sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Preparar para o trabalho

Pode dar a impressão de que quero ser chistoso no que vou falar agora, mas digo-o sério: o curso de filosofia não me preparou para o mercado de trabalho. Tampouco falo aqui o óbvio, ainda que não se trate de nenhuma novidade. Uma faculdade de engenharia não prepara para o mercado de trabalho somente ensinando cálculo e aspectos técnicos da profissão, há algo mais profundo, que adentra a “alma” de quem encerra a graduação. Uma faculdade filosofia, óbvio, não vai me dar o instrumental para ser engenheiro, mas quando digo que não me preparou para o mercado de trabalho é justamente por conta desse outro aprendizado, sutil, mas poderoso, que me faltou.
Dizia Foucault, em Vigiar e Punir, que a escola não é nada mais do que um aprendizado do bom-comportamento (estou vulgarizando bastante Foucault), um adestramento para o ritmo fabril, uma versão diluída do controle encontrado na prisão. É justamente esse treinamento que a faculdade de filosofia não me deu: não fui bem adestrado para ficar oito horas por dia me comportando como um macaco adestrado, em trabalhos sem criatividade, repetindo esquemas prontos, ainda que tais esquemas exijam criatividade.
Não tenho vergonha alguma, pelo contrário, em admitir que das 37 disciplinas que cursei para me bacharelar, estudei mesmo para 16, segundo meus cálculos aproximados, das quais quatro eram disciplinas de orientação de estudo e, portanto, não havia aula. O resto foi para “queimar crédito”, como se diz na Unicamp. Felizmente, o tempo que teria perdido em sala de aula, graças a uma frouxidão difundida no departamento de filosofia quanto à presença, pude estudar e me dedicar a essas 16 disciplinas, assim como estudar muita coisa por fora. Creio que foi graças a isso que considero minha formação como ótima. Apenas lamento que essa “vagabundagem” não seja oficial.
Mas eis que começo minha segunda graduação, em ciências sociais, um curso teoricamente muito mais crítico do status quo do que o de filosofia. Como já sabia, pelas matérias de ciências sociais que havia feito durante a graduação em filosofia, aqui o controle é mais rígido: professores que reprovam por falta, fichamentos valendo nota, provas, trabalhos, nota por participação em sala de aula. Um aprendizado difícil e doloroso para quem passou cinco anos relativamente livre para descobrir e praticar a forma pela qual aprendia melhor. Outra coisa que também tenho apanhado para aprender: encher lingüiça. Em filosofia, um professor avisa que um trabalho com menos de cinco páginas não conseguirá responder à questão formulada, e que mais do que vinte ele não conseguirá corrigir em tempo. Em geral, em ciências sociais, o trabalho precisa ter um mínimo páginas não porque a questão exige, mas porque o professor exige. Você escreveu sete páginas e acha que falou tudo o que sabia e precisava sobre o assunto, mas o professor exige vinte páginas. Você, para não arriscar, já que o professor é a autoridade, com poderes de te reprovar, cumpre o exigido: escreve outras treze páginas dizendo nada, coisa alguma e repetindo o que já foi dito, duas vezes.
Esse foi o primeiro choque. O segundo foi quando comecei o estágio na prefeitura. Foi aí que vi a diferença entre o curso de sociais e de filosofia: precisei aprender a levar oito horas para fazer o trabalho que precisaria de duas. Algo difícil para qualquer um, mas mais ainda para quem não precisou se habituar a ficar quatro horas trancado em uma sala de aula, como uma criança no primário, olhando para frente com cara de interessado, enquanto pensa o que vai fazer quando terminar aquele suplício. Ou, para passar um pouco o tempo, começa a anotar as besteiras, erros e gafes cometidos pelo professor. Quando não passa a se comportar como uma criança do primário. Mas, ao que tudo indica, por mais que você não goste, ao fim de quatro anos terá aprendido a matar tempo docilmente, como se isso fosse necessário ao bom andamento do universo.
Aqui entra uma observação curiosa: enquanto o curso de ciências sociais é mais crítica do que a filosofia quanto a essas coisas mundanas, como trabalho, exploração de classe, etc (conheci estudantes de filosofia que só souberam das torturas no Iraque três meses depois da famosa foto de Abu Grahib), ela é, ao menos tempo, muito melhor adaptada às relações que diz criticar. Inclusive por professores que julgam imprescindível a um bom revolucionário unir teoria e prática. E se consideram bons revolucionários. Impõem hierarquias, adestram para o ritmo fabril, para a docilidade frente as regras, ao mesmo tempo que ensinam uma retórica crítica, explosiva, embasadas em análises cortantes. Para eles a prática se faz na luta revolucionária, não nas ações quotidianas. E depois não entendem o que houve com a experiência do comunismo real.

