domingo, 29 de março de 2009

Uma cena banal

Antes do jogo Guarani e Corinthians, a PM perseguiu alguns torcedores. Não sei se estavam vandalizando ou se eram suspeitos de poderem vandalizar. Na perseguição, a viatura se chocou com um carro que estava estacionado e cujo dono trabalhava no desmonte das barracas da feira da praça do Centro de Convivência, em bairro nobre de Campinas. O dono do carro e seus amigos pararam de trabalhar e foram reclamar com os PMs sobre o carro batido.

Logo mais 5 viaturas chegaram ao local (estavam em 7 agora). O grupo foi até os recém chegados reclamar dos colegas. Não só pelo carro batido, como pela boca inchada de um e o braço com hematoma do outro. Falavam indignados, ainda que sem faltar com o respeito. A polícia mandou circular. Seguiram parados. Cerca de cinco PMs cercaram o dono do carro. Algemaram-no. A "platéia", saída do teatro para ver o que acontecia, reclamou. "Vai preso por desobediência". Uma funcionária do teatro interveio. Em vão. Já algemado, o rapaz levou dois tapas na orelha (que eu vi). Como ali não havia louco, ninguém tentou saber o nome do PM que agrediu a pessoa, até porque reclamar para quem? Para corregedoria da PM, que abrirá um IPM que não fechará nunca e o denunciante ficar com medo de represálias? O grupo de trabalhadores, misturado à platéia, seguia reclamando da ação. "Vem aqui e fala na cara, se for homem", desafiou um policial, na hombridade da sua farda. O rapaz mais exaltado, pedra de gelo junto ao lábio, não foi. Finalmente o dono do carro foi levado à delegacia e o grupo voltou ao trabalho, agora sim com qualificativos desrespeitosos aos mantenedores da ordem (e sabe-se lá de que lei).

Fiquei ainda um tempo ali. Indignado com a cena e horrorizado ao me dar conta de que não há para onde fugir. Pelo menos dentro do nosso Estado de Direito. Na ditadura Chico pedia para chamarem o ladrão. Seria isso recomendável em tempos de PCC? Nessa hora, temi por não ver alternativas.


Campinas, 29 de março de 2009


Publicado em: www.institutohypnos.org.br

sexta-feira, 20 de março de 2009

Os humanistas acadêmicos (retrato de uma universidade reconhecida como crítica)

