domingo, 29 de julho de 2007

E agora, José, como salvar as agências reguladoras?

Está curioso – para dizer o mínimo – a reação ao acidente com o avião da TAM. Ao contrário do acidente com o avião da Gol, em que era fácil atribuir a culpa aos pilotos estrangeiros ou ao governo federal, o que tornava desnecessário maiores explicações sobre o tal “caos aéreo” brasileiro, ou a definição do que seriam os “quase-acidentes” que aconteciam (acontecem?) aos borbotões todos os dias no nosso espaço aéreo, fazendo com que viajar de avião seja quase tão inseguro quanto pegar uma estrada; neste novo triste episódio, com a suspeita recaindo sobre a empresa – logo a maior empresa aérea do país – e, pior, sobre agência reguladora da avião civil, a Anac, muita cautela, nada de conclusões precipitadas, ainda que suspeitas devem-se levantar todas, principalmente as que inocentam tais instituições.
Mas, independente do resultado das investigações, a Anac sai muito chamuscada do episódio, e põe em risco a grande panacéia mundial: o controle de tudo pelos mercados. Vale lembrar: na década de 90, com os mercados sendo apresentados ao distinto público como a solução para todos os problemas mundiais e governantes letrados buscando na tal “terceira via” ou “governança progressista” um nome mais chique do que neoliberalismo, as agências reguladoras eram parte essencial para que o Éden viesse ao nosso encontro. O papel do Estado, para além de protetor da ordem via repressão policial, consistia em sustentar tais agências e nomear seus dirigentes de tempos em tempos. A essas agências cabiam o papel de fiscalizar a sua área delimitada, conforme critérios “técnicos”, de modo a garantir o investimento e, assim, preservar os interesses dos consumidores. Tudo livre de pressões políticas, já que seu dirigentes não eram demissíveis.
E tudo vinha funcionando muito bem até o acidente da TAM: o governo, seguindo critérios técnicos, indicava os dirigentes conforme apadrinhamento de tal ou qual político, esses dirigentes, afinados com com as empresas do setor que deviam regular, prestavam um bom serviço (para elas), o povo ficava em casa assistindo Faustão ou alguma bunda que se agigantava na tela, e estávamos todos felizes e satisfeitos.
As mensalidades dos planos de saúde tiveram um grande reajuste? Culpa do governo, que ainda não liberalizou totalmente o setor. Os valores da telefonia são abusivos? Culpa do governo que segue interferindo na Anatel. O avião caiu, os aeroportos são ruins, culpa do governo, dos controladores de vôo, da Infraero, que segue estatal. A pista de Congonhas foi liberada por pressão das empresas, culpa... do piloto, do fiscal imprudente, do dirigente da Anac, escolhido sem os devidos critérios “técnicos”.
A imprensa liberal se viu em aporia: se criticasse a escolha do governo e os dirigentes da Anac, o que iria defender? O fim da agência? Mandato revogatório aos dirigentes? Mas, se assim for, isso criará precedente, pode afugentar investidores, rompe com toda essa aura técnica que o neoliberalismo, perdão, a governança progressista traz à política comensal e pequena que se perpetua em nosso Estado – não porque é grande, mas porque é de poucos. A solução até agora encontrada foi bater nos dirigentes e no governo pela sua “insensibilidade”, assim como Marta Suplicy foi linchada publicamente por um comentário infeliz sobre um problema de uma área que não era a sua. Outra tática, ainda não bem clara, está em criticar os critérios técnicos utilizados para a escolha dos dirigentes e co-responsabilizar o congresso pela nomeação. Talvez para mostrar como a política estraga tudo, e estivesse na mão de técnicos escolhidos pelo mercado nada disso teria acontecido?
A discussão ainda deve render muito, mas não seria de se estranhar se um acordo de cavalheiros entre governo, empresa, imprensa, “sociedade civil”, técnicos e peritos selasse por culpar o piloto pelo acidente: sem chances de se defender, os vivos poderiam seguir tranqüilamente sua vida, defendendo a eficiência do mercado e as promessas de civilização vindas com os últimos inventos vindos do norte. Até o próximo acidente.

