quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Outonos

Fim de semana fui ao Espaço Cultural CPFL assistir a um recital de música erudita, inserido no módulo “Quatro estações para o século XXI: de Vivaldi e Piazzolla à pós-modernidade”, o qual está no projeto “O fim de um mundo não é o fim do mundo”. A apresentação da vez era “o outono”. O Outono, das quatro estações de Vivaldi, Otoño Porteño, do Piazzolla, e Outono do século XXI, da compositora brasileira Silvia de Lucca, composta especialmente a pedido da CPFL.
Antes da apresentação da obra, uma breve entrevista com a compositora, que contava como buscara inspiração para compô-la, dizendo que aqui todo mundo só pensa no inverno ou no verão e o outono fica algo meio esquecido, e, por isso, ela considerava aquela composição como algo muito seu. Gostei da música, apesar de reconhecer certa dificuldade com a música contemporânea – é certo que não me impressinou como, no dia seguinte, a Orawa, do Wojciech Kilar, apresentada pela Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. Mas depois de um tempo me bateu um certo incômodo: outono?! A que estação do ano remetia aquela música?
Comecemos pelo problema mais em voga: em tempo de mudanças climáticas, como falar em estações do ano? Se não me falha a memória, o dia mais frio do ano em Campinas foi em maio, ou seja, no outono, e não no inverno. O mais quente, foi há pouco, em outubro – primavera, e não verão. Se mudanças climáticas estão em processo, ainda se discutindo o que será do clima daqui cem, cinqüenta, dez anos, como falar em outono do século XXI? Talvez mais apropriado teria sido chamar o módulo de “Quatro estações na virada do século XX para o XXI”, sacrificando a pretensão de vanguarda em nome da não-contradição com o que o projeto discutia.
Isso já seria uma questão assaz interessante, mas há outra, talvez mais inquietante. Não conheço o outono no Mediterrâneo – segundo os livros, é uma estação intermédia entre verão e inverno, em que as árvores perdem as folhas. Buenos Aires, só a conheço do seu calor infernal do verão, mas, acreditando que os livros do ensino médio não estão tão errado assim, o outono deve, em boa medida, lembrar o da Itália. Mas estamos no Brasil, mais especificamente no estado de São Paulo. Silvia de Lucca, apesar de ter morado no exterior e no sul do país, é brasileira e compõe para um espaço paulista. O que é o outono no Brasil? Nas paredes do auditório projeções de folhas caindo talvez dessem a dica: não estamos falando de Brasil. No Brasil as folhas não caem no outono e, em boa parte do país, sequer há algo que pode ser claramente definido como outono. Causa espanto, portanto, o fato da compositora (que também é psicóloga) se admirar que aqui as pessoas costumem dividir as estações do ano em verão e inverno: existe realmente outra estação além dessa duas?
Não vou pôr toda a culpa na compositora, que apenas atendeu a um pedido e falou algumas besteirinhas menores; convém questionar o curador do módulo, Henrique Lian, e a própria concepção do projeto. Na página da CPFL diz que ele pretende não apenas realizar diagnósticos, mas propôr uma agenda de intervenção. Que diagnósticos são esses que não trabalham sequer com certas especificidades brasileiras bem conhecidas, importando modelos do exterior que não condizem com nossa realidade, mesmo uma das menos suscetíveis a grandes querelas, as divisões das estações do ano? Que agenda de intervenção pode ser elaborada a partir de tais diagnósticos? A necessidade premente de perda das folhas por parte das árvores no decorrer do outono? Quem sabe aí estaremos aptos a discutir as questões brasileiras, pois estas passarão a se encaixar nos modelos dos países centrais.
Exagero ao fazer tamanho estardalhaço por conta de uma composição em homenagem a uma estação do ano que não existe e por causa de folhas que não caem. Fingir que o outono existe para compor um concerto não traz grandes transtornos à nação – pelo contrário, pode fazer bem, ao nos presentear com boa música. O problema está que nos círculos intelectuais (lembremos que o Espaço Cultural CPFL é um espaço que costuma requisitar curadores de grande quilate nos meios acadêmicos e intelectuais para dirigir seus módulos – o próprio Lian tem um currículo muito bom) essa vontade de encaixar o país em modelos exógenos não se restringe às estações do ano, e quando se trata da sociedade, não raro transformar a fórceps o Brasil em um país modelo do primeiro mundo traz tristes conseqüências a pessoas que passam frio, sede ou calor, independente de existir outono e primavera, ou termos apenas inverno e verão.

Campinas, 14 de novembro de 2007

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Carta pra folha: Memória

Na esteira do artigo "Lembretes", do professor Marcos Nobre (Opinião, 6/11), sugiro à Folha a criação da seção "Há 50 dias", para manter a memória dos seus leitores sempre fresca quanto aos comportamentos pendentes de explicação dos seus homens públicos.

Campinas, 07 de novembro de 2007