Um trecho de O Capote me fez lembrar da última colação de grau no IFCH-Unicamp. Gógol, no referido trecho, comenta sobre o colega de Akaky Akakievich: "e muitas vezes estremeceria em sua vida ao perceber o quanto há de desumano no ser humano, que grosseria feroz subjaz num ambiente culto, requintado e, meu Deus!, inclusive naquelas pessoas que a sociedade reconhece por nobres e honradas".
Estava eu na colação, em meio a pessoas nobres e honradas, a amigos, a conhecidos e a desconhecidos com quem cruzei quase diariamente nos últimos quatro anos, pelo menos. A colação de grau no IFCH, diga-se de passagem, se reduz ao mínimo do ritualístico exigido pela Academia: o juramento e o subir no palco para pegar o diploma. Nada de baile, missa, toga, paraninfo, homenageado, convite e o que mais for. Mas só esse mínimo já me parece o suficiente para atestar o anacronismo de uma instituição cada vez mais alienada do mundo extra-muros. Talvez em uma época em que o conhecimento se embasava na autoridade dos antigos, rituais e tradições fossem algo necessário, até mesmo para que a universidade se inserisse no mundo que o circundava. Na modernidade, tais ritos são absolutamente vazios de significados, servindo, no máximo, para os emotivos se mocionarem, os zombeteiros zombarem e os inconformados se inconformarem (meu caso).
Um parênteses: faculdades que se dizem antenadas à última moda do mercado, como FGV e outras instituições que não deveriam ser tidas por "de ensino", são ainda mais alienadas da realidade do país do que as universidade públicas. Fecha parênteses.
O juramento seria o grande momento em que concluiríamos nossa formação, estando aptos, depois de proferi-lo, a receber nosso diploma. O juramento do IFCH em si é risível. Ao menos para aqueles que passaram pelo instituto aguçando sua visão crítica. Positivista e bastante acrítico, ele contraria a orientação predominante que o IFCH se auto-proclama (se põe em prática, deixemos para outra crônica). Porém, o mais ridículo é achar que repetir algumas frases como papagaios irá balizar eticamente nossas ações na sociedade quando as fizermos com base no título recebido.
E como disse, mesmo esse ritual mínimo emociona os emotivos (e mesmo os não tão emotivos assim). Não que conseguir o diploma, finalmente, não mereça demonstrações de alegria e emoção por parte daquelas pessoas que estão se graduando. Minhas críticas são, primeiro, aos ritos institucionalizados, anacrônicos e desprovidos de significados nos dias de hoje; segundo, a representar essa alegria em uma festa suntuosa e esbanjadora, que nas formaturas de universidades públicas atinge o escárnio com as classes desfavorecidas (que são os maiores pagadores de impostos no país, os com menos oportunidades de cursar o ensino superior público, e que costumam receber a xepa, quando recebem, do que é produzido na Academia).
Voltemos à alegria autêntica e merecida de muitos dos formandos. No final do juramento que papagaiamos alheios ao que dizíamos, ele fala que não devemos desistir dos nossos sonhos. Ao terminar o juramento, o formando que o leu para repetirmos reforçou, emocionado, essa frase com seu exemplo "de vida" (as aspas porque não quero limitar a vida do homem à universidade): tinha 67 anos e atingia seu sonho de se formar em filosofia. Talvez fosse possível criticar tal colocação, o seu momento - não pretendo entrar nessa questão. Algumas pessoas que estavam ao meu lado, contudo, não perderam a oportunidade de escarnecer do sentimento do homem. "Vejam, verti uma lágrimja", zombava ao meu lado uma conhecida das ciências sociais que diariamente enche minha caixa de e-meio com mensagens de solidariedade aos povos oprimidos, às minorias excluídas, aos injustiçados do mundo.
Essa conhecida me parece um ótimo exemplo do tipo de pessoa que a universidade tem ajudado a formar: técnicos, teóricos alienados e brutalizados. E olhe que estou falando de pessoas que fizeram um curso que, em tese, se preocupa com o outro. Essa preocupação talvez possa ser sintetizada pela frase "amor pela humanidade em geral e ódio pelos seres humanos em particular" que uma vez ouvi. Ao sofrimento dos tibetanos, dos sudaneses, pessoas amorfas que nunca convivi, nem nunca conviverei, minha solidariedade, minhas lágrimas sinceras. À alegria do próximo, o qual poderia olhar nos olhos para discutir e tenho que escutar frases (talvez) inoportunas, meu escárnio.
Prefiro nem pensar como não deve ser entre aqueles que sequer se interessam pela humanidade tem geral.

