terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Campinas asséptica

Programa de terceira idade me fez voltar a Campinas, esta terça: médico. A tradicional visita mensal ao Aílton, meu homeopata.

Campinas me lembra o título de um filme hispânico, que assisti numa aula de espanhol, há uma década e meia, e não lembro absolutamente de nada, além do título: El aliento del diablo, O sopro do diabo. São Paulo andava quente, mas Campinas consegue juntar ao calor qualquer sensação térmica de fim de mundo. Passei o dia me arrastando pela cidade, com o bafo seco dos infernos soprando de todos os lados.

Ao meio-dia, encontrei com alguns amigos – fiquei devendo visita a outros – para almoçar e conversar um pouco – a consulta era às cinco. Havia também marcado de encontrar outro amigo, o Thyago, no centro, mas lh'escrevera a data errada (amanhã, numa mensagem com data do dia 28) e ele se programara para quarta: para a terça estava atolado de coisas para fazer – não que isso fosse novidade –, e deixamos nosso famigerado café para uma próxima oportunidade – já há uns dois anos seguidamente combinamos de combinar um café para pôr o papo em dia. Quem sabe em São Paulo, agora que ele passou no mestrado na ECA-USP?

Barão Geraldo é tão Terra do Nunca que até quando há um assalto banal merece efeitos especiais: minha amiga contou que, pela manhã, se atrasara para o trabalho porque tivera que tomar uma rota alternativa, já que no caminho havia um helicóptero da polícia parado no meio da rua.

Cheguei no centro de Campinas bem antes do horário marcado e dei uma passada na farmácia onde Ruth trabalha, já certo de que não estava – acertei. Fui até uma lanchonete, comer algo. No caminho, do outro lado da rua, numa loja de cópias e gráfica, um senhor de idade, cabelo todo branco, ele mesmo muito branco, em roupas claras, traçava uma linha para moça do balcão. Sua figura, o gesto lento, misturado ao calor da tarde deu à cena um ar de imobilidade móvil, ou mobilidade imóvel – não sei –, até ele levantar a prancheta, mostrar à moça seus rabiscos, e quebrar um pouco a leseira do instante.

Depois da consulta, tinha algumas horas para enrolar – descobrira que a linha que utilizo para fazer o trajeto Campinas-Ponta Grossa-Pato Branco não circula às terças. Parte passei numa lan-house, nesse grande ralo de tempo, esse buraco-negro espaço-temporal, que é a internet.

Clima mais ameno, saí para dar uma volta pela cidade. Não andei muito, diferentemente do que faço na capital – até por conta do peso da mochila e de trazer nela meu computador. Nas ruas, carros passavam, as pessoas se concentravam nas mesas dos barzinhos, nas calçadas. Na praça do Centro de Convivência Cultural, já no Cambuí, pessoas fazendo caminhada ou correndo, crianças brincando, pessoas com seus totózinhos, velhos passeando, casais namorando, grupos de jovens conversando. Quase lembraria a Av. Paulista confinada a uma pequena praça circular, não fosse um detalhe: não havia um mendigo, um pedinte.
Ainda me sobrando tempo, fui até a farmácia de Ruth uma vez mais, ver se ela não tinha trocado de turno – não tinha, mas a próxima consulta do Aílton marquei para a manhã, a ver se não a encontrarei. No trajeto, a mesma cena: pessoas nos bares; circulando, quase só carros, e nenhum pedinte ou morador de rua. Estes, seu eu quisesse vê-los, precisaria ir aonde estão: se não estão confinados, como as prostitutas, em um bairro, claramente estão impedidos de andar pela área nobre da cidade – não que São Paulo não gostaria, não tente pôr em prática o mesmo, só não consegue.

Cheguei à rodoviária com tempo de sobra – inclusive para começar esta crônica. Rodoviária higienizada de pessoas indesejadas no entorno próximo. Dentro, asseada, iluminada, "protegida" por câmeras de segurança, onde nunca ninguém me pediu um real para completar a passagem, nem há catadores de latinhas.

No ônibus, enquanto me afasto de Campinas, sinto que um leve olor putrefato fica para trás.


