domingo, 23 de dezembro de 2007

Excesso zero

Almoçando em uma cantina na universidade, vejo na mesa ao lado que um casal divide dois litros de refrigerante. Comento com a amiga que me acompanha que quando eu era criança, início da década de 90, refrigerante era coisa de domingo, e dividíamos em quatro uma garrafa de 700mL. Lembro do domingo de manhã indo até despensa escolher o refrigerante a ser gelado para o almoço – geralmente de framboesa (geralmente ou será que a memória me trai por ser meu favorito?). De qualquer forma, ainda que fôssemos capazes de beber mais, aquela garrafa nos satisfazia até o próximo domingo.
No meio da tarde, quando fui lanchar, uma pessoa ao meu lado bebia 600 mL de refrigerante “zero” e comia um pacote de biscoito de polvilho. Essas duas cenas – ou seria melhor dizer detalhes? – me fizeram lembrar de Jin, personagem secundária do livro O grito silencioso, escrito pelo japonês Kenzaburo Oe, em 1967.
Jin é uma mulher de um decadente povoado que come compulsivamente e é tida pelos demais habitantes locais como “a mulher mais gorda do Japão”, e por isso é vista como uma espécie de totem da comunidade.
Seu marido e filhos são magros, por sacrificarem parte do que comem à mulher. Em certa altura, alguns acontecimentos permitem que Jin tenha, pela primeira vez desde que começou com seu distúrbio, mais comida do que pode comer – ainda que seja comida enlatada. Diante daquela abundância, expressa seu sonho de poder comer tudo de uma vez, saciar de uma vez por todas seu apetite, e se prostrar à espera da morte. Sentimento semelhante o protagonista vê no filho de Jin, que pode, finalmente depois de muito tempo, comer o quanto quisesse. E o que faz é se entupir de bolachas até vomitar, para poder então recomeçar a comê-las.
Não sei qual era a situação do Japão quando o livro foi escrito, mas ele me parece ilustrar a chegada do capitalismo consumista em uma terra marcada até há pouco pela tradição. Algo semelhante, me parece, aconteceu no Brasil há cerca de dez anos, com o Plano Real, quando a classe média pode entrar no mundo do consumismo desenfreado. Entramos tarde mas, infelizmente, entramos. Debord, mais ou menos na mesma época em que Oe lançava O grito silencioso, comentava que as sociedades capitalistas avançadas haviam deixado de produzir produtos para produzir lixo – dada a descartabilidade de tudo, necessária para a manutenção do sistema.
Mas o sistema, sob o risco de produzir “mulheres mais gordas do Japão” em série, soube se adaptar. Os lixões continuam distante dos nossos olhos, e a abundância de comida é compensada com produtos diet, light, “zero”. Podemos comer e beber até nos empanturrar, até vomitar, porque não corremos o risco de engordar, E ainda que engordemos, uma cirurgia de redução de estômago nos permite recomeçar o ciclo novamente.
Tentamos saciar não nossa fome e nossa sede, mas nossa angústia de viver uma vida incerta em um mundo incerto a caminho de uma morte incerta. Como Jin, sofremos de um distúrbio, sintoma de uma anomia, na linguagem sociológica de Durkheim. Queremos consumir tudo, inclusive a nós mesmo – a consumação total (talvez bem representada pela ameaça nuclear, fortemente presente na década de 1960). É o que fazemos, inconscientemente, não sei se com esperança, ou com um simulacro de, estimulado pela publicidade e pelas embalagens bonitas e coloridas, reatualizando o velho ditado “cabeça desocupada, morada do diabo”. Sendo o diabo, agora, mais do que nunca, identificado antes conosco mesmos, com nossa consciência, nossa subjetividade, enfim, nossa condição humana; e a ocupação da cabeça não sendo mais necessariamente com trabalho ou orações, mas com produtos, com coisas inúteis, sem interesse, descartáveis, com comida em excesso – mas que, assim como não nos saciam, também não engordam, nos permitindo seguir nesse ciclo até o dia em que nos encontraremos com o que, no fundo, parece que almejamos, ao mesmo tempo que tememos: a consumação final, a morte.

Campinas, 29 de novembro de 2007 – Pato Branco, 23 de dezembro de 2007