segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Fora de forma

Há quem ache reconfortante achar um bode expiatório para seus problemas. Não costuma ser o meu caso, ainda mais se o tal bode vier acompanhado (uma cabra expiatória?) do fator tempo.

Tenho tentado voltar a escrever crônicas, após breve intervalo. Entretanto me vejo muito fora de forma: levo no mínimo duas horas, ao invés dos trinta minutos, como era minha média de antigamente; ademais, não tenho conseguido ser sucinto como havia me proposto – tenho outros espaços, como a Casuística, para me alongar e ser mais prolixo –, e o pior: no geral, ando insatisfeito com o que tenho escrito. Atribuo essa minha perda de forma aos apertos do mestrado, que me fez abandonar temporariamente esse hábito que me é agradável – ou costumava ser.

Não é, contudo, a primeira vez que o mestrado me põe fora de forma. Costumo dizer que fiz três besteiras ao começá-lo: parar com o tai-chi, com o yoga e com a musculação.

Já tentei correr, mas acho muito chato. Por três vezes tentei retomar a musculação, mas não consegui – antes fiz cinco anos porque gostava! O tai-chi, esse até voltei por um ano, mas fui obrigado a abandonar, por causa do prazo para qualificar o mestrado e dos seus horários não propícios – ou muito cedo, ou na hora em que eu estava mais rendendo.

E fico me perguntando se essa minha forma atual, em que minha idade parece ter invertido seus números – 82 e não 28 –, com trocentos probleminhas de saúde, além de falta de fôlego e raciocínio (mais) lento, não será o que ostentarei ao fim do mestrado, além do meu título – que ficará bem menos visível.

Se eu soubesse que iria acabar assim, e que isso é culpa mesmo do mestrado, teria partido para a terceira graduação antes da pós. Mas não sei, tenho a impressão que meus cabelos têm caído não para dar lugar a conhecimentos mais aprofundados, e que não adianta eu tentar achar bode expiatório, até porque o tempo já passou. Ou melhor, segue passando, e meu prazo final se aproxima – e é bom eu me aligeirar, se não quiser perder o resto da minha cobertura superior por causa de preocupação.


Campinas, 29 de agosto de 2011.

domingo, 28 de agosto de 2011

O macho cordial latino-americano


Há no imaginário a figura do macho latino-americano, aquele sempre seguro de si, que não pede informações porque nunca se perde, e que não aceita desfeita, ainda mais de mulher – só do chefe, mas é que ali é diferente, há seus motivos, que o referido macho não vê porque se justificar, afinal, duas desfeitas é demais. Eventualmente, os machos mais sentimentais, como Vinícius de Moraes, podem chorar de tristeza de amar, porém o farão na mesa do bar, ao lado de um copo, dos amigos – nada de correr atrás da amada. Bibelô, personagem do Angeli, é um outro exemplo do tipo, atualmente não raro sob roupagem um pouco mais moderna, num discurso mais doce – até mesmo com um visual metro-sexual.

Por Sofia, Luiz Tatit promoveu uma quebra nesse homem todo-poderoso: insistia todo dia, mas Sofia, Sofia!, não ouvia. Ele esperava, cedia, tudo para mostrar seu haicai, para ela especialmente feito. Porém, parece que haicai não cabia bem no conceito de poesia de Sofia – ou seria Tatit por inteiro que não cabia no seu conceito de homem?

De qualquer forma, com “Haicai” o macho cordial latino-americano saiu do armário, criou coragem para cantar suas agruras no tom que elas merecem ser cantadas: sem choros, melodramas, aquele ar sério que o macho típico gosta de dar, e que acabaria dando à sua desilusão amorosa um tom patético – porque de ridículo, já basta a situação e seu protagonista.

Mas para o macho cordial, ao menos o do século XXI, Tatit é ousado demais para estes tempos de pessoas audazes. A cordialidade do macho na América Latina não raro oculta um quê de desajuste existencial com a sociedade machista – porque homem também sofre com machismo.

Eis então que surge Alice, ali, parada, sentada, com a cabeça esvaziada, que o macho cordial observa ao longe, calado, fazendo planos, divagando. Cuja aproximação, desgastante e hesitante, é cantada em “Alice”, música de André Vac e Thomas Huszar, da banda paulistana Memórias de um Caramujo: “Alice, que tolice, eu aqui me declarando para você e você nem aí para minha declaração. Declaração talvez nem seja, só um convite humilde para um dia tomarmos um café, se der, se por acaso sobrar um tempinho no seu expediente – ou não, 'cê vê, me liga”. É a abordagem anti-machista, tudo o que uma mulher não quer ouvir. E o pior, ainda resta a dúvida: ele se “declara” mesmo, ou apenas almeja em fazê-lo? “logo eu, que de te olhar já me arrepio, me desmonto, caio em peças; imagina, eu falando com você, quando te olhar já dói bastante”. Ao contrário de “Haicai”, não há música alta a tornar inaudível o que ele tem a dizer, só o próprio homem a perder a voz diante de toda a responsabilidade que lhe cabe.