Campinas, 28 de fevereiro de 2012.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Meia ópera e um teco de São Paulo

Apenas havia visto, no sábado, que haveria ópera do Villa-Lobos, no Teatro Municipal, esta quinta, nas comemorações dos noventa anos da semana de arte moderna de 1922, e resolvi comprar o ingresso. Vi o título – Magdalena –, não a conhecia, não fui atrás de me informar. Comprei o ingresso mais barato – porque as contas na capital andam ariscas –, e me dispus a aproveitar São Paulo naquilo que não tinha em Campinas.

Talvez eu devesse ter assistido à ópera sem ter lido antes a apresentação. Ou talvez devesse ter lido sobre a ópera antes de ter comprado o ingresso – e deixado para conhecer o Municipal em outra oportunidade: Magdalena é uma ópera-musical, ou musical-opéra, feito especialmente para a Broadway, em 1947.

No intervalo, já não sendo grande fã de ópera – dia desses ouvi Iris, de Mascagni, e essa eu gostei!, ao menos de ouvir –, cansado daquele pot-pourri (ou remix, se for usar um jargão mais modernex) de Villa-Lobos feito por ele próprio, com um libreto muito fraco, e com coreografias até que bacaninhas, mas bem no estilo musical, decidi ir embora - ouvir Vivaldi ou Dirié, que ganhava mais. Em casa, mais tarde, li o resumo da ópera, e vi que o chavão que se desenhava era de fato o que aconteceria.

Era pouco mais de nove da noite. Cheguei ao Anhangabaú e resolvi ir até a República, para não ter que fazer baldeação. No meio do caminho, decidi dar uns giros por aquela região central de São Paulo, desta feita sem a companhia do Cássio, como sói acontecer. Decisão não digo sábia, mas a única a ser tomada, uma vez que me perdi e não achei – senão bem mais tarde – a praça da República:: São Paulo não é uma cidade racional.

Nas calçadas, sacos de lixo e pessoas se amontoavam – dali a pouco devia ser hora do lixeiro passar. Achei curioso, talvez pelo guarda-chuva pendurado no ombro, não sei, ninguém me ter me abordado para pedir dinheiro – quando caminho com o Cássio, mais ou menos na mesma hora, invariavelmente alguém nos pára, mesmo que tenhamos dado uma volta rápida. Passo por prédios ocupados pela FLM (Frente de Luta por Moradia). Passo por prédios desocupados, e que mereciam um fim mais nobre: não apenas serem ocupados, mas serem de fato resididos – por pessoas como as que militam no FLM, por exemplo, cujo interesse vai ao encontro do da cidade. Do outro lado da Av. São João, um grande grupo de moradores de rua: auto-proteção? pedra? sopa?

Reparo que se seguisse em frente, a avenida ermava, resolvo dobrar uma rua um pouco mais movimentada. Passo por um restaurante aparentemente chique – ao menos guardava um ar portenho –, e logo me deparo com o Largo do Arouche, ao menos com a placa – porque depois, vendo no mapa, noto que mal tangeciei o famigerado Largo. Me vêm à mente a música do Criolo, "Freguês da meia-noite": Em pleno Largo do Arouche, em frente ao Mercado das Flores, Há um restaurante francês. Não sei por quais quebradas me meto e logo estou frente a frente com o Elevado Costa e Silva – o Minhocão. Me sobe aquele medo na espinha, fodeu – talvez o nome daquele monstro citadino seja uma justa homenagem ao assassino que governou o Brasil de 1967 a 1969, deveriam fazer outras do gênero. Por qualquer mania que tenho, decido não voltar pelo mesmo caminho; viro à esquerda, e na segunda rua, vendo que há um grande número de transeuntes, entro nela, na esperança de dar com algum lugar conhecido. Pessoas malham numa academia, carros passam, travestis caminham para seus pontos. Dois mendigos conversam, sentados na sarjeta: quem tem medo de cagar não come. Olho para trás, tenho vontade de voltar e cumprimentá-lo pela frase, quem sabe até lhe dar um dinheiro – quanto custa um livro de auto-ajuda? Não o faço e me arrependo depois: quem tem medo de cagar não come, posso ter perdido alguma outra pérola do homem. Que não tivesse outra, essa valeu a noite. Depois de errar outra entrada, ao invés de entrar na Consolação, acabo na República. Só dali chego à Av. da Consolação.

