sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Discussão britânica

Não sou “O cara pontual”, mas primo pela pontualidade. Eu iria dizer que sempre fui assim, porém não sei por que cargas d'água com minha primeira namorada eu era o primor do atraso. Não teve um encontro ao qual cheguei na hora. Freud deve explicar. Ou mesmo ela, que é formada em psicologia. Nos últimos tempos ando deliberadamente um pouco menos rígido – dizem que até na Alemanha se tolera dez minutos de atraso –, porém sigo com a opinião de que pontualidade é uma questão de educação e respeito para com o outro.

Faço esse preâmbulo todo porque o Brasil não costumava ser um país famoso por sua pontualidade, como a Inglaterra ou a Alemanha. Tanto é que o ser menos rígido que comentei acima foi justamente para ser um pouco menos folclórico num país onde não há dez minutos de tolerância, mas meia hora de atraso regulamentar, pelo menos. Salvo cinema e um que outro evento, chegar na hora é pedir para ficar esperando com cara de tacho. E mesmo no cinema, que aparentemente começa na hora: é um festival de propagandas e trailers antes do filme, que se pode dizer que há os tais dos dez minutos, um pouco mais.

Cheguei a pensar que as coisas começavam a mudar, e o Brasil caminhava para ser uma nova Inglaterra no quesito pontualidade. Ao menos bem que poderia ser assim. Aconteceu esta semana, quando eu fazia o (longo) trajeto casa de Campinas – casa de Pato Branco. No meio do caminho tem Ponta Grossa, tem Ponta Grossa no meio do caminho. Chego à cidade de Vila Velha às cinco da manhã, pego minha passagem para as seis. Não convém dormir, então puxo um livro para ajudar a passar o tempo. Tenho um do Rubem Braga e um do Anthony Giddens à mão. Opto pelo segundo. Está interessante, fala de sexo. Cuido da hora e presto atenção para ver se o meu ônibus não chega. Dez para as seis, avisam que está saindo o ônibus para São Paulo. Não se trata do meu, que vem de Sampa. Termino o capítulo, são seis horas, nada do ônibus chegar. Vejo que o sol está nascendo e resolvo ir até a plataforma ver o espetáculo. Ao chegar à plataforma qual não é minha surpresa em ver o espetáculo do meu ônibus saindo!

Pergunto ao funcionário da empresa – que se auto-denomina princesa, mas seria mais sincera se se chamasse Tristeza dos Campos – se o ônibus está indo para a garagem (como sempre faz) e vai voltar depois. Confirma que está indo para a garagem, só que de lá ele segue viagem. Reclamo que não avisaram que o ônibus partia, e ele responde que eu devia ter prestado atenção à hora. Aqui acontece um diálogo que eu nunca imaginava que aconteceria em português, a não ser que fosse dublagem. Reclamo que no meu relógio são seis horas. Ele argumenta que já passou das seis. Digo que na passagem está que o horário do ônibus é seis e dois, ao que ele contra-argumenta que no relógio do computador já são seis e quatro. Faltou o arremate: ele dizer que o ônibus havia esperado um minuto além do seu horário, e que se eu me atrasara a culpa era minha, que não reclamasse dele (que me vendera a passagem uma hora antes) ou da empresa, que apenas cumpria britanicamente seu horário.

Não houve tal arremate e eu também não quis prolongar a discussão sobre a pontualidade da empresa, questionar porque tal pontualidade não era seguida sempre, já que quando faço o caminho de volta o ônibus é previsto para chegar às 23h10min em Ponta Grossa, mas chega sempre com mais de dez minutos de atraso, sendo que o ônibus que parte para Campinas sai às 23h15, no máximo cinco minutos além do previsto. Eram seis e cinco já, eu chegara um minuto atrasado e não tinha razão de reclamar. Ou mesmo que tivesse, eu queria chegar logo em casa. Melhor era pegar um taxi e correr atrás do ônibus. Já devidamente instalado neste para a última parte do trajeto, me perguntei se o Brasil não estaria começando a seguir o padrão britânico de pontualidade, e eu que não me dera conta. Se assim fosse, eu deveria ser o último a reclamar da mudança. Ao fim da viagem, faltou compreender como entra nesse padrão os quarenta e três minutos de atraso que com que cheguei ao meu destino.


Pato Branco, 26 de dezembro de 2008



sábado, 13 de dezembro de 2008

Humor refletido

Assisto a alguns números do grupo Barracão Teatro, apresentados em comemoração pelos seus dez anos. Não sei se deveria chamá-lo de campineiro, visto a rixa (o racha) que há entre Barão Geraldo, o distrito onde fica a Unicamp e o referido grupo, e Campinas. Racha que se acentua, até onde me consta, no teatro. Ontem assisti a “Encruzilhados entre a barbárie e o sonho”, recomendação de uma amiga que parece ter sacado meu gosto e anda acertando em cheio nas suas indicações – coisa não muito simples, para o chato que sou. Antes dessa peça, tinha me recomendado, dentre outros, o livro A arte de provocar efeito sem causa, do paulistano Lourenço Mutarelli, o qual devorei (e quase fui devorado) em um dia.