Da projetada sabedoria de Sofia ao imaginado país maravilhoso de Alice, o macho cordial latino-americano não apenas sonha em ser visto e desejado por sua Dulcineia, tenha ela o nome que tiver – meus casos foram pouco criativos, ou foi Karina, ou foi Carine, ambas das artes –, como em se ver desobrigado de tomar a iniciativa por ser o macho, simplesmente. Até lá, fazer disso motivo de choro? Como Tatit e Memórias de Um Caramujo, o macho cordial sabe que melhor é dar risada de si mesmo.


Campinas, 28 de agosto de 2011.

Passo o myspace da Memórias de Um Caramujo, já que o Luiz Tatit não é nada difícil de achar referências na internet: http://www.myspace.com/memoriasdeumcaramujo

sábado, 20 de agosto de 2011

Da precariedade dos argumentos – o movimento feminista da Unicamp (III)

(ou, de quando a defesa ajuda quem ataca)


Aproveito a manifestação “contra a violência à mulher” promovido pelas estudantes da Unicamp há pouco para terminar minha trilogia contra o movimento feminista da universidade.

Me atenho ao detalhe da chamada: a questão feminina estará tão bem encaminhada que haverá apenas uma espécie de violência contra a mulher? Ou estará num patamar tal, da violência total – o apocalipse, o campo de concentração –, de forma que é de se questionar o porquê de uma passeata e não de um convite a um ato um pouco mais radical – suicídio coletivo ou mulheres-bomba. Claro, não é um erro de grafia que invalida a iniciativa. Invalida-a, por exemplo, ter sido encampada pelo DCE-PSol (foge ao escopo e ao espaço desta crônica explicar o porquê, mas este vídeo ilustra um pouco a ética do grupo/partido: www.vimeo.com/7630032).

O lapso na grafia, contudo, aponta o que trouxe nas outras duas crônicas: um problema conceitual que não é inconsciente – ainda que a seja de se imaginar que as feministas (feministas, não as mulheres!) não consigam ir muito além de onde estejam.

Começa que para elas violência parece ser só a física – no máximo as discriminatórias –, e de homens contra mulheres ou do sistema contra elas – em geral externas, via intervenções cirúrgicas ou indumentária. As auto-inflingidas, as de mulheres contra mulheres, essas inexistem ou são aberrações. Disso decorre que os inimigos são poucos e facilmente identificados (o texto das feministas da Unicamp é de uma precariedade exemplar): o homem, o machismo, o capitalismo – como se não houvesse uma tradição no Ocidente de no mínimo dois mil anos de história reforçando dado papel da mulher, para ficar apenas numa faceta bem visível da questão.

Ademais, banalizar toda tentativa de assédio como sendo estupro e ponto, ao espalhar boatos em série de estupros (passei a desacreditar todos quando em dado período de 2008 se tornaram semanais), o movimento perde credibilidade e a própria violência contra a mulher perde a seriedade com que merece ser tratada – acho que estas minhas crônicas ilustram bem isso.

Pior: certa feita ouvi no Bandejão uma conversa entre um grupo de alunos ao meu lado: criticavam um deles por ter embriagado uma amiga para que ela “consentisse” fazer sexo anal com ele: “fazer isso com puta tudo bem, com amiga é sacanagem”. O fato de ser um “amigo” embrumaça a história, mas que se trata de um estupro, como aquele em que um desconhecido encosta a faca contra o pescoço da mulher, não há dúvidas.

Porém, apesar do mesmo nome, são violências diferentes – e não falo aqui de gradações –, que exigem precauções diferentes. Uma exige não dar bobeira entrando sozinha numa viela às onze horas da noite; a outra, tomar cuidado com o seu colega de sala, um cara que parecia tão legal, isso numa festa, onde tudo até então era só diversão. Ao começar logo com a palavra ESTUPRO, em letras garrafais, e sem ter o cuidado de fazer a distinção entre as diversas modalidades dessa violência – pelo contrário –, o imaginário popular fixa logo o caso “violento”, deixando que o caso mais corriqueiro continue acontecendo, encarado como mera “sacanagem”.

Que defesa das mulheres é essa?


Campinas, 27 de julho - 20 de agosto de 2011.


ps: Questão que me surgiu ao ver chamada para nova marcha contra "a violência contra a mulher em Campinas": as feministas querem mesmo que os estupros acabem, o que, dado o atual contexto sócio-histórico brasileiro exige, infelizmente, certas precauções e auto-restrições - e não falo das mini-saias -; ou desejam acima de tudo punição ao estupradores, sem notar que isso pressupõe a necessidade do estupro?