segunda-feira, 19 de março de 2012

Elevador exclusivo

Hoje fui com meu irmão dar uma volta, apresentá-lo a São Paulo – ao mesmo tempo que ele aproveitava para me apresentá-la um pouco mais. Até sábado, quando chegou, o que meu irmão conhecia da cidade se resumia a ir de metrô do terminal rodoviário do Tietê até o da Barra Funda.

Chegou na hora que eu recebia a visita de alguns grandes amigos. Quando se foram, levei-o pra dar uma olhada no que é a Rua Augusta num sábado à noite – sem podermos nos demorar muito, pois ele tinha compromisso no dia seguinte, mas o suficiente para que o impressionasse o a fauna, a balbúrdia, o tanto de gente na rua.

Segunda-feira, com praticamente todos os museus fechados, restringimos nossa visita a um rolê pelo centrão de São Paulo: Mosteiro São Bento, Sé, Edifício Banespa, Largo São Francisco. A catedral da Sé, eu havia entrado pela última vez há uns sete anos. Lamentei que o quiosque que vende souvenir não vendesse café expresso, achei o lugar aconchegante, agradável – bem diferente do escuro, pesado e sádico Mosteiro São Bento, que eu ainda não conhecia. Tampouco conhecia o edifício Banespa e seu mirante – e as duas horas por cinco minutos de vista, tanto eu quanto meu irmão ficamos em dúvida se valeram a pena. O Largo São Francisco eu conhecia, mas nunca havia entrado na Faculdade de Direito.

O prédio, da década de 1930, projetado pelo sucessor de Ramos de Azevedo (responsável pelo Teatro Municipal, por exemplo), Ricardo Severo, é imponente e seu interior transmite muito bem essa imponência, como se anunciasse já em sua arquitetura: daqui sai a elite da elite tupiniquim, desde os tempos do Rei – louvada seja a Faculdade de Direito.

Os tempos eram outros, de um Brasil antigo, quase uma mera continuação do Brasil Colônia, e essa afirmação de superioridade de classe era natural e bem-vista. Diz o texto da faculdade, sobre o edifício: “representou a própria criação do estilo neocolonial, que agregava à moderna arquitetura, elementos do barroco luso-brasileiro, evocando a tradição cultural do país e do velho convento” – ocultou que a tal tradição cultural evocada passa também pelos seus aspectos sociológicos. E é essa tradição que segue presente para além da arquitetura, já neste Brasil Moderno, de modernização sempre conservadora, meio a la Lenin, com um passo para trás – mas não necessariamente para dar dois adiante.

Nossa visita à faculdade começou com a ingenuidade do meu irmão: foi entrando na biblioteca, para conhecê-la, como se público para a USP fosse sinônimo de algo destinado ao público e não a um certo, bem delimitado e selecionado público. O guarda, muito gentil, nos informou que precisávamos pegar uma autorização no prédio principal. No tal prédio, foi meu irmão quem chamou a atenção para os elevadores de uso exclusivo dos “senhores professores”. Pior: não bastasse essa distinção, os elevadores exclusivos para os senhores professores possuem ascensoristas. Sim, um funcionário que passa o dia sentado, esperando por esse ser superior – o Professor Doutor – entrar e dizer: segundo, e após um minuto, se tanto, anunciar, cabeça baixa, segundo andar. Ao mesmo tempo, toda essa pompa é incapaz de atentar para a manutenção do prédio, que tinha o teto e paredes descascando – mas era no terceiro andar, talvez por isso pudesse deixar passar: importante é o hall de entrada, a sala de visitas ser chique.

Ao chegar em casa, antes de escrever esta crônica, abro o Facebook. Uma amiga – que não estudou na “Sanfran”, mas na Unicamp, que também tem como meta (primeira, mas velada) garantir a distinção de classe – compartilhou uma tirinha falando das agruras dos pobres (ex) pós-graduandos de universidade pública, incapazes de conseguir um emprego à altura do que merecem – como acontece desde o trote, apelando ao tradicional escárnio da nossa elite intelectual (!?) para com quem não teve o mesmo berço ou a mesma sorte.

Com isso, fiquei na dúvida: melhor o escárnio pós-moderno – bem humorado (?) –, ou se prender às velhas formas de distinção. A segunda parece saber conciliar nossa tradição cultural com a modernidade que aspiramos e fingimos ter alcançado – e isso seria o Brasil democrático: toda doméstica tem direito a usar o elevador de serviço (não precisa subir pelas escadas). A primeira, ilustrada, não apenas acredita, como comprova cientificamente que alcançamos tal modernidade – nosso atraso se deve exclusivamente a uma elite (não ela, claro) perversa, e às domésticas, que insistem em preferir o elevador de serviço.


São Paulo, 19 de março de 2012.

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