Contorno a Praça Roosevelt e subo a Augusta. Um homem me chama, que tal tomar uma breja com a mulherada. Agradeço. Domingo, quando passei por lá, voltando da casa do Cássio, imaginei como não seria a tal mulherada, a se tomar como base as que estavam na porta. Nesse mesmo domingo, exatamente ao lado, por conta de um barzinho, uma grande aglomeração de adolescentes e jovens vestidos de preto. Duas belas garotas gargalham, e quase esbarram no mendigo que dorme ao seu lado.

Quinta é diferente, ou ao menos a hora ainda não é apropriada, não há jovens darks e emos ao lado do inferninho, e os mendigos ainda não se aconchegaram sob as marquises. Sigo em meu passo rápido – se tem uma coisa que sou paulistano de nascença é a velocidade de caminhar, principalmente se estou sozinho –, mas logo preciso parar: um mendigo pede dinheiro pra pinga para três jovens que descem em direção ao centro, e os quatro ocupam toda a calçada. Não lhe dão atenção, e eu passo assim que possível. Obrigado de qualquer forma, desculpa o incômodo. Parece que pedir dinheiro pra pinga é a moda entre pedintes. Me soa hipócrita: uma garrafa de pinga custa R$ 3,00, não precisam esmolar tanto se é pra beber. Mas esse o segredo para sobreviver numa sociedade hipócrita: diga o que querem ouvir que lhe darão dinheiro. Se disser que é pra comida, vão dizer que está mentindo, se for pra cigarro... melhor que beba, porque cigarro faz mal.

Passo por um rapaz que parece o Mário (não, não é uma piada para perguntar que Mário), duas vezes calouro meu na Unicamp. Qual enésimo curso terá ele começado (ou recomeçado) este ano? Num bar, um homem usa uma boina, que não controla a vasta cabeleira encaracolada, grisalha e desagruvinhada, metido numa espécie de manto colorido. Parece saído de algum filme B que passa à tarde, sobre vagabundos nas florestas da Inglaterra – faltou uma flauta. Lembro da discussão que tivera com o Cássio, há quatro dias, e me pergunto uma vez mais: quem não está fantasiado? Que não está encarnando uma persona na cidade? Num dos inferninhos mais acima, ao invés de mulheres semi-nuas, homens sem camisa e com salientes barrigas descarregam cerveja – e recordo questão que pusera ao Wlad, há um tempo: por que todo maitre de inferninho precisa lembrar o Ratinho?

Caminho um pouco mais e cruzo com outro homem que soa conhecido, esse lembrando algum ex-colega de escola, de Pato Branco – era o Norton ou o Pelicano? Um homem em roupas psicodélicas expõe seu artesanato na calçada, está com óculos escuros: enxerga alguma coisa com aqueles óculos à noite? O Cine-Unibanco ainda não terminou de ser fechado. Quase chegando na Paulista, reparo de canto de olho um rapaz que vem na direção contrária hesitar. Por fim, acaba me abordando, já quando estamos lado a lado. Amigo. Tarde demais, não diminuo o passo e finjo que não ouvi, concentrado que estou na minha futura crônica.

Desço a Haddock Lobo. Pela hora, não tenho esperanças de encontrar com nenhuma Flávia que lembre a Carla Bruni. E realmente não cruzo com ninguém. No barzinho da esquina de casa havia uma mocinha bonitinha, mas não se parecia com a Carla Bruni. Em casa estão o Hugo e o Gabriel.


São Paulo, 23 de fevereiro de 2012.

ps: ao entrar no sítio da FLM [www.portalflm.com.br], desconfio que o grupo que se ajeitava sob a marquise, do outro lado da Av. São João, devia estar em busca de auto-proteção, mesmo.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Política ou polícia: as tais “lições de democracia”, novamente na USP.

Neste domingo de carnaval, 19 de fevereiro de 2012, mais uma vez a Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo tomou a fresca da madrugada na Universidade de São Paulo [http://j.mp/yd0p10]. Chegou às cinco horas da manhã para desocupar meia dúzia de saletas que há quase dois anos eram ocupadas por estudantes que reivindicam aumento de vagas na moradia estudantil – o CRUSP –, distribuindo democraticamente violência, inclusive deixando sua marca em uma mulher grávida. Diz a polícia que apenas se utilizou da força necessária para se defender. Para uma polícia com longa lista de "mortes em conflito" e acusações de violações de direitos humanos, podemos deduzir que bala de borracha seja coisa leve.

