domingo, 24 de fevereiro de 2008

O português da portuguesinha

Apareceu no meu mensageiro instantâneo dia desses uma pessoa desconhecida. Ontem “teclamos” e fiquei sabendo quem era ela. Começamos a conversa, como não poderia deixar de ser, perguntando o nome. Se chamava Ana. Disse que lera algo que escrevi e que gostara. Agradeci e perguntei se ela lembrava qual texto. Disse que não se lembrava, e pedia que a tratasse por tu. Tu?! Pergunta retórica: “és portuguesa?”. Morava em Porto, tinha treze anos. Prosseguimos com a conversa. Conversamos algumas coisas de menor importância, como sói acontecer. Eu tentando lembrar da segunda pessoa do português, confundindo volta e meia com a do espanhol, precisando pedir auxílio a ela. Foi quase uma hora e meia de bate-papo (lembrando que conversa por escrito rende pouco), onde a Ana não me pareceu nenhuma garota super-dotada, ou mesmo muito além da sua idade, enfim, uma garota normal de treze anos (creio).
E aqui minha grande admiração (cheguei a comentar com ela): a Ana tem treze anos. No Brasil, isso corresponde à sétima e oitava série, caso não se tenha nenhuma reprovação. O português da portuguesa era impecável. Fazia as tradicionais abreviações para poupar tempo, como “gst” ao invés de “gostas”, “qt” para “quanto” e outras do gênero, mas na hora de escrever, salvo os de digitação (que ela corrigia a seguir), nenhum erro.
Em compensação, quando se vê os internautas brasileiros... A última flor do Lácio é violentada sem dó, nem piedade, nem consciência (o que é pior). Começa com a linguagem de internet, transferida para celular (telemóvel, como diria Ana), dos x, k e i. “Miguxus i miguxas kebrandu az leix du portugueix i du bom sensu” (não sou muito bom nisso, tentei me inspirar na comunidade “niilismu miguxu”, do Orkut). Coisa de pré-adolescente (que eventualmente, não tão eventualmente, se estende até a idade adulta), dirão alguns, que me acusarão de puritanismo lingüístico. Mas saindo desse extremo, não é difícil – muito pelo contrário! – encontrar “sorrizo”, “fasso”, “simplismente”, “conheçer” em mensagens escritas por universitários! Erros acontecem, é claro (só dar uma passada rápida e desatenta por minhas crônicas para comprovar). Ocorre que no Brasil eles se perpetuam.
Não defendo uma volta ao português estrito e morto de gramática, que serve como alguma referência e para concursos públicos. A língua é algo vivo e vai sendo adaptada conforme as necessidades das pessoas, dos locais, da história. Seria estúpido, por exemplo, falar que é errado, no Brasil, começar uma frase com pronome oblíquo. Outra coisa, porém, é desrespeitar o mínimo da padronização da escrita. Enquanto português falado, a única importância em se falar sorriso, faço, simplesmente ou conhecer é que estejam no contexto, façam sentido. Com a internet, tenta-se transferir a oralidade para a escrita. Poderia ser uma experiência muito interessante – reles mortais como nós tentando fazer o que Guimarães Rosa fazia (tenho um amigo mineiro que escreve “fazenu”, “chei”, “cansadin” e outras oralidades locais). Ocorre que a experiência de leitura do brasileiro é precária, e antes de se transmitir a oralidade se evidencia essa precariedade, em ortografia, em concordância, em pontuação (esquecia de comentar, muito pior que os erros de ortografia costumam ser os de pontuação. As pessoas simplesmente não sabem o que é vírgula! Imagine uma frase como “nao e vc”. Tem horas que nem o contexto explica se é “não é você”, “não, e você?”, “não, é você!”).
Difícil tentar imaginar onde começa o problema. Será isto apenas um problema da escola? Da metodologia anacrônica, dos baixos salários, das sofríveis condições de trabalho, da massificação sem qualidade? Mas não estamos falando só de alunos de escolas públicas, mas de alunos e ex-alunos de escolas de elite, de universitários, alguns de universidades de elite. Culpa da televisão? Mas será que em Portugal não tem tv? Não conversei sobre o quanto de televisão que Ana assiste diariamente, mas não me pareceu que fosse alienada do mundo da telinha. E se é difícil tentar descobrir o problema, o que dizer da solução.


