quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Trote de elite

Novamente me surpreendo ao chegar na PUC-SP no início do ano letivo: ainda é segunda semana de aula e os trotes já acabaram! Mais impressionante foi ano passado: no segundo dia e já não se sentia mais o clima de trote! Acostuma com a USP e Unicamp - onde a primeira semana é dedicada quase que exclusivamente a isso, e de que a parte mais radical não se encerra em menos de um mês, tendo os veteranos direito a abusar dos calouros até o dia 13 de maio - chego a me perguntar se não e uma evolução essa condensação do trote.

Mas leio no jornal de hoje que calouros de uma uniesquina qualquer, a Unifeb, de Barretos, sofreram queimaduras durante uma brincadeira nas comemorações de recepção dos bichos. Me dou conta, então, de que o trote durar um dia ao invés de um mês não é avanço: é necessidade. Porque boa parte desses acadêmicos trabalha e não tem tempo para perder com o ócio. E imagino que já sendo lesados uma vez por pagarem por um direito constitucional, duas ao pagarem por algo precário (não é o caso da PUC-SP, claro), não se animam em serem lesados uma terceira vez, perdendo aulas (não que eu pense que aulas, via de regra, não sejam perda de tempo).

Já nas universidades públicas, uma semana, um mês, três meses de trote não servem apenas para marcar a hierarquia interna: servem também para mostrar aos excluídos desse Olimpo que quem está ali é elite.


Campinas, 24 de fevereiro de 2010.

publicado em www.institutohypnos.org.br

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Pequenas crenças

Sei que não é novidade alguma, de qualquer forma me espanto toda vez que me dou conta do quanto nossas crenças nos dão chão. Não falo aqui das grandes crenças – em Deus, na ciência, na razão, na humanidade, na arte, na literatura, na dúvida –, mas das miúdas, bem pequenas e rasteiras, como a de que conhecemos a pessoa que está na nossa frente e com quem conversamos.

Conversava eu com uma velha amiga, a Paula, que está de partida para estudar na França. Eu estava hospedado na casa dela e tomávamos café da manhã – ela depois de mais uma noite de insônia, por conta da expectativa da viagem. Tratávamos de um assunto qualquer, acho que dos seus seis cachorros. Em dado momento ela falou: “Minha irmã não é assim, eu até digo para ela: Paula, pára”. Nessa hora, me veio um certo assombro, que me fez perguntar de imediato, quase instintivamente: “tua irmã se chama Paula?”. Eu estava pronto a arremedar que desde sempre havia chamado ela pelo nome errado, quando me dei conta de que se a irmã da minha amiga se chamasse Paula, o nome dela só podia então ser… qual era o nome dela? Por um breve instante me senti sem chão e meu cérebro partiu em disparada em busca de qualquer referência, qualquer ponto de apoio para que conseguisse me localizar onde estava e com quem estava.

Durou pouco essa diferente e angustiante sensação. Logo a Paula, também surpresa, consertou: “eu chamei minha irmã pelo meu nome? Nossa, que coisa!”, e reclamou uma vez mais das noites mal dormidas, antes de retomar o que contava, chamando sua irmã pelo nome certo.


Campinas, 20 de fevereiro de 2009

publicado em www.institutohypnos.org.br

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

É tempo de festa?

E começou minha temporada anual de mau-humor crônico. Não, não se trata de inferno astral, ou qualquer alteração hormonal, nem mesmo carnaval – festa que, admito, não gosto, mas também não odeio. Meu incômodo é com a tradicional boas-vindas aos alunos nas universidades brasileiras, o chamado “trote violento”, o que é uma redundância: o termo trote já traz consigo o conceito violento. Coisa que pouca gente aceita, uma vez que se acredita que a violência só comece quando surgem hematomas. Da minha parte, encaro como violência tudo aquilo que atenta contra a liberdade e a dignidade do homem. De modo que as experiências positivas de boas-vindas prefiro chamá-las de recepção aos ingressantes.

Pois bem, junto com os trotes, começaram, claro, notícias de alguns extremos. Ainda não tivemos nenhum assassinato de “bicho” por parte de estudantes de medicina da USP, nem espancamento de pedinte por alunos de direito do Mackenzie – ao menos nenhum sabido. As universidades fingem que se mobilizam: a Unicamp, por exemplo, encena uma campanha “diga não ao trote”, como se um adolescente de vinte anos, acuado ao ser cercado de veteranos que pulam e gritam ao seu redor, tivesse a real possibilidade de dizer não. Após passar a essa primeira (de muitas) iniciação, pode se juntar aos seus alegres pares, sujos de tinta dos pés à cabeça, o que lhes dá um ar de idiotice na sua (merecida) alegria.

Daqui a pouco, passado o carnaval, surgirão em maior volume jovens sujos nas esquinas “fazendo pedágio”, no fundo, escarnecendo de parte da população brasileira que tira daí o seu sustento (mas já não houve ministro do turismo que via na pobreza produção de Carlitos em massa?). O dinheiro que levantarão será gasto todo em drogas, mas isso não é problema, problema é dar dinheiro pra mendigo comprar bebida. Depois vem os trotes nas repúblicas, ápice da coação e da violência – eu mesmo, na vez que acabei caindo na mentira que encoberta essas “festas”, fui ameaçado e por quase duas horas me impediram de sair da casa.

As universidades se eximem dizendo que o que acontece fora dela muros não são de sua responsabilidade, por mais que tenha sido planejado, tenha tido o início da sua execução dentro dela, e seja feito em seu nome. Mas talvez tenham razão: as universidades o tempo todo dão as costas àquilo que acontece fora dos seus muros, por que se preocupariam com uma coisinha qualquer, como trotes? Afinal, as universidades têm como função habilitar cientistas, técnicos, e não formar cidadãos, não é?

Campinas, 12 de fevereiro de 2010.


publicado em www.institutohypnos.org.br