Contrariamente à ocupação da reitoria, em novembro de 2011, não havia nenhum motivo que pudesse ser alegado “forte” para desocupação do prédio: o Moradia Retomada, definitivamente, não atrapalhava em nada as atividades burocráticas, administrativas ou pedagógicas da universidade. Não eram vagabundos, baderneiros, maconheiros, irresponsável, pelo contrário: conseguiam uma organização, e tinham um senso de responsabilidade – individual e coletivo – que a USP tem se mostrado falha em muitos aspectos. Mas a lei é a lei, dirão alguns, defensores da ordem e do progresso, ignorando que se a lei fosse a lei para sempre, a escravidão ainda estaria em vigência, e não teríamos tido FHC, Lula ou Dilma na condução do país, e sim Dom Luís Gastão Maria José Pio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orléans e Bragança e Wittelsbach – apesar que, com o pensamento político visceral que parece ser a regra hoje nestes tristes trópicos, muitos devem encarar esse futuro do pretérito como virtuoso.

Como no Brasil o que temos é um arremedo de segunda linha do programa Renda Básica Cidadã (ou Renda Mínima), vinculado ainda ao que (não) ganha uma pessoa, o auxílio estudantil se torna um imperativo não apenas do ponto de vista individual, como do próprio critério de excelência acadêmica: alguém preocupado com onde morar, ou morando precariamente, tende a ter dificuldades para se concentrar nos estudos. Inclusive nesses ranqueamentos que mídia e academia de país subdesenvolvido adoram, índice de desistência do curso é algo levado em conta.

Não é demais repetir, entretanto, que a universidade pública brasileira – as paulistas acima de tudo – é feita pela elite e para a elite, para a perpetuação da elite. Os órgãos de assistência à ciência, idem. Pretendo tratar em mais detalhes deste assunto em crônica posterior.

Na semana anterior foi noticiado parceria entre USP e SPTrans, para que haja um circular que faça o trajeto USP-Estação Butantã do metrô gratuitamente para alunos e funcionários. Primeiro aspecto a ser lembrado: originalmente deveria haver uma estação de metrô dentro do campus, ela não existe porque a universidade vetou – não imaginemos que seja um disparate de uma burguesia burra e preconceituosa as reações contra as estações em Higienópolis ou no Morumbi. Segundo ponto: já que a estação fica fora do campus e haverá uma linha que fará a ligação direta entre esses dois pontos, por que não estender a gratuidade a todos os que desejam ir até a USP, seja para pesquisar, para usar a biblioteca, para vender artesanato, para catar latinhas, para passear, para ir ao MAC? No que custará a mais para USP ou SPTrans cinqüenta pessoas ao invés de dez num ônibus? Contudo, sabe-se bem quanto custará a mais para essas pessoas. Isso para não falar no aspecto simbólico: apesar de não ser inibidor dessas pessoas sem direito legal ao templo sagrado do conhecimento freqüentarem-no, ter que pagar a integração com o ônibus, ou mesmo fazer uma caminhada de vinte minutos para chegar à USP, serve para deixar claro que não são bem vindas. Lugar de povo é na cidade; na USP, acadêmicos e pessoas em seus carros, em trânsito para os bairros nobres que a cercam.

Volto à questão inicial, a nova ação do Choque na USP. Ou melhor: a nova ação do Choque em ação de contestação política. Já é assustador notar que se trata de política deliberada – política de governo – do PSDB paulista massacrar (não, o termo massacre não é pesado) qualquer contestação política e social que não seja feita nas instâncias “apropriadas”: via representantes nas casas legislativas – nas quais, diante das manobras e dos acordos entre cavalheiros que ocorrem a rodo, contestações ou são abafadas, ou são risíveis. Ainda mais aterrador é esse padrão se repetir com tamanha naturalidade na USP, teoricamente centro de excelência da ciência e do pensamento tupiniquim. Apesar de não ser o reitor mais votado – Serra escolheu o segundo na lista tríplice –, Rodas recebeu votos: possuía apoio, portanto, quando assumiu o cargo. E ainda que seu apoio seja precário – e ele e seu grupo o administra muito mal –, houve poucas manifestações contundentes e em peso dos seus pares – professores da USP – pelas atitudes que vem tomando – desmandos que vão bem além da questão da ação policial.