Pois essa amiga tinha dito que a peça era minha cara, que eu iria gostar, e que não era palhaço (as outras quatro apresentações do grupo nessa comemoração são de palhaço). Não fosse a indicação dela e eu não teria ido assistir – mais por conta da distância e do rodopiar do ônibus até lá. Começa a peça com um ator imitando um desses vendedores ambulantes que formam rodinhas nas praças das cidades. O mesmo jeito de falar, erros de português que costumam caracterizar esses pequenos animadores de auditórios de praça pública. Detalhe que notei: ao contrário de caracterizações de tipos semelhantes feitas por alunos do curso de cênicas do IA, não havia ali o tom de estereótipo e de deboche. Era antes uma imitação, que tirava um ar cômico desse tipo de figura, mas deixava que o espectador se desse ao trabalho de identificar e rir, não forçava um riso de maneira grosseira.

Tom cômico. Começa a peça e esse é o tom que ela tem. A Professora da Luz, o animador de auditório de praça pública, um assiste de palco. Um cenário meio circo decadente. A ligação entre este mundo e o divino, o poder da telepatia e a explicação das escolhas das pessoas. Pensei que minha amiga tivesse se equivocado na sua indicação – não que eu não goste de coisas engraçadas, mas ela tinha dito que era uma peça mais séria. Vou rindo, como todo mundo. Não é porque não era o que eu imaginava que vou achar a peça ruim.

Em dado momento, a atriz que fez a Professora da Luz surge em meio à platéia vestida como espectadora qualquer, com a diferença de ter surtado. Será uma mulher que o assistente fará voltar ao seu passado para compreender como as suas escolhas a levaram até lá. A partir desse momento, por mais que tenham feito piadas a rodo, tive dificuldades para rir. Também não vou tentar fazer um resumo do que aconteceu a partir daí, porque, além das cenas, o que veio foi uma avalanche de idéias bastante densas – seja em termos existenciais, seja em termos sociais – jogadas uma atrás da outra. Violência gratuita, solidão, bullying, as recordações de um velho que contra o tempo e contra o nosso tempo insiste em ter e manter sonhos, mesmo já sendo muito velho para isso, conforme frase da personagem.

Mais para o fim da peça, quando minha vontade é antes de chorar do que de rir, noto que não estou tão sozinho. Reparo na platéia. Pouco mais da metade também parece não conseguir rir das piadas. Alguns ainda gargalham como se estivessem vendo Zorra Total. Os dois caras que estão ao meu lado, por sinal. Para mim, aquele riso solto e despreocupado se torna quase ofensivo. Lembro do espetáculo deles que assisti no dia anterior, “Www para freedom”, espetáculo de palhaço. Não consegui rir muito, ao contrário da platéia. Achei que o problema fosse meu mau humor, ou que eu fosse mal amado, sei lá. Afinal, palhaço é para dar risada, por mais que estejam tratando de guerra e que um dos “personagens” (na verdade um personagem invisível com quem o palhaço interage) se mate com um tiro no peito. Não é?

Termina a peça. Foi ótima, mas não teve graça. Tenho quase uma sensação ruim pelas risadas do início. Lembro de uma peça que assisti há tempos, a também excelente “Borboletas de sol de asas magoadas”. É sobre o universo transexual e segue script parecido. Saí de lá me questionando sobre o que pensar dessa leveza toda, desse humor que perde a graça e se torna amargo com o desenrolar da peça, por mais que os atores sigam iguais ao início. Qual o poder de alcance de tal forma de crítica? Quantos dos que assistiram a peça se sentiram tocados, quantos acharam divertidíssima do início ao fim, quantos acharam chata e sem graça, quebra-clima?

Comecei a peça rindo dos trejeitos do Outro, a Professora da Luz, o animador de auditório de praça pública, pessoas que certamente não sou. Terminei calado, incomodado pelo meu próprio reflexo naqueles personagens que eu julgara caricatos e distantes.


Campinas, 13 de dezembro de 2008


quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Televisão e infelicidade

Tenho andado mais tranqüilo nos últimos dias. Já faz um tempo que saiu uma reportagem no jornal que deixo bem guardada para usar – sempre que necessário – como calaboca àqueles que insistem em dizer que sou alguém para baixo, meio depressivo (o meio é por minha conta). Pessoas que geralmente também me têm por pessimista, por mais que não haja nada que comprove tal posição, muito pelo contrário. Me assumo como um realista (ou tentativa de, já que a questão da realidade é algo que dá pano para manga numa discussão filosófica-sociológica), ao que eles respondem que é a resposta típica dos pessimistas. E se digo que sou, no fundo, alguém muito otimista – o que deveras sou, a ponto de ser chamado por muitos de “humanista ingênuo” – preciso presenciar pessoas gargalhando defronte a mim. Gargalham porque provavelmente se atribuem a si o título de otimistas, antes um polianismo de segunda categoria com seu otimismo calcado na sua fé e nada mais, assim como o pessimismo dos pessimistas costuma ser no “sempre foi assim”. Dois belos argumentos que só atestam graus diferentes no caminho para o ressentimento e a preguiça intelectual em buscar qualquer resposta convincente e menos simplista. Enfim, me desvio do rumo que queria tomar nesta crônica, que era um rumo alegre.

