domingo, 26 de abril de 2009

A patinha feia

Dia desses encontrei um amigo em estado de ânimo alterado: havia recém visto o vídeo de Susan Boyle, depois de ter lido sobre na coluna do Caligaris: “quase chorei”, comentava. Mesmo sem ter visto, não duvido da emoção do Hugo, do Caligaris ou de outros que assistiram à cena. Imagino que o vídeo seja realmente emocionante. Me parece, porém, que os emotivos não notaram um detalhe: Boyle é alguém que está previsto no roteiro desse tipo de programa. Poderia se chamar Smith, Taylor, Silva ou Santos, mas alguma hora deveria surgir alguém a quem se desse pouco crédito e que invertesse o jogo de maneira surpreendente. O formato do programa leva a esse tipo de "surpresa".
Certa feita assisti ao similar nacional: jurados que avacalhavam idiotas em busca do seu minuto de fama. Nesses casos, o público se regojiza com sua pretensa superioridade em não se expor a esse tipo de ridículo. No fundo, se conforta em ver mais uma vez que não é o único idiota no mundo, ainda que seja um pouco mais covarde do que aquele que está na tevê. O programa teria graça justamente por isso. Contudo, no fundo há também a espera de um novo grande talento. Nessa hora, quem assiste pensa que poderia ser ele (ou ela) a estar ali. E tem os casos extremos, em que surge mais que um talento, um ídolo - que o próprio nome do programa já anuncia.
Penso que poucos gostem de se identificar com Boyle. Todos devem se imaginar um pouco acima da sua condição pré-estrelato. E se ela conseguiu, por que não eu, que não sou nem tão feio, nem tão caipira, nem me visto tão mal quanto ela? Está feita a ponte para o festival de clichês do valor do indivíduo, dos quais Boyle é apresentada como prova, enquanto os milhares ridicularizados antes dela são esquecidos para não servirem de contra-prova.
Há quem veja no caso Boyle uma releitura midiática da história do patinho feio: jurados e platéia foram pela aparência e o patinho feio se mostrou um lindo cisne. Já estamos crescidinhos para seguir confundindo pato com cisne, não?

ps: Descoberta a fórmula do ídolo, não será surpresa que comecem a surgir novos Boyles pelos programas similares do mundo.

Campinas, 26 de abril de 2009


Publicado em: www.institutohypnos.org.br

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O toque de um celular

Retornava de São Paulo. Já quase em Campinas acordo com o celular de um passageiro tocando: uma arma que engatilha e atira. Meio sonado, meu primeiro pensamento é sobre o mau gosto do toque, enquanto o policial atende à chamada. Foi só depois que me dei conta de certa dimensão da cena.
Eu poderia pensar que o celular de um PM ter toque de tiros seria uma mostra de que ele gosta do seu serviço. Seria como o toque do celular do Galvão Bueno trazer um grito seu de gol do Ronaldo para o Brasil. Porém me parece mais condizente uma analogia em que o celular desse imparcial narrador tenha como toque ele dizendo "...gol da França...", tirado da final da Copa de 98. Isso porque um policial dar tiro é parte do emprego, como o Galvão narrar a derrota do Brasil: faz-se, mas com grande pesar, lamentando que tenha acontecido.
A um mantenedor da ordem social, espera-se, seu objetivo seja ver tudo "nos seus conformes", como diz meu pai (não necessariamente sobre a ordem social). Dar um tiro seria, portanto, sinal de fracasso, ainda que parcial do policial, da corporação, da sociedade: mostra de que algo foge à ordem de tal maneira que é preciso apelar a opções drásticas.
Salvo o caso de se tratar de um masoquista, o toque do celular de um PM ser barulho de tiros mostra o quanto ele deve gostar dessa parte do seu trabalho. Ou seja, antes que um defensor da ordem, ou sob a pretensa defesa da ordem, trata-se de um entusiasta da anomia que deveria combater. É o fracasso em manter a ordem que lhe dá a impressão de ser útil a uma sociedade falida.