Campinas, 29 de julho de 2007

segunda-feira, 16 de julho de 2007

“O caminhar para a civilização pela liberdade”: a imigração na construção da nação em Tavares Bastos (trabalho de tópicos em imigração)

Conforme Caio Prado Júnior, o Segundo Reinado talvez seja o período mais interessante da história brasileira, uma vez que é durante ele que ocorrem as mudanças significativas da ordem colonial que resultarão na modernidade brasileira dos nossos dias: “A complexidade do Brasil de hoje, em que encontramos lado a lado uma civilização moderna e que se emparelha à dos povos mais desenvolvidos da atualidade, e formas antiquadas que sobraram da colônia, explica-se precisamente pela história do Segundo Reinado, onde se situa, em sua parte fundamental e essencial, o processo da modificação parcial sofrida pelo país” (PRADO JÚNIOR, 1979, p. 191). A tentativa de conciliar as idéias em voga na Europa e nos Estados Unidos com uma sociedade ainda marcada fortemente pelas heranças coloniais não poderia deixar de ser contraditória(1).
Tavares Bastos foi um homem do seu tempo. Filho de família de elite de Alagoas, bacharel em direito pela Faculdade São Francisco, deputado por três legislaturas na década de 1860 – década na qual produziu sua obra –, oscilando da facção moderada do Partido Conservador para a tentativa de criação do “novo” Partido Liberal, é considerado um dos principais pensadores liberais do Segundo Império. Isso não significa que Tavares Bastos fosse um radical, disposto a sair à rua em companhia do povo para defender a liberdade – como, por exemplo, Cipriano Barata, em fins do século XVIII e início do XIX –, ainda que a sociedade imperial não possa ser tida como grande exemplo do liberalismo, seja político, seja econômico. Fortemente influenciado por Stuart Mill, Tocqueville e os Federalistas estadunidenses, nosso autor acreditava que era a partir de leis bem feitas que o Brasil seria capaz de superar a barbárie e chegar à civilização, identificada com os Estados Unidos – sua grande referência e então em guerra civil – e com a Inglaterra: “Nada mais liberal. A lei como instrumento privilegiado das relações sociais, na medida que somente assim se poderia operar uma ordem institucional 'civilizada', onde os sistema representativo virtualmente traria para a arena política parcelas cada vez maiores de 'homens superiores', forjados pela fortuna e pela educação, como afirmaria Stuart Mill” (REGO, 2002, p. 94). Defensor do livre-cambismo inglês em uma época em que ele já não tinha mais crédito nas políticas dos países centrais(2), e, principalmente, defensor do federalismo, apesar desse federalismo não estar necessariamente ligado à República.
Ainda que o federalismo seja o ponto mais marcante do seu pensamento, não nos ateremos aqui de maneira específica a este aspecto, e sim tentaremos ver como a imigração, para Tavares Bastos, contribui para a formação da nação brasileira. Porém, o faremos sem tratar dos aspectos mais operacionais da questão, como a descentralização, ou as políticas para o estímulo à criação de correntes espontâneas de imigração. Servirá como guia nesta nossa análise a interpretação de Antonio Carlos Robert Moraes, para quem a colonização americana, por ser um processo de ocupação de territórios pelas metrópoles européias, acaba por marcar o pensamento das elites desses países, mesmo emancipados, pela questão geográfica. No caso brasileiro, o território é fator de agregação das elites e determinação da forma monárquica de governo pós-independência (para o qual também contribuiu o contexto europeu de tentativa de restauração da ordem pré-napoleônica):
“Neste quadro de formação nacional tem-se um território a ocupar e um Estado em construção, mas a população disponível não se ajusta à identificação de uma nação conforme os modelos identitários vigentes nos centros hegemônicos. No contexto, ao abandonar-se o caminho de construção da nacionalidade proposto por José Bonifácio (cujo eixo repousava na gradativa abolição das relações escravistas), começa a tomar corpo uma concepção que vai identificar o país não com sua sociedade mas com seu território, isto é, o Brasil não será concebido como um povo e sim como uma porção do espaço terrestre, não uma comunidade de indivíduos mas como um âmbito espacial. (...)
“Controlar a terra e o trabalho, e expandir fisicamente a economia nacional constituem os alicerces do pacto [oligárquico firmado entre as elites regionais], que expressa bem na ótica geopolítica que o fundamenta. (...)
