quinta-feira, 26 de abril de 2012

Um casal adolescente na minha frente

Tenho variado meus locais de estudo em São Paulo entre minha casa, a PUC e o Centro Cultural São Paulo (CCSP). Se na PUC há basicamente universitários, no CCSP, há uma considerável variedade de tipos: universitários, estudantes do ensino médio e cursinho, concurseiros, gente sem vínculo oficial com o ensino, e sei lá quais outras possibilidades.

Hoje – agora – havia vindo no CCSP almoçar e decidi estudar no próprio restaurante. Há um pouco de conversa, mas isso é uma constante do lugar – o que torna impossível concentração para estudar Hegel, por exemplo, e moda usar protetor auricular. Na minha frente, um casal, apostilas de cursinho ou ensino médio a acompanhá-los. Já havia notado uma vez o rapaz: outro dia dera uma mini-aula de física, de quase meia hora, a um amigo, em um local onde geralmente faz-se um pouco mais de silêncio. A mocinha, ainda não a notara, apesar que havia belos motivos para isso – bonita, belos olhos, bochechudinha, enfim.

Quando me sentei para almoçar – isso umas três da tarde –, discutiam o que estudar – decidiram por geopolítica, se não me engano. Seguiram um tempo lado a lado, cada um com sua caneta grifa texto, até que ela se apoiou em seu ombro, para estudar mais confortavelmente. Tão confortável que logo dormiu. Ou talvez nem tanto, porque não demorou para se debruçar sobre a mesa e dormir mais agradavelmente. Ele seguia a mudar as páginas e fazer correr a caneta por elas. A mocinha acordou depois de um tempo, e sem ter estudado muito, quando olhei para eles novamente, estava o namorado a explicar-lhe não sei bem o que.

Fiquei pensando. Tinham seus dezessete anos, mais ou menos, e o futuro em aberto, amplo, farto – assustador, se se parar para pensar. Em um ano ele poderia estar cursando o curso que queria, na melhor universidade do país, em São Paulo, mesmo; enquanto ela teria de decidir entre um curso que não lhe apetecia, só para seguir morando em Sampa, ou aceitar entrar no curso que era sua segunda opção, a oito horas da casa dos pais e do namorado. Em dez anos, ela poderia ser uma mulher bem-sucedida, uma carreira de sucesso e um futuro promissor dentro dela, engolindo a vida ao fim do dia, junto com dois comprimidos, para afogar qualquer pensamento acerca do caminho que trilhara. Ele poderia se descobrir em algo absolutamente inesperado e diferente e, a despeito da pressão dos pais por ganhar dinheiro ou deixar de ser “vagabundo”, se sentir feliz diante de tudo o que poderia ser e abandonou.

Tinham o devir em aberto, com ampla gama de opções – até pela condição social. Deviam ter suas angústias. Certamente as teriam – passarei, não passarei, onde, no que, terei sucesso –, mas pareciam estar presentes o suficiente para saber desfrutar do agora – por mais que fossem chatas apostilas ao lado do companheiro –, alheios a possibilidades – futuras ou passadas.

É claro que me projetava neles, em boa medida. Daqui um mês estarei começando uma faculdade que é minha segunda opção, porque não consegui passar na FAU-USP. Daqui um ano é esperado que eu já tenha defendido meu mestrado, e que já esteja preparando o projeto de doutorado. Mas vejo diante de mim um futuro amplo, talvez mais vasto do que via quando tinha dezessete anos. Ao mesmo tempo, sinto que algo precioso do agora se me escapa, escorrendo em possibilidades pretéritas que tornam o desabrochar do presente abrupto, em solavancos, carente da leveza necessária.

Quando estava prestes a terminar de escrever esta crônica, explicação do namorado já encerrada, a garota troca de apostila e boceja. A invejo por se permitir um quê de preguiça em plena quinta-feira, como quem não sente que tem tempo perdido para recuperar.

São Paulo, 26 de abril de 2012.

1 comentário:

Só eu vi disse...

Borges prendeu um sábio numa cela ao lado de um tigre, perpetuamente ('A escrita do deus' - O Aleph). O sábio tentava desvendar certo mistério divino enquanto aguardava a morte. Desconfiou que as linhas no pelo do tigre fossem a escrita que deus usou para redigir seu mistério. Uma mesma realidade imutável então se abriu farta de possibilidades, como se o sábio pudesse andar por onde quisesse no mundo.