Campinas, 16 de abril de 2009


Publicado em: www.institutohypnos.org.br

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Um homem por trás da imagem

Não sou um grande entusiasta do futebol. Gosto de jogar, para brincar, me divertir, sem preocupação em vencer ou jogar bem. Até porque, desajeitado que sou, seria absurdo querer jogar bem – não me machucar com a bola já é uma vitória. Assistir a um jogo, muito raro. No estádio ainda acho legal, mas tenho preguiça de ir. Pela tevê, me cansa. Ainda mais se for narrado por algum idiota (ou seja, praticamente qualquer narrador, salvo o Sílvio Luís). Resta que acompanho futebol pelo jornal ou pelo programa da Juca Kfouri, em geral me interessando mais pela parte política do esporte ou pelas piadas do Juca do que por descrições de jogos ou esquemas táticos. De qualquer forma, acho que se perde muito tempo, que se gasta muito papel e muita saliva com algo que deveria estar longe de ter a séria importância que tem. Enquanto se discute se fulano está gordo, se beltrano já passou do seu auge ou se sicrano será o novo Pelé, a vida que importa corre alheia, a política que vale segue acontecendo por debaixo dos escândalos do Congresso e dos visuais metrossexuais dos jogadores.

O pior é que jogador de futebol, ao menos no Brasil, é hoje tido como modelo de pessoa determinada e bem sucedida. Quantos moleques, todo dia ao acordar, não devem sonhar com a Europa, mesmo sem saber exatamente o que é a Europa, apenas sabendo que é o éden do sucesso, da fama, dos grandes homens, dos carros importados? Como burros atrás da cenoura, ensaiam dribles, vão a alguma igreja caça-níquel se converter e adquirem o vasto repertório que jogador de futebol possui e demonstra sempre que dá uma entrevista.

Acredito que há, contudo, jogadores que merecem, não sei se o estatuto de ídolos, mas sem dúvida de exemplos. Exemplos um pouco mais realistas de como são as coisas no futebol, na imprensa. Um deles é o Zidane e sua linda cabeçada no jogador italiano. Era sua despedida dos gramados, a chance de mais um título para a França. Zidane era vendido como um dos maiores heróis do futebol de todos os tempos. O rapaz pobre, filho de imigrantes, morador das periferias reprimidas da França, que com o suor do seu rosto e a arte do seu futebol mostrava que todos podem se tornar ricos e famosos, desde que sejam honestos. Pintava-se a sua santidade, um verdadeiro herói, um merecido ídolo. E eis que ele resolve antecipar em alguns minutos sua saída do campo e renunciar ao santo que pintavam. Mostrou que era humano, contribuiu para a derrota da França, e saiu como o vilão da história, um homem um tanto desequilibrado e violento. O curioso da agressão do Zidane é que uma cabeçada no peito do adversário não tem a menor intensão de machucar. Se quisesse mesmo agredir, poderia logo ter dado um soco, ou uma entrada violenta, fingindo ser lance do jogo. A questão ali era de respeito, respeito pela pessoa Zinedine e não pelo herói Zidane. E, penso, no fim ele se deu muito bem: não precisou, penduradas as chuteiras, assumir o papel de alguém que não era.

Outro exemplo, acredito, veio do Brasil, esta semana. Adriano já mostrou não ser um bom super-herói quando, ano passado, retornou ao Brasil, diz-se que para lidar com problemas com álcool. Um belo arranhão na sua imagem, afinal, que empresa vai querer um garoto propaganda que tem problemas com drogas? Como ficaria a própria convocação para a seleção brasileira, patrocinada por uma marca de cerveja? Poderia ter mascarado seu problema, levado a carreira até onde conseguisse, saindo à francesa, para garantir a imagem, ou com grande estrondo, à la Maradona, para ganhar um pouco mais os holofotes. O problema aflorou e veio ao Brasil tentar se recuperar – do problema e como jogador. Conseguiu e retornou à Itália.

