sábado, 29 de novembro de 2008

Textos sem pausas

Um amigo ontem me perguntou como era meu processo de criação de texto, se havia rascunho à mão antes (óbvio, rascunho depois?), ou ia direto ao computador. contei que costumo ir direto ao pc, até porque não escrevo uma versão preliminar, apenas penso ela, e o texto sai como em enxurrada. Daí a necessidade de um meio com o qual eu possa dar vazão às palavras da forma mais rápida possível. Penso isto agora: segundo dizem por aí, uma das ferramentas características e mais usadas pela geração que, se não aprendeu sob, se desenvolveu com os editores de texto eletrônicos, é o recorta-cola. Não sei se procede tal senso-comum ou se é discurso apologético a la McLuhan ou Wired, sei que por qualquer arcaísmo, por algum cacoete saudosista, não me afeiçoo desse novo hábito que a tecnologia oferece.
Voltando à conversa. Esse amigo passou a defender o abandono do computador no processo de escrita pois, segundo ele, perdia-se muito do contato com seu texto, que estaria em boa medida em ter a caneta entre os dedos e vê-la sangrar pelas páginas de papel, enquanto as folhas usadas se acumulam vivas ao nosso lado.
Na hora discordei dele, principalmente por conta da necessidade de rapidez na escrita. Mas hoje acordei e se ainda não concordo com ele, tampouco concordo com minha opinião de ontem.
Relembrando do livro por meio do qual conheci o escritor israelense Amos Óz, o excelente Conhecer uma mulher, lembrei que a mulher do protagonista insistia em usar caneta-tinteiro, a qual precisava ser reabastecida a cada dez palavras. Fiquei tentando imaginar como deve ser não só o processo de escrita, mas do próprio pensar quando se tem que obrigatoriamente fazer uma pequena pausa de tempo em tempo. Você, no meio de um insight genial, correndo atrás da idéia antes que ela escape e... pausa para mergulhar a pena na tinta. A depender do meu modo de escrever, o texto acaba aí, ou então perde a vitalidade com que vinha correndo. E aqui eu me pergunto: por que rapidez deveria ser sinônimo de vitalidade? De onde vem essa dificuldade em estabelecer um contato mais tranqüilo, menos afoito com as palavras e as idéias?
Não sei. Sei que enquanto punha essas idéias no papel (não escrevo em casa esta crônica) uma idéia que me pareceu muito boa cruzou na minha frente. Passou rápido e eu, lerdo, não consegui segurá-la a tempo.

Campinas, 29 de novembro de 2008

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Carta para Folha: Educação

Muito bom o artigo de Dagmar Zibas. Apenas complementando: quando ela fala que os professores passaram a ser 'considerados insumos de segunda categoria', vale ressaltar que esse processo começa no Estado e se estende a toda a sociedade. Em uma busca rápida pela internet não é difícil encontrar sites que descrevem o programa de formação continuada do Estado, o Teia do Saber, como um programa de 'reciclagem dos professores da rede pública' (está em uma página do IB-Unicamp ou da Secretaria de Educação do Estado, por exemplo). Não sei se era necessário lembrar: o que se recicla é lixo.

Campinas, 27 de novembro de 2008

domingo, 23 de novembro de 2008

Arte na praça

Fim de semestre é sempre uma correria. Hora em que você tem todos os trabalhos para entregar, e não adianta tentar se antecipar: no fim, você vai acabar fazendo tudo em cima, por mais cedo que tenha começado. Não que seja novidade para mim, graduando de carteirinha que sou: posso dizer que já estou habituado. Fim de semestre também é a época em que costumo ter idéias mirabolantes, seja para contos, seja para jogos, seja para programas na rádio Muda. Idéias e muita vontade de pôr em prática. O duro é que falta tempo. E quando o semestre acaba e o tempo abunda, falta vontade. Vai entender. Outra coisa que sempre me bate em fins de semestre: vontade de jogar computador. Este semestre apaguei os jogos do pc: uma hora jogando equivale a três horas sem estudo: uma de jogo, outra me lamentando por estar jogando quando estou cortando horas de sono para conseguir dar conta de tudo o que tenho por fazer, outra para descansar e recuperar as energias para estudar. Isso quando nessa hora de descanso eu não acabo dormindo e acordando só quatro horas depois. Enfim, sem joguinho tenho pulado etapas e ido direto para o sono, o que não me desagrada, de forma alguma.

