas. A historinha do rei nu é velha, mas atual, e sempre esquecida por quem nós esperamos que lembrasse.
Está claro quem produziu mais esse massacre. Não reclamavam que era um garoto tímido, não popular, que não gostava de aparecer? Um “loser” (perdedor), na classificação corrente nos EUA e nos seus macaquitos amestrados pelo mundo? Pois eis Cho provando o contrário: um vídeo, 43 fotos, 1800 palavras, correndo o mundo todo. Quem é o perdedor?

Campinas, 19 de abril de 2007

terça-feira, 17 de abril de 2007

Quotidiano

Passear pela cidade é, no mínimo, desgostoso.
Nosso quotidiano de pequenos desrespeitos nos faz tentar ser insensíveis para que o mais banal dia-a-dia não nos doa. Mas tem dias que a gente acorda um pouco mais sensível.
E vamos nos revoltando e nos desgostando: é o carro que estaciona na faixa de pedestre, na entrada da ciclovia. A faixa de pedestre, esse desperdício de tinta e dinheiro, já que na maior parte das cidades do Brasil ninguém respeita, e a faixa fica ainda situada em péssimo lugar: o pedestre pode ser atacado dos quatro lados.
É o lixo pela janela do carro, pela janela do ônibus, na calçada. De gente que depois diz "ah, mas na Europa é tudo tão limpo... é que o povo lá é civilizado", como se viver nestes tristes trópicos fosse razão suficiente para se dispensar da civilidade, do respeito.
É a o senhor de idade que tem que enfrentar fila, já que ninguém dá lugar. É a grávida que faz valer seus direitos e é olhada com certo desdém. É a fila do ônibus, que é grande, mas que muita gente não respeita, pois se o fizer vai ter que ir em pé na viagem de vinte minutos. Revolucionários que falam o tempo todo de um mundo melhor, onde todos tenham carro, ou onde todos viajem sentados no ônibus, mas até lá preferem ir em carro próprio com ar-condicionado, ou então furam fila, porque a revolução até pode esperar, mas eles não.
É o sinal que serve só pra carros: o pedestre que se cuide!
Não acha local para estacionar? Que tal a calçada, está ali, à toa, mesmo. Tão irregular que praticamente não serve para pedestre andar. Mas você é um pedestre e quer andar pela calçada, onde carros estacionados o impedem de passar. Pode reclamar ao guarda, que está logo à sua frente, ele também estacionado na calçada.
Mas tudo passa. Uma hora nosso desgosto e nossa raiva também passam. Assim como o nosso quotidiano, que passa. Esses desrespeitos mesmo, quem sabe um dia não passarão? Enquanto isso nos guardamos para os grandes acontecimentos da nossa vida, os quais esperamos, mas que nunca vem.

Campinas, 17 de abril de 2007



segunda-feira, 9 de abril de 2007

Lobão é traidor ou nós é que fomos bobos?