Campinas, 24 de fevereiro de 2008

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Entre o cativar e o cativeiro

Por estes dias eu matutava a famosa frase que a raposa disse ao Pequeno Príncipe: és responsável pelo que cativas. Resolvi recorrer ao livro para reler o contexto em que a frase surgia. Ainda que famoso por ter sido livro de cabeceira das misses, até ser desbancado pelo Paulo Coelho, o livro de Saint-Exupéry, não sei se precisava dizer, é de uma poesia simples mas profunda: “Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”
Mas o amargor dos anos – ou será o cacoete de ser chato? Não sei – faz com que eu comece a achar picuinhas que me fazem torcer o nariz – ou quase – onde antes tudo era belo, e a famosa frase da raposa é um exemplo. Quem lembra do livro já deve ter notado que a frase sobre a qual eu matutava não estava exatamente de acordo com a do autor: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, essa é a frase da raposa (ao menos a da minha tradução). Há, portanto, um “eternamente” que se coloca no meio do caminho, tornando a passagem escorregadia. Ou melhor dizer, ainda mais escorregadia, pois cativar, na sua etimologia, pode ser tanto seduzir quanto prender – é de cativar que vem o substantivo cativeiro.
Mas o que é cativar, seduzir, alguém? Como se cativa alguém? Geralmente começa por um jeito de ser, por uma forma de se pôr, não somente pelo que se diz, mas pela forma que se fala, por olhares, enfim, por pequenos detalhes, que muitas vezes nos passam despercebidos pela consciência, mas nos tocam na alma: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos”, diz a raposa. Quando notamos, sem que nos déssemos conta, fomos seduzidos, fomos cativados.
E quem é o responsável por isso? Quem cativa ou quem é cativado? A raposa põe a responsabilidade naquele que cativa. Mas será que quem foi cativado foi um mero receptor passivo, sem iniciativa ou vontade própria, seduzido por algo similar ao canto das sereias? Ou será que se trata de um jogo de mão dupla, em que quem é cativado, ainda que por algum outro meio, também cativa? Ou então de que serviria cativar alguém? Colecionar fãs, seguidores, para depois pô-los nos potinhos comprados em lojas?
Mas há ainda um outro ponto: cativar e ser cativado, seduzir e ser seduzido ocorrem em um determinado tempo, em determinado momento da vida de ambas as pessoas. Como exigir que essa responsabilidade seja eterna? Aqui é onde o cativar resvala com mais facilidade para o cativeiro. Se o Pequeno Príncipe se torna responsável pela raposa, espera-se dele não somente respeito – pois isso espera-se para todos – mas uma dose extra de consideração. E o que é levar o outro em consideração se não dar-lhe uma importância maior, uma importância maior às suas opiniões? Ao dizer “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” a raposa, ao mesmo tempo que admite ter sido seduzida pelo principezinho, põe-no sob seu olhar. Ela não está apenas exigindo cuidado, como poderia exigir a rosa, mas um cuidado extra, responsável, pesado. Com a raposa o príncipe não deve apenas dar água e protegê-la, mas também aparecer no momento que ela espera, não magoá-la – o que torna a partida do príncipe algo doloroso, quando deveria ser apenas triste.
Esse, porém, não é o pior cativeiro: ao tornar eterno o que era para ser um momento, a raposa pode exigir que o príncipe não mude, que seja sempre aquele que a cativou, ou, ao menos, que não sofra nenhuma mudança brusca que a decepcione ou a magoe: como não se decepcionar em ver o rosto que tanto admirávamos se tornar alguém estranho, que já não mais reconhecemos? A raposa não sabia de uma verdade sobre os humanos: que estes são seres em eterna construção, em perpétuo vir-a-ser, em um infinito se descobrir, se perder e se reinventar.
E quem é a raposa senão nós? Quem é o Pequeno Príncipe senão nós também? Costumamos acompanhar as mudanças de nossos próximos antes com um olhar fiscalizador do que de admiração. Ainda que isso não nos isente de conversar e tentar mostrar ao outro que está seguindo um caminho que muitas vezes sabemos ser equivocado, cobrar dele as mudanças feitas fora daquelas que aceitaríamos é tentar prendê-lo em um cativeiro. Mas aquele que cativa também não pode achar que se foi por uma questão de um momento que cativou, no momento seguinte já não tem mais responsabilidade. Não se trata de dar explicações, mas de levar o outro em consideração, com paciência. Algo que o Pequeno Príncipe fez: foi ver as demais rosas, compreender o que raposa estava sentindo, para, enfim, dizer adeus, a palavra que já dissera anteriormente, mas deixando claro a importância da raposa para sua vida, assim como esta o fizera.
E para finalizar pergunto: quando seduzidos, conseguimos ter o desapego da raposa, a ponto de não transformar o cativar em cativeiro? Quando sedutores, temos a paciência de ouvir o que o outro tem a dizer e levá-lo em consideração? Em ambos os casos: estamos abertos para o diálogo e o sentimento do outro?

Pato Branco, 19 de fevereiro de 2008

PS: Sobre a crônica anterior: como pude esquecer do filme Trainspotting, de Danny Boyle?! Poderia utilizá-la quase como um comentário/interpretação do filme.