Campinas, 20 de março de 2009

segunda-feira, 9 de março de 2009

Um retrato de uma universidade reconhecida por seu pensamento crítico

Vivemos em uma sociedade na qual o que realmente importa é deter títulos e não possuir conhecimento. Os títulos a que me refiro são os acadêmicos e a importância que evoco diz respeito antes a posições de prestígio na sociedade, não necessariamente vinculadas a importâncias monetárias. Sempre que me refiro a essa questão cito como exemplo a prova para o Instituto Rio Branco, considerada a prova mais difícil do país. Na primeira fase, questões de múltipla escolha, uma alternativa errada anula uma certa. Nas três fases seguintes, questões discursivas. Seria de se imaginar que alguém que supere todas as fases está apto a entrar no Itamaraty, certo? Talvez fosse, caso o Itamaraty estivesse interessado em escolher os melhores para os seus quadros. Há, contudo, uma cláusula posta na década de 70, se não me engano, quando o ensino hoje médio começou a se popularizar, cujo objetivo é garantir que tais vagas sejam destinadas aos melhores... da elite: a exigência de diploma superior. Ainda que essa cláusula tenha perdido sua validade original com a massificação do ensino superior no correr da última década, me parece um bom exemplo de como a sociedade articula "formas legítimas de exclusão", como sintetizou um professor da Faculdade de Educação, quando utilizei esse meu batido exemplo.
Faço toda essa propedêutica para reclamar da vida. Interssado em ter experiência no ensino básico e sabendo que meus quase quatro anos lecionando em projetos de educação popular não me ensinaram nada, e que só terei capacidade para ser professor se sentar a bunda mais dois anos em sala de aula e organizar três ou quatro atividades em uma escola oficial, tenho tentando encarar uma vez mais a penitência (para não dizer tortura) que é passar pela Faculdade de Educação da Unicamp. Da primeira vez que tentei, não suportei. Nesta segunda tentativa comecei com um professor bem razoável (esse ao qual me referi no parágrafo acima). Até cheguei a imaginar que fui azarado nas matérias da primeira tentativa e não que esse professor foi um lance de sorte. Recaídas polianas.
Pois lá fui eu para a primeira semana de aula, já irritado por ter disciplinas negadas, o que significa que minha tortura deve durar um semestre a mais (isso se eu resistir). Lá fui eu, irritado mas esperançoso, à Faculdade de Educação, Faculdade que a secretária de educação do governo Serra acha que deveria ser fechada.
Na primeira matéria que assisto, o professor começa a aula dando sermão sobre assinar a lista para colegas ausentes. Diz que isso é corrupção, "igual àquela que criticamos no congresso". Torço o nariz e tento relevar: primeiro porque já estou careca de saber (quase literalmente) que política, ao contrário de física, é um conhecimento muito mais à mão e muito prático, ainda que a preguiça de pensar não permita que as pessoas - e mesmo os professores doutores e pós-doutores que teoricamente lidam com política educacional ou assuntos afins - saiam do mais rasteiro senso comum. Segundo porque tenho a viva impressão de que na Faculdade de Educação da Unicamp ainda se está longe, muito longe, anos luz de distância de descobrir Foucault (já Skinner...). Relevado isso, sigamos com a tortura.
É impressionante como há pessoas que possuem o dom de fazer o relógio andar mais devagar! Eu me sentia aquele personagem do Angeli, cuja cabeça cresce até quase explodir diante das conversas das pessoas de bem. Porém minha curiosidade masoquista queria ver até onde esse professor iria.
O ponto alto da aula foi quando ele dividiu o Brasil em dois: o sul, que correspondia, segundo ele, "de Minas para baixo: Minas, Espírito Santo, Rio, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul", e o norte, que era o resto. Está bem, uma mapa esquemático, viremos um pouco ele na diagonal e tentemos ver o Mato Grosso do Sul acima de Minas Gerais. Feita a divisão em norte e sul, diz ele que se se separassem, o sul seria um país de primeiro mundo. Ok, é uma apresentação sem muito rigor, depois ele deve desenvolver um pouco melhor sua tese. Seguiu o professor doutor com uma série de informações inéditas e vitais, como a dificuldade em se encontrar um posto de conveniência do Gugu Minas, ou em conseguir fazer o cartão passar em uma máquina, ou o medo em se parar em qualquer posto desse estado que é, segundo o professor, parte do primeiro mundo. Assim ia até a inédita e lapidar e científica explicação (que fiz questão de anotar para não colocar senão a frase exata): "enquanto o sul produz, o resto do país gasta". Óbvio! Todo mundo sabe que no semi-árido nordestino a média é de duas tevês de plasma por residência, e que qualquer pessoa com mais de cinco anos possui um i-phone, pelo menos!
Quis levantar e sair da aula, mas achei que frase assim absurda devia ser para provocar a indignação dos alunos, ainda que não fossem alunos do primeiro ano, sequer fosse a primeira vez que dava curso àquela turma. Eu mesmo fiz uso algumas vezes de tal expediente. Permaneci, então, sentado, quietinho, enquanto ele prosseguiu com suas fascistadas paulistas. Comecei a entender então que ele ter dito no início da aula prezar por toda a liberdade de pensamento que a universidade pública oferece não era ignorância dos últimos acontecimos: ele pode pensar e, melhor, falar o que bem entender que os alunos não têm para onde correr nem são loucos de questionar: com um mês de aula já todo mundo sabe (se não sabe é porque não quer) que há duas coisas básicas que movem a universidade pública: café e ego. Com um pouco mais de tempo se certificam que questionar um professor é pedir para ser perseguido - talvez não por ele, pois isso seria muito rasteiro, mas por algum colega da sua panela.
E o mais revoltante foi o professor ter falado em liberdade de pensamento na universidade uma semana depois da reitoria ter autorizado a entrada da Polícia Federal no campus para apreensão dos equipamentos da Rádio Muda, a rádio livre que funciona no campus da Unicamp, e um mês depois da reitoria ter apresentado queixa à polícia do servidor do Grupo de Estudos Saravá, que funcionava no campus e ao mesmo tempo que servia para estudos, atendia a projetos sociais.
Talvez eu esteja agindo de má-fé e ignorando o óbvio: há liberdade de pensamento e expressão na universidade, sim. Uma liberdade limitada, é claro, pois sou aluno. Se eu não faço uso é porque não tenho coragem de arcar com os meus atos. E para aqueles que têm coragem de fazer uso de "toda" essa liberdade que a universidade oferece, e não estiverem sob o poder direto dos professores (o que lhes dá direito a reprovar em matérias ou rejeitas bolsas entre outros expedientes), o jeito é chamar a polícia, assoviar e olhar para o lado com cara de defensor da democracia, esbravejando - num misto de alegria e desalento - contra os despautérios da nação que ele leu na última Veja, e indignado com a corrupção dos alunos que assinam listas para os colegas.