Claro que causa surpresa o novo disco do Lobão. Um disco acústico?! MTV?! Pela Sony-BMG?! Com músicas tocando na rádio?!
Algo está estranho nessa história, alguma coisa tem que ter mudado para que o Lobão voltasse a uma grande gravadora, depois de uns sete anos brigando com elas!
Segundo Lobão, mudaram as grandes gravadoras. Segundo alguns fãs, mudou Lobão. Segundo a famosa frase do Lampedusa: “Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. Creio que essa frase define de maneira apropriada a situação: mudaram as gravadoras, mudou o Lobão. Ou, não mudaram nem as gravadoras nem o Lobão.
As gravadoras seguem pagando o jabá tão denunciado por Lobão nos últimos anos. Seria diferente com Lobão? Por respeito ao artista, estariam deixando ele de fora do esquema? Não é o que dá a entender Lobão, na sua entrevista para a Folha de São Paulo: “Eu não pago jabá. Por que eu assinado [com uma gravadora], toco [nas rádios], e não assinado, não toco? Eu não tenho nada a ver com isso. Eu tô numa gravadora e pronto. É uma atitude muito moral dizer que eu tô pagando jabá”. Como se a acusação até ontem por ele feita era dirigida aos artistas, eles quem estimulavam o jabá, e não às gravadoras.
Então, como negar a “traição” de Lobão? Simples. Lobão não “traiu o movimento” porque nunca se comprometeu com movimento algum que não o da sua carreira. E sua carreira é de um artista da indústria cultural, não de um artista maldito ou marginal. “O sonho acabou”, já havia dito Lennon há quase três décadas. Nós é que fomos bobos em acreditar em Lobão e não em Lennon.
Expliquemos um pouco melhor sua mudança-não-mudança: seu último disco antes do litígio com as grandes gravadoras, Noite, “foi um tremendo fracasso”, como ele atesta na faixa dois do seu disco “2001: uma odisséia no universo paralelo” (tentei buscar o número na sua página, mas não consegui navegar, não sei se por não ser compatível com navegador Firefox e Opera ou por não ter informações mesmo). Curiosamente, depois desse tremendo fracasso, a gritaria contra as gravadoras e o jabá que ele agora diz ser moralista, rendeu ao “A vida é doce” quase cem mil cópias vendidas. Ele agora acha pouco, talvez porque queira competir com Sandy e Júnior, mas convenhamos que é uma marca considerável no Brasil, ainda mais sendo um disco de distribuição independente e em uma fase em que começava a cair a venda de cds. Já seu último disco antes do retorno triunfal, “Canções da noite escura” vendeu apenas quinze mil cópias. Pouco, sem dúvida. E Lobão é um artista da indústria, quer antes vender, não fazer arte – não entremos aqui na questão de se é possível arte na indústria cultural.
Como ele mesmo disse: “Estou fechando um ciclo”. Bancar o garoto rebelde já não alavanca vendas, o negócio é voltar a tocar nas rádios. Daí só resta a possibilidade de fazer um disco fácil. Entre um “ao vivo” e um “acústico”, ele optou pela segunda opção, já que já havia lançado um ao vivo em 2001. Para ficar ainda mais fácil, pega-se o modelito pré-fabricado MTV, em que não precisa sequer pensar.
Resultado: Lobão está de volta, tocando nas rádios, com boas chances de grandes vendas. O disco? Sofrível. É um acústico MTV. Se você já comprou algum, qualquer um, não precisa gastar seu dinheiro neste. Mas não sejamos injustos: ao menos aquilo a que a gritaria do Lobão se dirigia não era um fato inventado, merece ser combatido por pessoais mais sérias e comprometidas com outras coisas que não vendas.