Eu falava da reportagem do jornal. Diz ela que “pessoas infelizes vêem mais tv que as felizes”. Pronto! Era a prova cabal que eu precisava para provar que não sou infeliz: não assisto tv. Na verdade, nem tenho tv em casa. Com isso já posso, citando estudos do professor John Robinson, da Universidade de Maryland, dizer que sou alguém feliz. E num passe de lógica que estou com preguiça de explicar em detalhes aqui (na verdade, é preguiça de pensar se a conclusão está de acordo com as premissas), chego à conclusão que pessoas felizes não podem ser pessimistas ou depressivas. Logo, sou uma pessoa alegre, pra cima e otimista. Feliz, em suma.

Esse estudo ajuda também a entender porque eu quase surto quando passo dois meses seguidos confinado em Pato Branco – para alívio dos meus pais, que ainda que saibam que o problema não é com eles, parece que não sossegam o suficiente com somente uma resposta negativa. Pois a culpa está que na casa dos meus pais tem televisão – duas, ainda por cima! É certo que praticamente não assisto tv, mesmo nas férias. E estas férias nem serão férias de verdade, já que preciso estudar e, pior, aprender francês! O que não é de todo mal: o problema é que estudar línguas cansa. Mesmo que eu já tenha uma noção de francês. Já sei, por exemplo, que chuchu em francês é repolho. Torço para quando eu souber como é repolho em francês surja uma francesa – ou alguém de outra nacionalidade, não faço tanta questão – com quem eu possa usar esse conhecimento – ainda que me pareça um tanto brega. Eis aí um otimismo bem ao gosto dos que se declaram otimistas.

Fujo novamente do assunto que me propus tratar aqui. Deve ser a alegria. Alegria não de não ter tv em casa – acho que isso até me rebaixa na escala social, mas pouco me importa –, e sim de estar finalmente em férias, ainda que vá passar as férias estudando.

Fico imaginando o que seria da minha vida não fosse a ciência. Estaria eu até agora procurando uma justificativa para meu otimismo um tanto sui generis. A ciência me salva de grandes preocupações metafísicas, como salvou milhares de crianças hiperativas. Antigamente, quando não se sabia que isso era doença, crianças que sofriam desse mal - que ao invés de serem chamadas de doentes eram chamadas de sarnas -, os pais mandavam elas irem brincar e ficar pulando no quintal de casa (quando casas tinham quintal), enquanto hoje, cientes da doença dos filhos, socam pílulas goela abaixo dos pimpolhos, de modo que eles possam ficar quietinhos, obedientes e bem-comportados em frente à tv. Isso pode acabar por torná-las infelizes, como vimos no estudo de Maryland. Não se trata, contudo, de verdadeiramente um problema: uma pílula a mais entuchada e essas crianças estão felizes como se tivessem ganho na loteria.

Falando em ganhar na loteria, lembrei de outra história que não tem nada a ver com o que queria escrever (já nem sei bem o que queria escrever). Amiga minha, mais nova que eu, me contou semana passada que “ganhou” uma hérnia de disco. Isso é razoavelmente diferente de ganhar na loteria, eu sei. Quer dizer, desconfio, já que não sofro de hérnia de disco nem nunca ganhei na loteria. Lembrei dela porque não se deixou abater pela notícia, ainda que eu desconfie que ela terá dificuldades em voltar a praticar capoeira, conforme pretendia. Estava feliz sei lá porque, e continuou feliz, mesmo com uma hérnia de disco. E olha que ela tem tv em casa! E ela não vai à igreja, e me deve uma visita há mais de um ano, coisas que serviriam para contrabalançar a tv, já que ir à igreja ou visitar os outros seriam coisas de pessoas felizes, segundo a mesma pesquisa.

Essa é uma parte da pesquisa que pode ser utilizada contra mim, pelos otimistas que insistem em ter uma idéia pessimista a meu respeito: a última vez que fui à igreja já faz quase dois anos. Foi nas igrejas históricas de Minas. Tenho cá minhas dúvidas se o “ir à igreja” que deixa as pessoas felizes inclui as visitas guiadas, ou se não estaria antes ligado ao que se chama de missa ou culto ou algo equivalente. Quanto a visitar os outros, é algo que eu faço, ainda que mais comum seja eu fazer visitas a mim mesmo. De qualquer forma, acho que a igreja ou o social são argumentos fracos, já que a reportagem chamava a atenção para a tv, e tv eu não assisto! Em compensação escrevo crônicas bestas (inspiradas em reportagens bestas de pesquisas bestas), sem razão de ser (a não ser serem bestas) e sem um fim a dar. Como esta (ainda por cima cheia de parênteses para se justificar).


Campinas, 11 de dezembro de 2008