quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Os fantasmas da cidade

Semana passada, em São Paulo, eu comia macarrão vendido numa kombi na saída da faculdade, em companhia de um colega. A conversa ia e vinha, interrompida alguns momentos para fazer as mastigações recomendadas quando na ingestão de alimentos sólidos. Até aí, tudo normal. De repente, um homem que vinha perambulando se aproximou de mim e falou algo como “Beatles”. Até aí, tudo normal também. Conheço essa história e cada vez mais me convenço de que o mundo deve estar certo e eu, errado. Devo ser realmente parecido com os Beatles, em especial o John Lennon, ainda que uma vez tenham dito que eu lembrava o George Harrison.

Pois bem, ao contrário do que muito provavelmente haviam feito até ali com o homem, não o ignorei, e ele se sentiu à vontade para sentar ao meu lado e tentar puxar papo. Perguntou o meu nome, o nome do colega que estava ao meu lado, e a cada resposta pedia para que eu perguntasse o nome dele, ao que respondia com o feminino do nome dito (ou ao menos do nome por ele ouvido, pois ao Anderson respondeu se chamar Sônia). Comento só porque achei curioso. Me ofereceu o cigarro que trazia nos dedos, falei que não fumava, perguntou porque e expliquei. Tentou alguma conversa mais, mas o papo não rendeu. Se despediu e se levantou. Se aproximou da kombi de macarrão, ao que foi enxotado como um cão vira-lata, e seguiu seu perambular.

Sua figura – talvez melhor seria dizer sua cena? – me lembrou um romance de Sartre. Não lembro agora qual, desconfio que é Os dados estão lançados, mas é desconfiança. No romance, seja ele qual for, os personagens morrem, mas seguem perambulado por aí. Vêem pequenas injustiças quotidianas acontecendo, se indignam, mas quando tentam fazer algo, não conseguem, pois afinal são fantasmas, não são mais pessoas.

Algo parecido pode ser aplicado ao Daniela (afinal, seguindo a lógica dele e sendo eu o escriba desta crônica, seu nome aqui é esse): trata-se de um fantasma, um espectro que perambula pela cidade falando com todos e não recebendo resposta de quase ninguém. Com uma pequena diferença em relação ao romance sartreano: Daniela não está morto. Pelo contrário: está muito vivo, e toda essa sua existência se faz sentir quando é enxotado pelo dono da kombi de macarrão. Talvez também se faça sentir no medo que pode sentir por morar na rua. Quem não lembra, ou melhor, quem ainda se lembra do assassinato em série de mendigos (e não pessoas!) no centro de São Paulo, uns quatro anos atrás? Quem se lembra que a única coisa excepcional naqueles assassinatos era o fato de serem em série e não isolados, um cá, outro lá, um esta semana, outro na semana que vem, como acontece quotidianamente? Esta é uma desconfiança que não tem qualquer direito de ser tida a partir do que presenciei ou conversei com ele.

Voltemos à sua não-existência. Fiquei pensando o que deve ser uma vida assim: ser ignorado como se não fosse ninguém, como se fosse alguém de vidro, um mudo que ainda não se deu conta de que não tem voz. Um personagem do romance de Sartre que não optou por ser assim – como nós, que silenciamos e nada fazemos diante das pequenas injustiças quotidianas –, foi obrigado a sê-lo. O que não deve ser perambular pela cidade em busca de alguém que confirme que eu existo, alguém que não vire a cara quando eu me aproximo, e que se aceita que eu existo, aceita que eu não sou um cachorro (pareceu música brega agora, e eu não resisti à piada)? Qual não deve ser a angústia de ser ignorado e ao mesmo tempo perseguido?

Retomamos a conversa, eu e o Anderson. Pouco depois o Daniela passa voltando de onde vinha. Pára na lixeira, acha três latinhas vazias, nos cumprimenta contente com seu achado. O saudamos. E ele se perde na bruma de pessoas que saem da faculdade. Talvez ele consiga se fazer presente em meio àquelas vozes e risos que agitam a noite. Então pode ser que ganhe outro cigarro, ou um gole de pinga, para parar de encher o saco. Como se se tratasse de um despacho para espantar um mau-espírito.


Campinas, 13 de novembro de 2008

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