Porém, o pior do fim do semestre é que é fim de semestre também para quem estuda no Instituo de Artes. Isso significa que é justo nessa época, em que você não tem tempo para quase nada, que na Unicamp pipocam recitais, coreografias, encenações. Destas, admito, não sou um grande entusiasta. Nada contra o teatro, pelo contrário. Minha birra é com o curso de artes cênicas da Unicamp, mesmo. A montagem de “As rãs”, do Aristófanes é um trauma só não superior ao do professor de latim que disse que eu era um mau exemplo por ir bem na disciplina sem ir às aulas. Bem, pensando agora, se formos ver etimologicamente ele até tem razão: o que ele estava “ensinando” ali não era um saber, um conteúdo, mas disciplina – dessas que quartéis prezam tanto. Voltemos ao IA.

Semana passada, fingindo não ser fim de semestre, resolvi aproveitar os barulhos que aconteciam pela Unicamp. Recital de música barroca, de piano, apresentação de música latina e de jazz. Duas semanas antes, eu já tinha caído sem querer, quando ia para o Bandejão, em uma apresentação de dança, no teatro de Arena da universidade. Meu primeiro comentário aqui é que se a universidade está criando artistas, ela não está criando público. Não só por conta das apresentações serem no fim do semestre (quanto a isso há pouco a fazer, penso), como por serem pouco divulgadas, e por não se cobrar o respeito que uma apresentação exige. Isso é mais evidente nas apresentações de música. Já comentei rapidamente em uma crônica anterior que a música hoje tem a função de barulho: ninguém mais aprecia música. Eu mesmo, admito, escuto muito, mas sou um mau apreciador, apreciando-na geralmente em apresentações ao vivo (o que deve dar uma vez por semana ou menos) e algumas poucas vezes em gravações. Me dei conta dessa sensível e gritante diferente quando, em jantar na casa de um amigo, sugeri que ele deixasse a música rolando. Estudante de filosofia que outrora quisera ser músico, fui fuzilado pelo seu olhar. Sua irmã me explicou: ele abominava que música fosse tocada sem ser apreciada, sem a devida consideração pela obra.

Música hoje é cada vez mais só som ambiente (apesar que com a qualidade do que se toca em rádio...). Casal de amigos que passou as férias na Europa contaram que foram reprimidos em uma praça de Viena, na qual se projetava um concerto, por estarem conversando. Isso que era uma projeção e não um concerto ao vivo! Bem, os cinemas brasileiros são uma mostra do quão longe ainda estamos desse padrão de respeito pelo outro.

O ponto que eu realmente queria tratar aqui, tem a ver com a formação de público, porém está mais relacionado com a divulgação da arte. Assistia eu àquela maravilhosa apresentação de piano (e me irritava com o casal pré-adolescente de 50 anos na minha frente que não paravam de se cutucar e dar risadinhas, pais da pianista, por sinal), quando me perguntei: por que um evento como esse não pode acontecer quotidianamente nas praças do centro da cidade? Sete horas da noite, o centro já desertificando, porque as lojas fecharam e não há mais sentido para ficar nele – ainda mais que as praças de Campinas são pouco convidativas –, um piano em um caminhão-palco, uma apresentação de dança em coreto, um grupo de choro em um palquinho. Por que não? Arte gratuita, de qualidade e não esporádica, dando um pouco de vida, de música a um centro cada vez mais abandonado por todos – poder público e população. Tentar retomar um pouco o significado de cidade, de centro, de público, de aberto a todos, de democrático. Pois o que vemos hoje é um centro destratado pelo poder público, largado pelas classes média e alta, que se trancam em shopping centers; arte de qualidade restrita a teatros impeditivos à maioria da população, seja pelo preço, seja pela localização; e à população o divertimento de segunda categoria disponível na televisão (apenas para constar, a classe média tem opções, mas não se ajuda, preferindo freqüentar Teatro Tim com suas sofríveis peças com atores globais a alguma coisa diferente e de qualidade).

Quixotesco da minha parte querer isso, dirão muitos. E creio que em alguma medida estão corretos: querer um centro vivo (para além do horário comercial) e artístico é mesmo quixotesco, é realmente pouco factível, principalmente porque aqueles que seriam capazes de torná-lo factível são os primeiros a desestimular e boicotar tais iniciativas. Lembro que no início da filosofia discutia muito com um colega de classe sobre popularização da música clássica. Eu defensor dela ser tocada em ônibus, para habituar o ouvido; ele dizendo que isso não era possível, ou só seria depois de um aprendizado bastante dolorido imposto às crianças (como assistir a ensaios de orquestra. O dolorido é por minha conta). Tempos atrás houve a apresentação de uma orquestra em um programa imbecilizante de domingo. O medo dos produtores do programa era que ela fizesse com o que o ibope despencasse, afinal, sabe como é, a massa ignara só quer saber de funk, pagode e sertanejo. O resultado foi que a orquestra foi o ponto alto do ibope daquele programa. Demanda por arte de qualidade há. Cabe ao poder público oferecê-la à população. E eu prefiro ter que pedir silêncio a assistir a uma apresentação sozinho.