Não se pode chamar Rodas de fascista, simplesmente – até porque o fascismo é um fenômeno político bem delimitado na história –, mas as semelhanças que ele guarda com o movimento do início do século são evidentes, e coadunam com a idéia de universidade defendida pela elite ilustrada e pela Grande Imprensa: o tecnocratismo levado ao extremo da negação radical da política – via perseguições internas ou via polícia. A passividade dos professores apenas reforça essa impressão. Não se trata aqui de encampar o tosco discurso “quem defende a universidade não deve ser punido”, afinal, não há um absoluto do que seja a defesa da universidade, mas saber que dissenção é parte da política e da ciência – goste-se ou não, ambas estão fortemente vinculadas. Assumir o debate e a negociação – que não devem ser confundidos, o primeiro com o é assim, entendeu?, a segunda com você faz do meu jeito e estamos todos bem – é fator vital para o crescimento da própria universidade, e até, quem sabe, para uma futura inserção de fato desta na vida quotidiana do país – inserção essa, espero, que não seja para calcular o gás mais agressivo sem ser letal, se é que ser letal de vez em quando não caia bem, a depender sobre quem.


São Paulo, 20 de fevereiro de 2012.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Sta. Cecília - Luz - Liberdade - Paulista

Combinei de encontrar um desconhecido às 13h na estação Santa Cecília. Ele vinha de Barão e tinha um presente que uma amiga me dera: babosa – desde que a Anvisa proibiu a comercialização de derivados da planta, anda difícil achar o concentrado que tomava, e o último que encontrei estava com ágio de 50%. Me entregou o pacote e fomos a um restaurante ali perto, almoçar e conversar um pouco – brasilianista, faz doutorado e é professor (no sentido português do termo) na Universidade de Nova Iorque. Conversamos sobre São Paulo, viagens e algumas questões acadêmicas, políticas, marxistas – ele conhece meu orientador da monografia.

De lá fui à Pinacoteca do Estado, onde vi as exposições de Eliseu Visconti, Joaquín Torres Garcia e “Percursos e Afetos – Fotografias, 1928/2011” – a única que realmente me interessou, em especial as fotos do fotógrafo Boris Kossoy –, além do trabalho Mausoléu, de Carlos Bunga, que me trouxe algumas reflexões.

Da Pinacoteca, aproveito o ensejo para saciar minha índole consumista, e dou um passeio pela famigerada região da Luz, em busca de um fone e uma extensão para ele, na Santa Ifigênia. Antes, uma rápida volta pelo Parque da Luz, que eu nunca tinha ido – me lembrou o passeio público, em Curitiba, mas não tão bem cuidado.

Cruzo a Estação da Luz, o piano, como sempre, sendo tocado, com uma pequena platéia em volta – não páro, e de passagem não consigo identificar o que está sendo tocado. Do outro lado, noto menos mendigos à porta da estação - mas seguem lá. Enquanto transito pela região, não tem como não lembrar do polêmico projeto da Nova Luz e seus últimos desdobramentos: a política higienista para limpar a área dos nóia e do populacho, para deixar o terreno livre à especulação imobiliária. Dizem que se trata de "revitalizar". Realmente, há locais ermos e mortos, mas em uma boa parte possui vida – e muita – pulsando nas ruas. Passeio pelas galerias da av. Santa Ifigênia, em busca dos tais fones, mas pensando que eu bem poderia ter dinheiro pra comprar umas câmeras de segurança pra fazer o filmete que uma vez tive idéia – a câmera de segurança apenas pela questão estética. Noto que se coço a barbicha ao entrar nos locais me abordam com mais freqüência: abandono o expediente. No caminho, uma senhora trova um policial militar, que a trata de uma maneira bem diferente da imagem que a PM paulista tem conseguido passar – conversam sobre o Big Brother, se bem entendi. Na loja onde vou comprar o fone, a mulher conversa sobre seus planos de fazer lipo e pôr silicone – com o médico da Mulher Samambaia, sabe. Comenta que já teve dois filhos, agora pode se dedicar a isso. Seu interlocutor diz que tem um contato melhor, que ao invés de 16 faz tudo por 12 mil, e ainda parcela em seis vezes.

Saio da Santa Ifigênia, pela Av. Ipiranga chego à São João. Ali páro pra tomar um mate e descubro onde comprar erva-mate argentina – a um preço nada argentino. Não compro porque acredito ainda ter um pacote na casa dos meus pais. 

