sexta-feira, 29 de abril de 2011

Bicicletas de primeiro mundo

Se tem uma coisa que a elite brasileira adora é fazer o que ela acha que é chique no exterior. Ir à ópera vestindo casaco de pele em Ribeirão Preto, sendo que durante o dia a temperatura passou dos trinta graus, por exemplo. Essa elite acredita que a última onda mundial é bicicleta. Mas não qualquer magrela, tem que ser bicicleta comunitária. Veja São Paulo: espalhou bicicletários pelas estações de metrô – outra coisa chique, de primeiro mundo, metrô. Quantas pessoas usam o serviço? Isso pouco importa para a elite: fica bonito, não fica?

Numa cidade sem ciclovias – começam agora a ensaiar a instalação de algumas, ainda incipientes e sem perspectivas para um futuro próximo –, em que bicicleta é estimulada como passeio de domingo, o “usebike” é um programa tão patético que o sucessor só viu nele gasto inútil – ou seja, viu o que ele é. Mas como é coisa que tem em Barcelona, no Canadá, em Paris – e São Paulo não serviu de exemplo –, a Unicamp resolveu também aderir, numa prova de falta de senso de ridículo e de prioridades.

Agora a universidade contará com um sistema de bikes comunitárias intracampus para a comunidade interna se deslocar pra lá e pra cá gastando menos tempo e com “menos stress” (sic). Atrasado para a aula? Azar o seu, corra: o tempo autorizado com a magrela não permite assistir à aula inteira. Esqueceu algo em casa, ali pertinho? Vá de carro ou à pé: a bicicleta é só para o campus. Daí a pergunta: para quê bicicleta, se já tem ônibus circular interno? Só se for para passeio de domingo, pelo visto.

Enquanto isso a Unicamp finge que estudante universitário não é estudante e não mexe um dedo pelo meio passe estudantil no transporte público, melhora o tráfego dos carros às custas de piorar a vida de pedestres e ciclistas – que têm que se deslocar mais e atravessar mais ruas –, e segue sem calçadas para pedestres em boa parte da fazendona, mas vagas para estacionar, isso sobra. Inclusive, a Unicamp a cada dia se firma como um grande estacionamento gratuito e cada vez mais bem equipado e protegido – só falta ser com seguro.

Enquanto isso, a moradia estudantil – destinada a alunos que ainda não são da elite – segue sem ampliação de vagas, casas mal pensadas e mal construídas, com reformas sempre lentas; o restaurante universitário tem fila das 11h30min às 13h45min (para compensar o tempo que você vai ganhar com o bicicleta?), e bibliotecas e salas de informática continuam alagando eventualmente – mas só quando chove. Olha, uma utilidade! As bikes poderão ajudar pra sair à cata de gente para entrar no mutirão de retirada dos livro das prateleiras antes que molhem.

Campinas, 29 de abril de 2011.

terça-feira, 26 de abril de 2011

O absurdo e o escárnio

Estamos tão anestesiados pelo absurdo que vivemos em nosso quotidiano que o escárnio pode ser atirado em nossa cara e ainda agradecemos. Entregues a uma liberalidade capaz de fazer corar um liberal de boa cepa – desses que não se encontra por estes tristes trópicos –, as cidades brasileiras caminham para se tornar aglomerados de multidões solitárias, concreto e asfalto – por onde se deslocam cidadãos virtuais em bolhas metálicas individuais. Claro, há uma resistência orgânica da urbe: o território concreto contra o espaço tratado indiferentemente às suas características naturais. Mas a cidade insiste e vai atropelando o que tiver pela frente para dar passagem aos carros – que com seus motores com cem cavalos de potência, por suas vias se movem mais lentamente que galinhas.

Pela manhã, ligo o rádio, Band News FM ou CBN, e lá estão as duas emissoras com seus helicópteros e notícias sobre o trânsito. Congestionado para cá, tudo parado ali, flui muito lentamente não sei onde, tantos quilômetros de lentidão acolá, engarrafado entre tal e qual ponte sentido pra lá, aviso pra quem vem que é melhor não chegar, porque não entra, e pra quem sai, surpreendentemente o trânsito flui quase normalmente. Ao volante, reclamamos, bufamos, lamentamos, xingamos e aceitamos: é assim, que fazer? Encontrar meios de aproveitar esse tempo – audiobook parece ser a tendência da moda. Eis o absurdo que não mais nos perturba realmente.

O escárnio fica por conta das emissoras. Logo após o anúncio de tudo parado, a propaganda de mais um veículo – para você contribuir com todo esse caos. E achamos normal anunciar carro depois de noticiar os males do transporte individual que estamos sofrendo ao vivo. Tão normal que compramos a caranga anunciada.

E pela manhã, parados no trânsito, criticamos as ruas insuficientes da cidade, xingamos o motorista que demorou cinco segundos para dar o arranque, bufamos, lamentamos, reclamamos e aceitamos. Fazemos bem: se contribuímos para escarnecerem de nossa cara, por que não aceitar o absurdo de nosso dia a dia?


Campinas, 26 de abril de 2011.