Eis agora, quando tudo parecia caminhar bem, convocado novamente para a seleção depois de muitos já terem dada por encerrada a sua carreira, novo sinal de fraqueza: porque se sentia infeliz, resolveu que não voltaria à Itália. Como?! Infeliz na Europa, ganhando milhões?! Quanta heresia! Onde está o exemplo para a garotada? Pior: ainda passou três dias na favela! O que alguém com uma conta de milhões e muitas as oportunidades vai fazer na favela, se perguntam, indignados, os homens de bem. Resposta óbvia: deve estar metido com traficante. Afinal, favela só tem bandido e traficante, não é verdade? Adriano nega que tenha relações com traficantes e acredito nele: está onde passou a infância e certamente deve se reencontrar com amigos da infância, de chinelo e bermuda, como a pessoa normal que há por trás do ídolo. Reencontrar amigos que tiveram menos sorte na vida, não se tornaram Imperadores nem fizeram milhões com futebol. E um ou outro, talvez influenciado por esses mesmos milhões, por essa mesma fama de imperador, pode ter optado por entrar no tráfico. Se acaso ele tem algum amigo desses e ainda conversa com ele, não penso que discutam controle da boca ou guerra com facções rivais, por isso não julgo oportuna a forma como é posto que “Adriano tem relações com traficantes”. Soa como se ele estivesse contribuindo com o tráfico, o que até agora não há indícios. De um certo jogador bom moço e rico, em compensação, não com o tráfico, mas não tão longe também, as provas são bastante incontestes. Mas como bandido só há em favela e no Congresso...

Adriano ainda não encerrou a carreira. Tem alguns anos de futebol pela frente. Porém, pelo andar da carruagem, a imprensa não fará muita questão de lembrá-lo quando não tiver mais seus gols para cobrir. Um mau exemplo: não nega as origens, comete falhas profissionais, e admite ter problemas – como esse, banal, humano, pequeno, de infelicidade –, ao invés de falar, petulantemente, “que ninguém tem nada a ver com isso, importa é eu jogar futebol e fazer gols” e servir de bobo da corte em programa de auditório de domingo à tarde. Em suma: não se mostra o bom cordeiro para servir de exemplo que a televisão deseja.


Campinas, 10 de abril de 2009

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Os EUA e a imprensa brasileira

A grande imprensa brasileira corre sério risco de se ver em apuros. Não falo aqui em apuros financeiros, como no resto do mundo, mas de legitimidade, mesmo, como no resto do mundo também.
Primeiro foi com o último plebiscito de Chávez na Venezuela. Integrantes desde os primórdios da “internacional anti-chavista”, como diz Jânio de Freitas, a imprensa teve que engolir a seco o relatório do governo estadunidense que certificava a legitimidade do processo, depois de todas as reportagens divulgadas que provavam o contrário.
Agora é a vez de Barack Obama dizer que Lula “é o cara”. Pior: o presidente dos EUA falou isso menos de uma semana depois de Lula, em mais um de seus arroubos de verborragia improvisada, ter dito que os responsáveis pela crise financeira atual eram os “brancos de olhos azuis”. Frase precária, mas de menor importância, à qual a grande imprensa destes tristes trópicos fez grande alarde, fazendo questão de levá-la ao pé da letra, ignorando qualquer possibilidade de metonímia ou figura de linguagem que a última flor do Lácio (inculta e bela?) permite.
Desse jeito, os EUA tem posto a imprensa tupiniquim em aporia: ou ela vai ter que dizer que Obama é um engodo e não é um líder, ao contrário do que se diz no mundo todo; ou vai ter que admitir que Lula não é um governante tão horroroso quanto tem tentado pintar nos últimos seis anos, que alguns pontos positivos (além da ortodoxia econômica) ele deve ter para merecer elogios de alguém que imprensa não cansa de elogiar. Ou seja, ou a imprensa dá provas de independência (dos fatos), ou admite que o mundo não comporta mais a divisão tão preto e branco como nos (saudosos?) tempos da guerra fria, esquematismo que ela se mostra longe de conseguir superar.

Campinas, 03 de abril de 2009


Publicado em: www.institutohypnos.org.br