Meio perdido de onde estou – sei que em algum canto eu devo dar na Consolação, que vai dar na casa do Cássio –, decido tentar chegar à Sé, como sempre. Sigo em frente e me deparo com a Galeria Olido, ao lado a Galeria do Rock, que uma vez entrei e nunca mais achei. Desta vez não acho a camisa do Paraná Clube a preço interessante, mas descubro que ela fica bem mais perto da Sé do que eu imaginava – e saio de lá desconfiado de que da próxima vez vou ter dificuldade em encontrá-la de novo, se não pesquisar no mapa antes.

Já no centrão de São Paulo, me vem aquele espanto de sempre: como a cidade é bonita! Ao menos enquanto tem gente – e acho que é isso que faz a beleza de São Paulo –, pois a vez que passei ali já depois do expediente, soava quase uma cidade deserta, não era bonita. Decido ir até o Patéo do Colégio – nunca passara por lá. No caminho, uma pedinte, já com mais de sessenta anos, cabelos brancos, me chama atenção pela beleza e garbosidade. Atrás da Sé, enquanto espero o sinal pra pedestre abrir, um homem berra num megafone que foi roubado pelo Bradesco, isso pode acontecer com você também. Uma prostituta compra café de um vendedor ambulante de bolos e afins.

Na Liberdade, entre a Galvão Bueno e a São Joaquim, uma mocinha, seus dezessete, dezoito anos me abora, está vendendo canetas. Já a imagino voluntária de alguma instituição de recuperação de drogados. Na verdade é voluntária do CAIC – não, não se trata da escola inspirada nos CIEPS da dupla Brizola-Darcy Ribeiro, e sim de uma instituição que quer salvar os valores da família. Não, obrigado, não concordo com os valores da família – lembrei da minha babosa na hora: será que em breve serei eu um novo drogado a atentar contra os valores da família e da sociedade? Quer dizer que não concorda com os valores normais? Então tá, e já se vira para oferecer caneta a outro passante – me arrependo de ter sido tão breve, poderia ter enrolado um pouco mais a moça, só para deixá-la em contradição.

Passo pelo Centro Cultural São Paulo, ver a programação. Na entrada, um homem me lembra o Hugo, que mora comigo, mas um pouco mais maduro – na casa dos seus trinta anos. Descubro a parte de teatro que está fechada para reforma. Presencio a cena de um senhor em “roupas de aposentado”, que dava pinta de morar pela região do Paraíso, Aclimação, jogando xadrez com um hippie – um fazedor/vendedor ambulante de artesanato.

Atravesso a ponte da 23 de março. Pouco à frente, rio com um namorado que beijava insistentemente sua garota, e dá uma pequena pausa, apenas para ver se não vai trombar em poste algum e se depara com uma loira bronzeadíssima, de belas formas que andava na minha frente, e não consegue disfarçar a olhada. Antes de voltar aos beijos insistentes na namorada, ainda a observa de rabo de olho. Espero o sinal abrir para atravessar a rua e chegar, finalmente, à Paulista. Dali escuto de algum canto sinos badalando as dezoito horas. Uma madame, num carrão, acompanhada de um homem e um cachorrinho, resolve não esperar pelo próximo sinal e pára em cima da faixa de pedestre. Me dou conta de que só corro perigo se a mulher estiver disposta a sacrificar seu carro, não acredito na hipótese, e enquanto serpenteio pelo carro pra atravessar a rua, singelamente a cumprimento com o dedo médio – tomo apenas cuidado para ver se não vai mesmo jogar o carro pra cima de mim, não presto atenção em nada mais dela: uma boa desfeita deve ser feita sem se preocupar com a reação. 
 
Atravesso a Paulista quase inteira, desço a Haddock Lobo, cruzo com algumas mulheres bonitas no caminho, nenhuma parecida com a Carla Bruni.

São Paulo, 15 de fevereiro de 2012.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Da USP à Paulista

Um amigo meu, o Wlad – que é também meu editor, diga-se de passagem e sem propósito outro que disfarçadamente dizer que em breve lançarei um livro –, pediu pra dormir aqui em casa: tinha reunião de serviço e depois iria para uma festa na FAU-USP. Me chamou pra ir junto (à festa), o que aceitei sem muito titubear – até porque era recepção aos ingressantes, e eu poderia conferir in loco o que estava perdendo, por ter ido, como sempre, mal na prova de aptidão.