Campinas, 24 de agosto de 2007

domingo, 12 de agosto de 2007

Pessoas com trilha sonora

Javier Castañeda, colunista do jornal espanhol La Vanguardia, já comentou (em www.lavanguardia.es/lv24h/20060316/51243793999.html e www.lavanguardia.es/lv24h/20070621/51365451215.html) da atual onda evasiva iniciada com os ipods e seus similares, em que as pessoas, no trânsito da sua casa ao seu serviço fogem do tédio de uma cidade conhecida e de seus barulhos desagradáveis, das conversas desinteressantes das pessoas nos ônibus. Não somente isso, no Brasil ganha adeptos a instalação de DVD nos automóveis (já que o sistema de transporte é ruim e classe média não anda de coletivo), aumentando ainda mais a alienação – e a conseqüente indiferença – com a cidade, com o entorno da pessoa. Ao comentar isso com uma amiga recebi como resposta: “mas em São Paulo, quer o que?”, como se coubesse a nós somente ver o que é belo, o que é feio escondemos (atrás de outdoors, por exemplo) e, na impossibilidade disso, nos escondemos, como se não fosse assunto nosso a cidade em que vivemos.
Mas voltemos aos toca-mp3, hoje já um tanto fora de moda com os novos celulares, cada vez mais cheio de utilidades (para disfarçar o fato do celular ser uma necessidade induzida, desnecessária, portanto?). Tenho a impressão de que os fones no ouvido não servem apenas como evasão do entorno, mas também para preencher um pouco uma vida em si sem graça – pelo menos sem a graça vendida pelo cinema e desejada por tantos, que não conseguem buscar nada além do que uma vida que imita a “arte”. Se não vivemos aventuras mil, se não topamos com o grande amor da nossa vida em uma inesperada situação, se não temos uma paixão caliente e arrebatadora em cada esquina, a música nos ouvidos ao menos nos permite termos uma trilha sonora, para fingirmos que somos protagonistas de uma aventura marcante prestes a acontecer. Se não podemos viver, ainda nos permitem sonhar com as emoções do cinema em nossas vidas, e a trilha sonora, ao menos, já temos.
Já tinha um pouco essa impressão com certas pessoas que passavam alheias à tudo com seus ouvidos tapados por fones – quase Richard Ashcrofts no clipe da música Bitter Sweet Symphony. Mas essa trilha sonora particular se mostrava um tanto limitada. Guardávamos para nós mesmos, e talvez por isso as aventuras do cinema não aconteciam conosco. Poderíamos dividir nossa trilha sonora andando com um radião no ombro, colado ao ouvido, como os estereótipos de filme de periferia negra dos EUA, mas não creio que fosse muito prático carregar um rádio para faculdade ou trabalho, segurá-lo dentro do ônibus, guardá-lo na bolsa. Nem que fosse do interesse de muitos passar por negro da periferia dos EUA no centro de uma cidade brasileira.
Mas tenho a suspeita de que uma nova geração de celulares veio sanar esse problema. Tem me admirado o tanto de pessoas que andam pela rua com o aparelho tocando alto, dividindo com todos a sua trilha sonora, queiramos ou não escutar o que elas escutam. Por enquanto isso apenas me causa admiração, mas creio que em breve, quando o som de tais celulares ficar mais potente, tal comportamento irá me causar profunda irritação, para dizer o mínimo, como me causam os carros e seus potentes sons automotivos (uma coisa que ainda não consigo entender é a tara das pessoas por carro e por som que incomoda os outros). Em uma época de individualismo cada vez mais extremado, já se aproximando da sociopatia, e em que as pessoas de vidas medíocres fazem esforços homéricos para serem diferentes sendo iguais e chamarem a atenção para tanto, espero com temor o dia em que a sinfonia de motores da cidade for abafada pela competição de sons automotivos, sons de divulgação e sons pessoais. Será que precisarei comprar um toca-mp3 mais potente para fugir a toda essa barbárie?

Campinas, 12 de agosto de 2007