“O Estado será o guardião da soberania e o construtor da nacionalidade, entendida como o povoamento do país. A idéia em foco, além de bem costurar o poder das elites e do Estado forte, ainda qualifica a população em seu lugar subalterno no projeto, o povo sendo visto como instrumento da construção do país.
“Tal visão instrumental dos segmentos populares expressa-se claramente num debate que atravessa o pensamento brasileiro por todo o século XIX, adentrando nas primeiras décadas do século XX: com que povo contamos para construir o país. Toda a discussão sobre a política imigratória, por exemplo, tem esta questão como pano de fundo.” (MORAES, 2005, p. 93-94).
Como dito acima, Tavares Bastos cria que boas leis eram fundamentais para a melhoria moral do povo. Porém somente elas não eram o suficiente. Ainda na esteira de Stuart Mill, tinha a educação, o trabalho e o comércio livres como outros fatores determinantes para a entrada do Brasil na civilização. Essa necessidade do trabalho livre, todavia, não resultava, necessariamente, na abolição radical da escravatura – a qual poderia trazer o colapso econômico ao país –, mas deveria ser feita de maneira gradual(3), conforme as características de cada província do império, e conciliada com a afluência de trabalhadores livres ao país. Concomitante à abolição, inclusive, Tavares Bastos defendia a educação para os negros libertos, para que não ficassem lançados à própria sorte: “emancipar e instruir é a forma dupla do mesmo pensamento político. O que haveis de oferecer a esses entes degradados que vão surgir da senzala para a liberdade? O batismo da instrução” (TAVARES BASTOS, 1870, p. 240).
No que tange o ponto mais específico que nos propomos a tratar aqui, podemos dizer que a imigração, para nosso autor, se articula de três maneiras principais na construção da nação: a necessidade de mão-de-obra, a necessidade de se trazer a civilização a estas bandas, e a questão da ocupação do território.
A década de 1860, marcada pelo avanço da cultura cafeeira no sudeste do império, já deixa transparecer o problema de falta de mão-de-obra – devido à expansão do café e ao fim do tráfico negreiro na década anterior –, problema que se apresentava grave quando se vislumbrava a abolição da escravidão, então base da produção econômica nacional, e o possível êxodo dos negros das fazendas. A imigração surgirá como possível resposta ao problema.
Apesar de defensor da livre-iniciativa, no que diz respeito à imigração, nosso autor defende a participação dos governos imperial e provinciais, enquanto não se estabelecesse uma corrente espontânea de imigração para o país, a exemplo do que então ele observava ocorrer nos EUA. Essa corrente precisava de um estímulo inicial pois, não obstante o Brasil fosse um país “dotado de vastos recursos naturais; um terço possui excelente clima, todo ele grandes rios, extensas costas e ótimos portos a pouca distância da Europa” (TAVARES BASTOS, 1861, p. 59), as heranças coloniais e os arrombos centralizadores da capital federal serviam de desestímulo à vinda de imigrantes para o país: falta de liberdades individuais, escravidão, predomínio de grandes propriedades, justiça mal-remunerada, falta de rede de comunicações, dependência excessiva dos poderes geral e provincial são alguns dos problemas levantados (idem, p. 59-60). Assim sendo, e não fazendo parte das suas propostas mudanças radicais e abruptas na estrutura social, Tavares Bastos defende que o governo deva criar mecanismos para estimular a imigração, já que não o fazem os particulares (TAVARES BASTOS, 1870, p. 272): “nos Estados Unidos, sim, a intervenção do governo é inútil. Aqui, porém, há um motivo poderoso, uma razão de alta política, para se recomendar que o governo continue a intervir, que as administrações geral e provinciais se apressem em criar a corrente de imigrantes para o Brasil” (TAVARES BASTOS, 1861, p. 68), inibida principalmente pelo “regime servil” (idem, p. 69). Esse “motivo poderoso” é o período de crise que o autor prevê para após o fim da escravidão (ainda que esta ocorra de maneira gradual), ao fim do qual a imigração poderia ser deixada às “causas naturais”, como nos EUA. Porém, se a escravidão é fator de inibição de uma corrente imigratória espontânea, a imigração de braços livres não é incompatível com o trabalho escravo, mas apenas com o tráfico negreiro, já extinto (idem, p. 64). Vale ressaltar que se Tavares Bastos defende participação dos governos na criação de uma corrente imigratória, se opõe ao centralismo existente e que marca as tentativas de colonização da época: “abandonemos a pretensão de adivinhar, no retiro de um gabinete, os interesses peculiares de localidades tão distintas e tão diferentes, e de impôr-lhes um mecanismo administrativo qualquer sem audiência delas” (TAVARES BASTOS, 1870, p. 274).
