terça-feira, 19 de agosto de 2008

Fantasmas ao celular

No teatro, duas mulheres sentadas na minha frente conversavam antes de iniciar a apresentação. Uma delas tinha um celular, desses todos modernosos, com teclado padrão qwer e tela sensível. Utilizava-o para mostrar gráficos enquanto conversavam. Não ouvi do que tratavam, mas pelos gráficos, desconfio que não deviam falar dos filhos (na verdade, torço para que não estivessem falando dos filhos!). Muito provavelmente, aproveitavam cada minuto, inclusive os de domingo, no teatro, para conversar sobre negócios. Time is money, já dizia Benjamin Franklin. Até aí, nenhuma novidade no uso de celular. No filme Missão Impossível 2, Tom Cruise tem uma fala em que comenta que se tivesse celular, não teria férias. Saiu, inclusive, reportagem no caderno Mais, da Folha de São Paulo, discussão sobre a intromissão do celular na vida quotidiana (faz tempo essa reportagem), e essa “facilidade” de poder levar o trabalho para onde você estiver, não precisando mais ficar necessariamente confinado no escritório (estamos tratando de uma fatia da população, que fique claro).

No ônibus, sexta-feira, o cobrador tira do bolso o celular e começa a escrever alguma mensagem sms. A imagem me faz de lembrar de outra, não muito diferente, mas com um policial como protagonista: está parado ao lado da viatura, escrevendo alguma mensagem pelo celular. Aí um outro lado do celular (das novas tecnologias), não tão comentado, mas que não também se trata de nenhuma novidade: assim como você leva trabalho para casa, leva a casa para o trabalho. Isso talvez torne um pouco menos pesada a rotina. Afinal, se algum amigo quer marcar algo para depois do serviço, não precisa passar por qualquer PABX, basta ligar no seu celular. Se você quer saber se está tudo bem em casa, ou mesmo contar qualquer novidade a alguém, um sms permite que isso seja feito durante o expediente, e sem grande indiscrição. Ou seja, as novas tecnologias acabam sendo uma via de mão dupla: não é somente o trabalho que invade a vida particular, mas a vida particular que invade o trabalho.

Há, todavia, um porém: a via pode ser de mão dupla, mas as pistas não são equivalentes. A intromissão do trabalho na vida particular tende a ser muito mais forte do que a recíproca. Primeiro porque uma notícia que vem da casa para o trabalho dificilmente surge como um imperativo como pode acontecer com o trabalho que chega à casa: faça ou terá sanções. Segundo porque, mesmo que seja algo preocupante a notícia que vem de fora do serviço, a pessoa é obrigada a esquecê-la enquanto trabalha, para não prejudicar seu rendimento, e deixar para resolver depois. Tente fazer o mesmo com o trabalho: chefe, não vou me preocupar com todos esses pepinos que apareceram porque estou em casa e combinei de jogar bola com meu filho.

Existe ainda um outro ponto interessante: um certo desprendimento entre “corpo e alma”, mais radical do que já acostumava acontecer. Explico esse “corpo e alma” com um exemplo próprio e que deve ser conhecido pela grande maioria: na escola (mesmo na faculdade), aquela aula chata, chatíssima, que se é obrigado a assistir. Enquanto a professora fala sobre a revolução e porque quem não tem a leitura que ela tem de Marx é idiota, você pensa em algo mais agradável, como o futebol de domingo, a jogatina de quarta, a crônica para escrever (tem uma tirinha da Mafalda muito boa, como sempre, que trata desse drama: o Filipe está na aula e começa a repetir para si mesmo “preciso me concentrar e prestar atenção, preciso me concentrar e prestar atenção, preciso me concentrar e prestar atenção”, ao que é interrompido pela professora: “entenderam crianças?”). Com o celular, essa árdua tarefa de achar o que fazer (ou o que pensar) enquanto espera o tempo passar se torna mais leve, até mesmo “produtiva” (não para a empresa, claro): converso, troco novidades com amigos, mesmo que eles estejam no outro lado da cidade, ou em outra cidade. A atenção totalmente fora do espaço onde o corpo está preso.

Fosse isso só para as atividades chatas, talvez fosse até positivo. Mas não me parece ser esse o caso, ainda mais no Brasil, onde a falta de educação no uso do celular é avassaladora (falo no Brasil por desconhecer a realidade nos demais países). Não é cena incomum pessoas abrirem seus celulares no cinema para ler a mensagem que chegou. Falo do celular, mas não se trata só dele. Há uma crescente dificuldade em se concentrar em apenas uma tarefa. Escutar música, por exemplo. São poucas as pessoas que conheço que fazem isso. Geralmente o que acontece é pôr a música para acompanhar alguma outra tarefa: cozinhar, estudar, usar a internet, ler, escrever (como acontece comigo agora). Isso quando não para acompanhar três ou quatro tarefas concomitantes. Há quem acredite que se trate de um melhor aproveitamento do tempo, mesmo uma evolução, ao se aproveitar das potencialidades humanas que a tecnologia permite fazer uso. Eu, por meu lado, questiono a qualidade dessas atividades, desse aproveitamento do tempo: se o objetivo é apresentar o maior número de coisas feitas no menor espaço de tempo, ótimo; já se se trata de desfrutar do fazer, ainda que haja certa ansiedade em conhecer o final do processo, o resultado é catastrófico, e o aprendizado dele resultante, precário, se comparado àquele de um processo plenamente concentrado. E não falo mais de atividades pesadas, coisas que se é obrigado a participar: falo de momentos lúdicos, prazerosos. Também não defendo aqui que seja feita uma coisa de cada vez, sempre. Há momentos e momentos (como agora, que precisei desligar o som para concentrar em uma conclusão, já que me perdi da idéia original da crônica e não sei bem onde estou, ainda que não tenha sido por culpa da música). A questão está que não há essa distinção entre momentos e momentos começa a esmorecer: tende-se sempre a fazer mais do que uma coisa por vez, pouco importa o momento.

Para concluir (porque já estou me enrolando muito): talvez um outro problema seja aquele já apontado por George Orwell em 1984, e que geralmente as pessoas ignoram: o Grande Irmão não é somente a teletela que vigia as pessoas 24 horas por dia. Ela é também a teletela que não permite que as pessoas fiquem um minuto sequer em silêncio. E se concentrar em uma atividade lúdica, em silêncio, significa, muitas vezes, se concentrar em si mesmo. E talvez seja de nós mesmos, do nosso corpo e da nossa alma, que buscamos fugir ao nos concentrar em várias coisas ao mesmo tempo (ou em nenhuma, segundo minha visão).


Campinas, 19 de agosto de 2008

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