Em tempo: sei que caberia ao cidadão reivindicar arte nas praças. Para isso, contudo, a cidadania precisaria ser algo de que toda a população dispusesse, não somente aqueles que podem pagar por ela.


Campinas, 23 de novembro de 2008

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Os fantasmas da cidade

Semana passada, em São Paulo, eu comia macarrão vendido numa kombi na saída da faculdade, em companhia de um colega. A conversa ia e vinha, interrompida alguns momentos para fazer as mastigações recomendadas quando na ingestão de alimentos sólidos. Até aí, tudo normal. De repente, um homem que vinha perambulando se aproximou de mim e falou algo como “Beatles”. Até aí, tudo normal também. Conheço essa história e cada vez mais me convenço de que o mundo deve estar certo e eu, errado. Devo ser realmente parecido com os Beatles, em especial o John Lennon, ainda que uma vez tenham dito que eu lembrava o George Harrison.

Pois bem, ao contrário do que muito provavelmente haviam feito até ali com o homem, não o ignorei, e ele se sentiu à vontade para sentar ao meu lado e tentar puxar papo. Perguntou o meu nome, o nome do colega que estava ao meu lado, e a cada resposta pedia para que eu perguntasse o nome dele, ao que respondia com o feminino do nome dito (ou ao menos do nome por ele ouvido, pois ao Anderson respondeu se chamar Sônia). Comento só porque achei curioso. Me ofereceu o cigarro que trazia nos dedos, falei que não fumava, perguntou porque e expliquei. Tentou alguma conversa mais, mas o papo não rendeu. Se despediu e se levantou. Se aproximou da kombi de macarrão, ao que foi enxotado como um cão vira-lata, e seguiu seu perambular.

Sua figura – talvez melhor seria dizer sua cena? – me lembrou um romance de Sartre. Não lembro agora qual, desconfio que é Os dados estão lançados, mas é desconfiança. No romance, seja ele qual for, os personagens morrem, mas seguem perambulado por aí. Vêem pequenas injustiças quotidianas acontecendo, se indignam, mas quando tentam fazer algo, não conseguem, pois afinal são fantasmas, não são mais pessoas.

Algo parecido pode ser aplicado ao Daniela (afinal, seguindo a lógica dele e sendo eu o escriba desta crônica, seu nome aqui é esse): trata-se de um fantasma, um espectro que perambula pela cidade falando com todos e não recebendo resposta de quase ninguém. Com uma pequena diferença em relação ao romance sartreano: Daniela não está morto. Pelo contrário: está muito vivo, e toda essa sua existência se faz sentir quando é enxotado pelo dono da kombi de macarrão. Talvez também se faça sentir no medo que pode sentir por morar na rua. Quem não lembra, ou melhor, quem ainda se lembra do assassinato em série de mendigos (e não pessoas!) no centro de São Paulo, uns quatro anos atrás? Quem se lembra que a única coisa excepcional naqueles assassinatos era o fato de serem em série e não isolados, um cá, outro lá, um esta semana, outro na semana que vem, como acontece quotidianamente? Esta é uma desconfiança que não tem qualquer direito de ser tida a partir do que presenciei ou conversei com ele.

Voltemos à sua não-existência. Fiquei pensando o que deve ser uma vida assim: ser ignorado como se não fosse ninguém, como se fosse alguém de vidro, um mudo que ainda não se deu conta de que não tem voz. Um personagem do romance de Sartre que não optou por ser assim – como nós, que silenciamos e nada fazemos diante das pequenas injustiças quotidianas –, foi obrigado a sê-lo. O que não deve ser perambular pela cidade em busca de alguém que confirme que eu existo, alguém que não vire a cara quando eu me aproximo, e que se aceita que eu existo, aceita que eu não sou um cachorro (pareceu música brega agora, e eu não resisti à piada)? Qual não deve ser a angústia de ser ignorado e ao mesmo tempo perseguido?

Retomamos a conversa, eu e o Anderson. Pouco depois o Daniela passa voltando de onde vinha. Pára na lixeira, acha três latinhas vazias, nos cumprimenta contente com seu achado. O saudamos. E ele se perde na bruma de pessoas que saem da faculdade. Talvez ele consiga se fazer presente em meio àquelas vozes e risos que agitam a noite. Então pode ser que ganhe outro cigarro, ou um gole de pinga, para parar de encher o saco. Como se se tratasse de um despacho para espantar um mau-espírito.


Campinas, 13 de novembro de 2008