Ainda que o problema central para o qual a imigração é chamada a resolver seja o da mão-de-obra, seu papel não deve ser simplesmente o de trazer braços, e sim ser um estímulo a mais para a civilização, junto com a educação, para o fomento do “'homem do progresso', aquele capaz de absorver as inovações da civilização no processo de trabalho, removendo pois o personagem dominante no Brasil: o 'homem de rotina'” (REGO, 2002, p. 169): “Que sorte aguarda nossa indústria agrícola, quando, verificada a impotência da rotina secular, o proprietário inteligente carecer de temperar a crise da deficiência de braços com os processos da arte aperfeiçoada?” (TAVARES BASTOS, 1870, 216-217). Portanto a imigração que deve ser estimulada pelo governo é a das “raças civilizadas”, ou seja, a imigração branca, seja ela européia ou de estadunidenses descontentes com a situação política do seu país. A imigração de trabalhadores asiáticos, cogitada por políticos da época, ainda que não deva ser proibida, deve ser feita por particulares, cabendo ao governo apenas o papel de fiscalização: “condenemos, vivamente condenemos, este desvio da opinião mal esclarecida: não é essa [de asiáticos] a imigração que carecemos. Estéril para o aumento da população, dispendiosa, bárbara como o próprio tráfico de negros, ela é acompanhada de um triste cortejo de imoralidades” (idem, p. 276).
Para a grande lavoura, ao contrário do que seria de se esperar, Tavares Bastos não vê o problema da mão-de-obra como crônico, e crê ser desnecessária a importação de braços para tal fim: braços têm-se os dos trabalhadores negros, uma vez libertos, já acostumados ao clima e comprovadamente eficientes no trabalho pesado; a temível falta de mão-de-obra nas lavouras poderia ser sanada se se introduzisse inovações técnicas:
“Queixa-se a grande lavoura de falta de braços? Singular queixa sob o império da escravidão, que permite a cada canto os mercados de cativos! Queixa-se de si, da sua rotina, da sua resistência a qualquer melhoramento. Pode-se ouvir sem impaciência lastimar a falta de braços o proprietário que ainda lavra a terra a enxada? Quanto aos capazes de progresso, tenham eles ânimo, e avante! Renovem o seu material, mudem os seus processos, abandonem a rotina: e, quando soar a hora da emancipação, aí tem à mão o melhor trabalhador dos países tropicais, o negro indígena e aclimatado” (idem, p. 277-278).
Tais inovações, capazes de suprir a falta de braços reclamada pelos produtores rurais, dependem de romper com o homem de rotina e adotar os avanços tecnológicos dos países civilizados; por isso a importância da imigração, ainda que não para suprir de maneira imediata o trabalho negro, mas para estimular novas soluções, como trabalhador das grandes fazenda ou como mero vizinho dessas grandes propriedades, cujo exemplo serviria já de estímulo.
Mas, para que o processo de importação de civilização fosse realizado com êxito, também era necessário que o governo, quando fosse buscar na Europa imigrantes, buscasse emigrantes agricultores e operários agrícolas, evitando os mendigos, vagabundos e artistas medíocres que geralmente eram os encaminhados pelos agentes oficiais (TAVARES BASTOS, 1861, p. 69). Uma vez estabelecidos no país, “essa população, melhor educada e superior à das antigas províncias, exerceria sobre a destas uma ação eficaz e irresistível” (idem, p. 80).
Os destinos propostos pelo pensador alagoano para os imigrantes europeus uma vez no Brasil eram dois: como trabalhadores das cidades ou como colonos em áreas ainda despovoadas ou parcamente povoadas.
Aos que se dirigiam às cidades, centros da indústria e do trabalho assalariado, o governo necessitava inibir a concorrência com os escravos negros, principalmente por meio de aumento de impostos sobre, proibição do aluguel de, ou de possuir mais negros do que os necessários para os serviços domésticos. Mesmo se não se conseguisse essas melhoras institucionais, havia a possibilidade do imigrante ir para algum núcleo colonial, ou para alguma província em que não houvesse tantos escravos, como Paraná, Santa Catarina, Ceará e Amazonas (idem, p. 66).