PS: Do meu lado, apenas torço para que nem ele nem seus colegas fascistóides leiam esta crônica até eu terminar minha licenciatura (caso consiga terminá-la).

Campinas, 09 de março de 2009

sexta-feira, 6 de março de 2009

A dosagem exata (de bebida)

A ciência moderna, principalmente com seus avanços supersônicos das últimas décadas, prima pela certeza, pela precisão. Estão aí a nanotecnologia e os mísseis teleguiados para mostrar essa busca. A medicina é, ela também, uma ciência. Daí sua busca por ser cada vez mais exata, matemática, a despeito das pessoas insistirem em serem seres biológicos. Ela não é nada relacionada, por exemplo, com xamanismos indígenas, esses em que se realizam procedimentos risíveis de tão absurdos, geralmente rezas e danças do pajé, culminando com esfregações de um pó-de-mico qualquer, e que acham que com isso se cura algo.
Com a medicina você escolhe qual corrente ou médico lhe agrada e passa a acreditar e a seguir (quase) tudo o que ele diz. Sendo que o que ele diz, na maioria das vezes, é a dosagem exata dos princípios ativos para a doença a ser curada. Se a doença persiste, bem, aí a culpa é da doença, que não está seguindo os compêndios científicos de medicina, e não do médico ou da própria medicina.
Mas a medicina não se preocupa somente com a doença. Ainda que consulta boa seja aquela em que se sai com uma receita de remédio, há também a chamada medicina preventiva, sempre atenta a todos os males que qualquer prazer é capaz de acarretar.
Um dos poucos prazeres que têm conseguido se manter a salvo das investidas da medicina preventiva é a de que uma dose de vinho por dia aumenta expectativa de vida. Há quem diga que uma dose de suco de uva diária faça o mesmo efeito. E há uns escoceses (ainda não consegui chegar à conclusão se por carolice ou por nacionalismo) que dizem que essa dose de vinho faz mal. Contudo, como não há médico (salvo, talvez, os escoceses) que dispense um bom vinho, ninguém leva a sério essa pesquisa.
Todavia, segundo as últimas investigações médicas, se uma dose faz bem, beber duas é acelerar o passo para a cova. Isso de início não me preocupou muito: não creio nos escoceses nem nunca chego à segunda dose. Aqueles que avançam para a terceira quarta quinta eu não sei como ficam, acho que faltam pesquisas a respeito, já que a lógica médica não segue parâmetros muito tradicionais (por mais que tentem). Depois de pensar um pouco, porém, me veio a angústia: há dias que o vinho é bom e a companhia, agradável, e eu acabo bebendo meia dose a mais. Com essa meia dose extra não chego às duas doses fatais, mas também saio da dose demi-eterna. Teria ela o poder de fazer com que minha hora chegasse no momento marcado, nem antes, nem depois: exato?
Enfim, como a medicina até hoje só criou o relógio biológico, e não o cronômetro biológico, por um tempo ficarei sem saber a resposta. E não irei dispensar, quando o vinho estiver bom e a companhia, agradável, essa meia dose a mais até lá. E também não sei se vou acreditar nesse cronômetro, quando surgir.

Campinas, 06 de março de 2009