Campinas, 09 de abril de 2007

domingo, 1 de abril de 2007

A ocupação da reitoria da Unicamp: como errar na dose e no momento

Felizmente a ocupação da reitoria da Unicamp por parte dos alunos teve um fim rápido e “feliz”. O reitor, pego de surpresa, não se utilizou do mando de reintegração de posse e da truculência policial, optando por negociar. A vitória rápida dos estudantes, que conseguiram que todas as suas reivindicações fossem atendidas, deve antes de momentos de alegria e discursos de “basta nós nos unirmos que nós conseguimos”, ou gritos de guerras infanto-juvenis “quem disse que sumiu? Aqui está presente o movimento estudantil”, despertar uma séria desconfiança quanto a esse movimento.
Não se pode dizer que foi uma vitória de Pirro, mas quanto pode ter custado a ocupação da reitoria? Creio que o reitor se surpreendeu com a ocupação primeiro porque não houve tentativa de conversa anterior quanto às casas da moradia, conforme me atestaram alguns estudantes que iam de sala em sala, explicando “o que estava acontecendo”; segundo porque a pauta dos RDs vinha sendo discutida há tempos, e caminhava para a solução desejada pelo DCE, conforme atesta panfleto distribuído pelo DCE no fim de 2006; terceiro porque um dos pontos da pauta era esdrúxulo, ridículo e mostrava a completa desinformação do movimento quanto às posturas do reitor, que já havia declarado publicamente contrário às medidas do Serra, divulgado, inclusive, um artigo questionando e se opondo aos “atos do governo Serra” (Folha de São Paulo, 1 de fevereiro de 2007).
E o que significa a vitória da ocupação? Sobre as casas condenadas da moradia, conseguiu que a reitoria aceitasse o bom-senso pedido pelos alunos, algo que não me parece difícil de conseguir se se sentasse para conversar; dos RDs a reitoria aceitou que no próximo Consu esse ponto voltasse à pauta – ponto que foi retirado do último Consu justo por causa da ocupação –; por fim, o movimento também conseguiu que o reitor se comprometesse a dizer o que já tinha dito. O único ponto que realmente só foi conseguido por causa da ocupação da reitoria foi a saída da coordenadora da moradia, a professora Kátia Stancato. Ponto este também questionável, pois havia meios internos para se conseguir isso que não foram tentado – conforme comentou o professor Lourenço, após ter conversando com alguns alunos que expunham “o que estava acontecendo”.
Como eu já havia dito em outra ocasião, a ocupação da reitoria foi um ato despropositado, uma medida drástica completamente desnecessária então. Não houve tentativa de conversa dos alunos quanto ao seu ponto principal – as casas condenadas –, o que desligitima a partir de agora qualquer reclamação do tipo “a reitoria não aceita/não se dispõe a conversar”. Se o movimento estudantil também não se dispõe a conversar, como reclamar isso do reitor? Ocupar o gabinete do único reitor que se posicionou contra os atos do governo Serra é um contra-senso que não merece maiores comentários. E usar de tal medida drástica por tão pouco (no fundo, a única pauta radical era a saída da Kátia), em um momento em que são grandes as possibilidades de uma greve desgastante é desperdiçar um poder de fogo muito grande, que pode fazer diferença num futuro próximo. Ou os alunos acham que se passarem a ocupar a reitoria todo mês vão ter sempre um caminhão da rede Record acompanhando, como se gabavam de contar? A primeira ocupação é novidade, a segunda é circo. Mostrar que uma segunda ocupação é também um ato político dependerá de fortes argumentos e justificativas, coisas que movimento estudantil organizado da Unicamp se mostra completamente incapaz.
Bater na Kátia é fácil, trata-se de peixe miúdo. Serve para inflar o ego e perder (ainda mais) a noção da força do movimento estudantil. E na hora de bater em Serra, Pinotti e Chaves (por sinal, a maioria dos estudantes que participaram da ocupação devem estar bem informados sobre quem é Eduardo Chaves, óbvio, pois não participaram da ocupação só por oba-oba), quatro dias de prato requentado serão suficiente para causar qualquer aos donos do poder?

Campinas, 01 de abril de 2007

quinta-feira, 29 de março de 2007

“Ah, se minha cabeça pensasse”: comentários sobre o movimento estudantil da Unicamp