Se nas cidades o trabalho escravo era fator complicador da chegada das populações civilizadas, o processo de modernização via ocupação do território esbarrava na herança colonial dos grandes latifúndios e na inépcia das províncias em promover a ocupação dos seus rincões selvagens. Para sanar tais impedimentos, as propostas de nosso autor têm dois pontos principais, inspiradas na experiência estadunidense: a compra das áreas desocupadas das províncias, para a criação de núcleos coloniais e posterior formação de novas províncias (idem, p. 80), sendo a venda dessas áreas feita a preços simbólicos, tal como no Homestead Act promulgado nos EUA em 1862, pois, diz ele, “o maior proveito do Estado consiste não no pequeno preço da venda [de terras], mas na reprodução da riqueza pública pela exploração de domínios incultos” (idem, p. 82-83); e a criação de um imposto territorial, principalmente nas áreas próximas às vias de comunicação ou às cidades, “que já tiram proveito imediato dos sacrifícios do Estado” (idem, p. 88), visando o estímulo à produção nessas terras – ainda que latifúndios –, tornando-as rentáveis, e contribuindo para o fortalecimento da missão do Brasil do mundo, ser o celeiro da Europa (TAVARES BASTOS apud REGO, 2002, p. 102); ou seu desmembramento em pequenas propriedades para a venda e ocupação por colonos europeus.
Temos, portanto, que mesmo para um pensador liberal, defensor da não intervenção estatal, o pacto entre as elites resultava em soluções que demandavam a presença intensa do Estado no processo de colonização e formação da nação: seja através da venda e distribuição de terras, seja através da seleção dos imigrantes que deveriam vir para o país. Como comenta Pontes: “Anti-intervencionista, como era, fascinado pelos mais extremes princípios liberais, transigia entretanto, em que se tratando da questão imigratória, onde lícito lhe fora a ação dos poderes públicos” (1975, p. 150). A corrente espontânea, ideal para Tavares Bastos pois respeitadora da liberdade e das causas naturais, ficava para um futuro distante, em que boa parte da “nação” já houvesse sido selecionada pelo Estado.
Nas considerações final do capítulo “Memória sobre imigração”, de Os males do presente e as esperanças do futuro, vemos a forte marca da territorialidade no pensamento de Tavares Bastos, em que o terra é caracterizada com nobreza, enquanto o povo merece como qualificação a de “pacífico”: vencidos os entraves institucionais para a ocupação do território e tendo feito o governo um levantamento estatístico detalhado dos recursos e da situação dos imigrantes no país, publicizando-o no exterior, “pouco a pouco o desfavor que o persegue [nosso formoso país] no mundo converter-se-á na simpatia que ele merece por seu excelente clima, por sua fertilidade, pelo seu sistema fluvial de comunicações internas, por suas instituições livres, pela ilustração do seu governo e pelos hábitos pacíficos do seu povo” (TAVARES BASTOS, 1861, p.125). Ou, nas palavras de Pontes, comentando a influência do alagoano no manifesto de 70:
“Era justamente a volta às nossas leis naturais e históricas, o que propugnava Tavares Bastos e, inspirado nele, que acentuara as nossas tendências descentralizadoras desde a própria formação das Capitanias, o manifesto de 70, desenvolvendo-lhe as idéias, visava as mesmas conclusões: 'A topografia do nosso território, as zonas diversas em que ele se divide, os climas vários e as suas produções diferentes, as cordilheiras e as águas estavam indicando a necessidade de modelar a administração e o governo local acompanhado e respeitando as próprias divisões criadas pela natureza física e imposta pela imensa superfície do nosso território.'” (PONTES, 1975, p. 179. grifo do autor)
Ou seja, as leis naturais que o país devia seguir estavam determinadas pelos seus morros, vales e rios, assim como seu papel de celeiro da Europa era tão natural quanto. Se na Europa o Estado-nação moderno que então se estabelecia pode ser definido como um território sobre o qual dominava a totalidade da população, esta, por outro lado, exercia crescente influência no Estado – via representação eleita, por exemplo (HOBSBAWM, 1990, p. 101) –; no Brasil, em que a grande massa da população era posta à margem do processo político por uma elite dirigente que desprezava a população aqui residente, Tavares Bastos – que, ainda que não chegasse a propostas extremas como a expulsão dos negros do território brasileiro(4), rejeitava a população autóctene como elemento formador da “raça brasileira” (PONTES, 143-144) – não difere essencialmente de seus pares, e nada mais “natural” do que não restasse a ele, como a essa elite, outra coisa que o território para se identificar, cabendo buscar na Europa ou nos EUA raças civilizadas, populações superiores, para ocupar e garantir o território, aptas – quem sabe – a participar das decisões políticas, e então, sim, permitir ao país a constituição de um Estado-nação civilizado, aos moldes dos centros hegemônicos.