Não chegou a ser uma “festa estranha com gente esquisita”, como o Festival de Apartamento, ao qual eu fora – o Wlad também – no final de semana, em Campinas. Na verdade, estava uma festa universitária banal, com o diferencial de que tocava uma banda ruim e havia alguns cartazes, fora Rodas, fora PM, GREVE! A outra diferença, mais marcante, foi não trombar com ninguém conhecido lá – o Wlad ainda encontrou dois, que estavam trabalhando no bar. Uma sensação estranha, que a mim incomodava, e o Wlad tentava encarar com a receptividade dos velhos tempos. Tentava, mas não conseguiu. Nem duas horas depois de chegarmos, tomávamos o caminho de volta: que tal flanar pela Paulista e Augusta, convidou-me. Convite que aceitei de pronto.

Descemos na estação Consolação. Na plataforma de embarque, uma mulher na casa dos seus trinta e poucos, muito elegante – de uma elegância que lhe assentava muito bem – passou por nós. Não havíamos sequer saído da estação quando cruzamos com duas gurias bonitas. Na rua, mal adentramos a Augusta, um mendigo anunciava, Acabou o show, agora é hora d'eu ir catar lixo. No caminho, um rapaz, acompanhado de mais dois, nos abordou pedindo dinheiro pra pinga – não vou mentir que é pra comer. Demos, por conta até da inferioridade numérica – apesar do tom não ter sido ameaçador. Mal passaram por nós, dois PMs atravessaram a rua em direção a eles – e de outros dois que estavam na mesma calçada que nós. Fodeu, lá vem truculência, pensei. Os três seguiram seu caminho sem titubear e a polícia não os incomodou. Eu, em compensação, não tive como não deixar escapar um puta, que medo!, diante de uma metralhadora que um policial entregava a outro. Que ignorância, comentou meu companheiro de passeio, pouco depois. Uma breve pausa num bar, gol!, onde assistimos ao segundo tento do Palmeiras. Prosseguimos. Mais à frente questionei: as pessoas que faziam ponto ali, eram mulheres ou travestis. Dúvida compartilhada pelo Wlad.

No caminho de volta para a Paulista, uma prostituta nos avisou que a Augusta termina naquela esquina. Também nos contou que fazia direito e que queria ser promotora: nada é pro curto prazo, é preciso ser persistente. Mais pedintes – esses sozinhos –, pessoas se apertando nas áreas para fumantes dos barzinhos, três baianos – a acreditar no sotaque e na camisa de um deles – nos pararam para pedir informação, aqui ainda é a Augusta, uma garota que esperava o ônibus, e do outro lado da rua um rapaz munido de guitarra e amplificador tocava um pop-rock romântico qualquer – tenho a impressão de que não daria certo, a moça estava suficientemente irritada ao celular, e alguém pra atrapalhá-la era tudo o que ela não devia querer.

Na Paulista, um mendigo dormindo não com o cofrinho, mas com a bunda exposta. Sob o vão do MASP, dois carros da PM estacionados; próximo a eles, num canto, um homem vendia artesanatos. Se punha ao lado dos seus produtos, peito estufado, como orgulhoso da sua mercadoria. Questionei ao Wlad expunha, vendia a quem, se praticamente ninguém passava lá àquela hora. E não seria louco de vender drogas na cara da polícia, se acaso aquilo fosse só um disfarce – não parecia. No meio do caminho, o Wlad ainda encontrou um conhecido da cidade dele, que interrompeu sua manobra de skate para convidá-lo para uma festa do vinil em Socorro. Cola lá, leva as bolachas!

Passamos no mercado e voltamos para a Augusta – agora mais movimentada –, comer um pedaço de pizza. Diante da frieza da rede de fast-food, nos animamos mais com uma “pizza de padoca” de um bar. Um homem ainda não bêbado, mas já suficientemente chato, insistia que a cerveja estava quente: molha e põe no freezer, junto com aquela que você vai beber depois. Ali terminamos com poucas palavras a última conversa que vínhamos tendo, sobre questões existenciais e afetivo-existenciais.

No caminho de casa, na parte de auto-atendimento de uma agência do Itaú, três mendigos dormiam o sono dos justos (zelado pelo vigia do banco?). Na FAU, a festa era prometida até às cinco.


São Paulo, 09 de fevereiro de 2012.