Juro que tive a maior boa-fé por seis anos, sempre recusando o óbvio, achando que apesar de todas as burrices, aparelhamentos e atitudes injustificáveis do movimento estudantil organizado da Unicamp haveria dois neurônios, um ao menos, na cabeça dos meus pares que se dizem politizados. Mas chega um momento em que não há mais como negar sua burrice e imaturidade. Ações drásticas servem para situações drásticas. Se tais ações se tornam corriqueiras, anuais, deixam de ser drásticas e, conseqüentemente, vão perdendo eficácia conforme são banalizadas – vide o exemplo das greves, que têm quase todo ano, cada vez com menos adesões (esta crítica à banalização da greve não serve só para os alunos, como igualmente para o movimento docente).
Apesar de ter ficado sabendo antes, fui me inteirar sobre a ocupação da reitoria somente no dia seguinte, quando vi que o negócio era realmente sério, e não havia sido feito no oba-oba de um momento de euforia hormonal estudantil. Mas desde o início algo parecia meio fora de ordem nas reivindicações estudantis.
O problema das casas do bloco-B na moradia. A reitoria fez o mínimo que se esperava dela em tal situação, e ainda que pudesse (talvez devesse) fazer mais, não justificaria uma ação drástica. O que se fazer quando uma casa está com avarias estruturais? Deixar os alunos lá até cair, ou isolar para reformar? Nesse ínterim, o que fazer com seus moradores? A ajuda oferecida pela reitoria de R$ 200,00 por mês daria para cobrir os custos de uma temporada fora da moradia (com sobras), enquanto fosse feita a reforma. Havia o considerável porém de que achar vaga fora da moradia não é tão fácil e locar uma casa – como sugerido pela resposta do reitor posta na página da universidade – implica em assinar um contrato de um ano. A reitoria bancaria esses R$ 200,00 por um ano, mesmo depois das casas terem sido reformadas? Não há indicação na página do DCE de que houve qualquer tentativa de conversa desse gênero. O resto da pauta concernente à moradia, que vêm de longa data, os alunos perderam uma ótima oportunidade para sentar e pressionar, se aproveitando da oportunidade recebida.
Ocupar a reitoria para pressionar pela homologação dos representantes discentes eleitos na escolha organizada pelos alunos, quando havia comprometimento da reitoria nesse sentido, é, para dizer o mínimo, burrice. Já disse, ações drásticas são feitas em situações drásticas, não quando se está conversando e se caminha para a solução defendida pelos alunos – conforme informavam panfletos distribuídos no final de 2006. Mas o mais interessante é que quando a reitoria, em 2004, então sob o mando do Brito, resolveu que os representantes discentes seriam escolhidos em eleição feita pela reitoria, os diversos grupelhos de stalinistas-acéfalos que disputavam o aparelho – PT, PSTU, PT-futuro-PSOL, trotskistas-radicais e outros tão ou mais infantis que – preferiram dar prioridade à disputa entre si pelo aparelho do DCE ao invés de se unirem contra a reitoria e realizarem um ato como o que hoje acontece, o que seria plenamente justificável. Sem qualquer reação dos estudantes não foi difícil à reitoria homologar a sua risível eleição para “RDs”.
Mas, sem dúvida, o mais patético é a reivindicação de um posicionamento contra os atos do governo Serra. Quando vi essa reivindicação, por um instante pensei: estou com a memória tão ruim assim? Fiz uma pesquisa na internet para me tranqüilizar de que não precisava urgentemente buscar um psiquiatra, e também para evitar falar besteiras. Lá estava: vários comentários do reitor da Unicamp, José Tadeu Jorge, criticando os atos do governo Serra, e, não somente isso, um artigo no principal jornal do país, a Folha de São Paulo, no dia 1 de fevereiro, questionando tais atos e se posicionando contra o governador. É sabido também que a comunidade universitária em peso têm-se oposto a tais atos, o que os alunos querem ocupando a reitoria? Que o reitor diga o que disse? Se ele disse, e não voltou atrás, porque esse ato para exigir o que é? O IEL que se cuide...
Fosse o movimento estudantil feito por novatos, inexperientes, mas está muito longe disso: há seis anos havia aquelas pessoas que já eram do movimento há muito tempo, e que persistem ainda hoje, com as mesmas idéias, as mesmas atitudes. Não somente isso: muitos do movimento estudantil são políticos profissionais, filiados a partidos há quase uma década, apesar de não terem muito mais do que duas décadas de vida, disputam e ocupam DCE e CAs há vários anos, e sabem negociar e barganhar entre os pares e com diretores de instituto em matérias que lhes dizem respeito. Mas de vez em quando gostam de uma pirotecnia. Não sei se porque a adolescência lhes custa a passar, se por problemas cognitivos que lhes impedem de amadurecer – pior, lhes impedem de pensar! –, ou se porque o partido disse que o melhor momento para “ações radicais” são os inícios de ano, em que os alunos ingressantes ainda não entendem nada de nada e aceitam passivamente servir de gado para tais ações.
Alguns alunos justificam a ocupação atual remetendo à ocupação da reitoria em 2004, durante a greve, como se toda ocupação fosse igual e não houvesse qualquer distinção entre aquele momento e aquelas reivindicações e o momento atual, as reivindicações atuais. Em 2004, quando a greve já caminhava para seu segundo mês e o reitor da Unicamp, também presidente do CRUESP, negava a existência do movimento – a página da Unicamp não havia feito qualquer menção até então –, a ocupação da reitoria, aliada à volta dos funcionários à greve e o recrudescimento do movimento destes – fazendo piquete no bandejão, por exemplo –, foi um dos fatores determinantes para a virada e sucesso do movimento. Qualquer comparação entre as duas ocupações serve apenas para mostrar a estupidez da atual.

Campinas, 29 de março de 2007