NOTAS
(1) Ver Schwarz, R. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis.
(2) Esta idéia de defasagens entre a sociedade brasileira e o pensamento de Tavares Bastos, e deste com as sociedades européias é defendida por Rego (2002) e questionada por Abreu (2004). Vai além do escopo deste trabalho aprofundar tal contenda.
(3) A defesa radical da abolição da escravatura ganharia força somente na geração seguinte à de Tavares Bastos, e teria em Joaquim Nabuco seu grande nome.
(4) Ver Lourenço, F. Agricultura ilustrada: Liberalismo e escravismo nas origens da questão agrária brasileira. p. 158-159

BIBLIOGRAFIA
Abreu, Eide Sandra Azevedo. O evangelho do comércio universal: o desempenho de Tavares Bastos na liga progressista e no partido Liberal (1961-1872). Tese de doutorado. Campinas, 2004
Hobsbawm, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. [Tradução de Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
Lourenço, Fernando Antonio. Agricultura ilustrada: liberalismo e escravismo nas origens da questão agrária brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
Moraes, Antonio Carlos Robert. Território e história no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
Pomer, Leon. O surgimento da nações: o poder político; a natureza histórica do Estado; os estados nacionais. Tradução de Mirna Pinsky. São Paulo: Atual; Campinas: Editora da Unicamp, 1987.
Pontes, Carlos. Tavares Bastos (Aureliano Cândido, 1839-1875). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975.
Prado Júnior, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 1979.
Rego, Walquíria G. Domingues Leão. A utopia federalista: Estudo sobre o pensamento político de Tavares Bastos. Maceió: Edufal, 2002.
Schwarz, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2000.
Tavares Bastos, Aureliano Cândido. Os males do presente e as esperanças do futuro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. [1861]
_____________________________. A província. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. [1870]
Zorzetto, Alessandra Ferreira. Propostas imigrantistas em meados da década de 1860: a organização de associações de apoio à imigração de pequenos proprietários norte-americanos: análise de uma colônia. Dissertação de mestrado. Campinas, 2000.

Campinas, 16 de julho de 2007

terça-feira, 10 de julho de 2007

Barricadas em três tempos (e-meio para o Fernando Lourenço)

Olá professor Lourenço, tudo bem?

Quinta passada você falou sua opinião sobre a greve e as barricadas, as “cadeiradas”, como chamou. Abriu o espaço para expormos nossas opiniões, mas, como não gosto de falar em público, preferi não comentar nada. Depois de hesitar se ainda estava em tempo, resolvo fazê-lo agora, por e-meio. Espero que não se incomode por não ter falado antes, no espaço aberto. Não é meu interesse contrapor diretamente minha opinião à sua, antes apenas apresentar a minha.

Na minha visão, de estudante um tanto distante do movimento estudantil, mais um espectador – assistia às assembléias, mas não falava nada, nem participava ativamente do movimento –, acho que as barricadas tiveram três momentos principais. O primeiro foi quando, decida a greve dos estudantes, optou-se por essa forma de coação dos professores, forçando todos a pararem. Acho que foi uma ação importante – diria até mesmo acertada –, e uma forma interessante de chamar a atenção, além de ter aflorado uma série de questões recalcadas – que resultaram, creio, depois de todo o desenrolar, no clima não-amistoso comentado por você em sala.

Digo acertada porque quebrou um pouco – um pouco! – com a rotina de greve do IFCH: todo ano, no fim do mês de abril, início de maio, é hora de falar em greve e entrar em greve. Este ano não foi diferente: fim de abril, início de maio, fala-se em greve, ainda que os decretos sejam de janeiro e fevereiro! Volta e meia entramos em greves pífias, quase que exclusivas do IFCH, cuja adesão é de apenas alguns professores, geralmente os mesmos. Este ano, ainda mais com a entrada dos alunos da pós, tivemos um movimento mais forte dos estudantes. Mas muito provavelmente alguns professores continuariam suas aulas, forçando os alunos a assistirem, mediante as formas de controle que possuem, enquanto outros entrariam em greve porque todo ano, no mês de maio, é assim. As barricadas, nesse aspecto, me fizeram lembrar certos poemas (cujo nome não consigo lembrar), como “o operário disse não”, do Vinícius de Moraes, “a flor e a náusea” ou “stop”, do Drummond: quebraram a rotina, o tédio, alguns velhos hábitos, tornou a greve consciente. Por que exatamente estamos aqui, fazendo greve, protestando?

Outro ponto porque julgo necessárias as barricadas foi o “despreparo” (não achei termo melhor, apesar de não achar despreparo adequado) dos alunos e funcionários (e dos professores também). Como falou a professora Yara, da filosofia, na primeira assembléia: “tirem as barricadas e elaborem um discurso para convencer”. Por quase dez dias não havia um discurso capaz de justificar a greve! Havia alguns fragmentos perdidos, sem muita consistência e sem densidade, ou o velho pregar para os convertidos. “Os decretos são ruins”, mas ninguém era capaz de explicar o porquê! Por que prestar conta era o atentar contra a autonomia universitária? Depois, para mim, ao menos, conseguiu-se elaborar argumentos mais claros e consistentes, capazes de incitar um diálogo inteligente. As barricadas mostraram uma fragilidade do movimento, necessária de ser reparada para que tivesse sucesso, acredito que de outra forma esse “pequeno” lapso iria sendo levado, talvez até o final, sem se dar a devida importância.

O terceiro ponto foi, como disse, aflorar certas questões recalcadas, como as relações professor-aluno, professor-funcionário e aluno-funcionário (tanto é que os terceirizados foram “proibidos” de seguirem limpando os banheiros durante a greve). Foram poucos os professores, inclusive, que se mostraram abertos ao diálogo franco, dispostos a responder as colocações – muitas vezes ingênuas ou estúpidas – de alguns alunos. Cito dois que me chamaram a atenção: o Bianchi e a Yara.

As barricadas foram um ato “violento”? Se usarmos violento aqui em um sentido amplo, pode-se dizer que sim. Mas creio que foi muito mais um “violento” no sentido da desobediência civil em Rawls: um ato extremo que visa pequenos acertos em uma estrutura (assim digamos) à qual não se opõe de todo, uma estrutura justa. Tanto é que ela aconteceu, não por acaso, no IFCH, onde a abertura para o diálogo existe e acredita-se (julgo) estar em um caminho razoavelmente justo, dentro das possibilidades de uma estrutura universitária.

O segundo momento das barricadas foi o de quando os professores aderiram à greve. A oposição veemente e sem justificativa de certos professores às barricadas (a Yara foi uma das poucas a aceitar participar de um debate com os alunos e argumentar tudo o que podia e não podia sobre fins que justificam os meios, princípio da diferença, respeito às liberdades, etc, para pedir a retirada delas), chegando a extremos de mandar aluno calar a boca; ou então na “condicional” dos professores para abrirem diálogo quando, eles também, entraram em greve (ao menos assim foi entendido pelos estudantes aquele comunicado feito em frente o prédio das secretarias, em que você também estava), acabaram por dar razão a muitas das reclamações dos estudantes sobre a questão da hierarquia, de que os professores se negam a tratar todos como iguais, não importa a situação. Foi aí, creio, que houve a grande cisão dos alunos com os professores, justificada mas difícil de ser justificável. Minha opinião nesse momento foi – e segue sendo – em cima do muro. Acho que deveríamos ter retirado as barricadas sob condições (não expostas de maneira direta): já que estávamos todos em greve, não haveria mais coação para os alunos voltarem às aulas, os funcionários ao trabalho; caso houvesse, seria justificável o retorno das cadeiras, pois os professores não seriam capazes de cumprir com os acordos, não eram dignos da confiança necessária para o diálogo e a democracia. Mas também havia um pouco essa vontade – talvez mesmo necessidade – de enfrentamento. De exigir, como condição para o diálogo, o fim da condicional dos professores para o diálogo. Foi como um grito, desçam!

O terceiro momento foi o retorno das barricadas. Esse foi um ato que julguei equivocado, aí sim, dando justificativa para acusar as cadeiras de violentas, de atentado contra a liberdade. O diálogo que as barricadas poderiam fazer aflorar já haviam aflorado; o foco da discussão sai dos decretos para, novamente, ser as barricadas. “Porque deu certo” era a justificativa do que, para mim, se tornou um ato de rebeldia despropositado. Era um momento de “refluxo do movimento”, como os figurinhas de sempre das assembléias gostavam de chamar, aquele empolgante movimento de estudantes diminuía, os professores fora da greve já era uma pressão para o retorno, os decretos ainda estavam lá, apesar do decreto declaratório: vitória ou engodo? será que não conseguiríamos mais, a revogação dos decretos? começamos a greve, não deveríamos encerrá-la? Ainda tínhamos a ocupação da DAC, feita inicialmente em solidariedade com a ocupação da USP e para tentar reanimar o movimento. A USP desocupou, e aqui o reitor não aceitava dialogar – ato óbvio do reitor, uma vez que já havia negociado na ocupação da reitoria, ridícula, boçal, por sua pauta de reivindicações. O movimento chegou a reanimar – até ano passado nunca tinha visto assembléia do DCE com mais de 100 alunos, ver uma com 1200 assusta! - mas já estava no fim. Aquele movimento que começou com as barricadas já não se sustentava mais, por mais que voltassem as barricadas. Havia também um considerável ressentimento com os professores, por se oporem inicialmente às barricadas, por porem condicionais para o diálogo, por saírem antes da greve: de pouco adiantou o Bianchi dizer que era momento de evitar cisões para permitir a união de forças em um possível embate futuro. Creio que esse terceiro momento ajudou muito as barricadas a perderem legitimidade para aqueles que estavam em cima do muro.

Acho que me estendi além do que seria de bom tom - e só falando das barricadas. Não creio ser oportuno ainda querer palpitar sobre a greve, o antes da greve, os professores, etc. Apenas ressalto uma coisa que muito me agradou no movimento dos estudantes deste ano: tanto os partidos políticos, PSTU, PCO, DCE-PSOL, quanto os grupelhos organizados não conseguiram impor uma direção ao movimento, pelo contrário, o tempo todo tiveram que ir aonde os estudantes “desorganizados” decidiam ir. Falavam, ocupavam espaço, tentavam direcionar. Mas perdiam.

Fico por aqui.

Um abraço,

Daniel Dalmoro