quinta-feira, 31 de maio de 2012

Da alegria de voltar a bandejar

Tendo as aulas na UFABC começado, finalmente, pude voltar a bandejar – atividade que não realizava desde janeiro, quando me desliguei da Unicamp. Além de bandejar ter seus interesses sociais – que seja ver o movimento –, há, é claro, a questão financeira, a enorme economia que representa. Em uma semana de bandejão na UFABC gasto o equivalente a um almoço nas quebradas em que vinha almoçando um P.F. (se não ia a um por quilo, onde gastava mais). É certo, eu poderia ter economizado nesses quatro meses de São Paulo-sem-bandejão cozinhando em casa. Porém, além da preguiça e da atual falta de inspiração culinária, o fogão de casa é um tanto paciente – ou ao menos exige paciência -, levando, por exemplo, mais de cinco minutos para preparar um café expresso.

Retomando minha alegria acadêmica do voltar bandejar. Depois de meia hora na fila, sob o sol do meio-dia, para pôr créditos no cartão, adentro esse mítico local – que desconheço em suas particularidades. No cardápio, estrogonofe. Me recordo do bandejão da USP-Ribeirão, onde tal prato era a iguaria máxima, motivo para festa. Na Unicamp a festa – e que festa! – ficava por conta da feijoada – e que feijoada!

Unicamp
Ainda sem me enturmar, almoço sozinho – o que fazia também na Unicamp, apesar de bem enturmado por lá. O bandejão da UFABC dá a impressão de ainda ser provisório – ainda que um provisório caprichado, feito para provisoriar por longo tempo. Decepcionante mesmo que a bandeja não serve para pôr a comida, mas sustentar o prato, talheres e etecéteras. Como a entrada não se dá num nível superior, como na Unicamp, para as pessoas saírem a la “Another brick in the wall”, só que com bandejas, e não dominós (esses temos que ter já colado ao rosto para conseguir entrar na universidade), não há o interessante passatempo de almoçar vendo quem está entrando – quem sabe futuras Ruths ou paixões platônicas (Karinas, Carines... ao que tudo indica sou alguém que não gosta de grandes variações nominais). A comida não é ruim, mas o estrogonofe, cheio de gordura, deixa a desejar. Penso na economia que estou tendo, no rito mítico de bandejar, e engulo.

Na saída, ouço dois alunos comentarem: hoje o estrogonofe estava bom, que milagre! Vejo se não estão tirando sarro, não parece. Então digo a mim mesmo: é uma questão de adaptar o paladar! É só adaptar o paladar!


Santo André, 31 de maio de 2012.

ps: quando fui pela segunda vez ao bandejão, o que no da Unicamp é lenda acadêmica (aparece no cardápio mas nunca na bandeja), na UFABC é realidade: lasanha de beringela.

domingo, 27 de maio de 2012

As greves políticas e as greves justas.

Venho cá chutar cachorro morto e chover no molhado: é o que se faz quando se fala da imprensa nacional. Salvo os detalhes do momento, o que se tem é um movimento regular, contínuo, bem estruturado da mídia contra um partido que ela ainda vê como esquerda demi-comunista – isso vale tanto para o protofascismo de Veja quanto para o partidarismo não-assumido mas evidente de Folha.

O assunto desta semana foi greve.

Há várias na principal cidade do interior do Estado, talvez os leitores de Folha não saibam: Campinas, além das crises sobre quem ocupará a cadeira de prefeito na semana seguinte, vive caos na saúde, já há muito é um zero na cultura, teve há pouco greve no transporte que se serve do público, e segue com boa parte dos servidores públicos em greve. É onde fica a Unicamp, uma das principais universidades do Estado e do país, talvez perdendo só para a USP.

Vamos para a capital, onde as coisas acontecem, dizem. Onde oito milhões de almas são tidas como decisivas para o futuro dos dois principais partidos do país – em contrapartida, os dois principais partidos do país pouco se mostram interessados no futuro da cidade.

Na quarta, tivemos uma “greve política” do metrô, conforme editorial da Folha (“Greve contra São Paulo”, 24/05/12). Adoro quando falam em “greves políticas”! De uma redundância maior que subir pra cima, tão esclarecedor quanto dizer que a cor vermelha é vermelha, que a água é molhada, que o sol é quente, e assim vai. O dia que me apresentarem uma greve apolítica – até a das mulheres de Atenas foi política –, farei questão de aderir. Até lá, terei de suportar um jornal que se diz a serviço o Brasil utilizar política como sinônimo direto de coisa ruim. Porém, pior do que falar em “greve política”, só os argumentos do editorial.

Primeiro, conforme a Folha, quem recebe salário acima da média brasileira não deve reclamar (se fosse acima do PIB per capta do Qatar, cerca de US$ 90 mil, eu até poderia concordar). Fica a dúvida porque quem recebe estímulos estatais bem superiores aos dos milhões de miseráveis do Bolsa-Família teria o direito: se a Folha pretende ser tão independente como apregoa, que comece recusando todo patrocínio de governos, empresas estatais ou que tenham ligação com o Estado.

Segundo: a determinação da justiça de 100% de funcionamento do sistema no horário de pico. Há alguma coisa errada numa no conceito de “greve” quando todo mundo é obrigado a seguir trabalhando. Contudo, a novalíngua da Folha não vê nenhuma contradição nisso: deve o jornal, então, reivindicar a mudança do artigo nos dicionários, que insistem em dizer que greve é “cessação voluntária e coletiva do trabalho”, a justiça do trabalho, de fato, rejeitou a possibilidade de greve – tenha tido razão ou não, é outra história. É fácil defender o direito de greve quando greve não implica em nenhuma mudança da rotina, em nenhum custo aos patrões.

Terceiro: Folha ignora que os metroviários fizeram uma contraproposta a essa estapafúrdia decisão da justiça: 100% dos funcionários trabalhando, mas com as catracas liberadas. O governo recusou, ameaçou usar a força policial contra os grevistas, caso isso ocorresse. Fica a dúvida: quem trabalhou para prejudicar os usuários foram os trabalhadores ou o governador Alckmin?

Outra greve são as das universidades federais. Essas, para Folha, não são políticas – logo, há de se acreditar que sejam justas. A acreditar que a Folha não use dois pesos, duas medidas, um professor universitário ganha menos do que um motorista de ônibus, assim sendo, tem direito a fazer greve – se não for, hora de chamar a polícia para pôr ordem (fiquei esperando um editorial e não veio).

Ao invés de apresentar um panorama com os pontos positivos e negativos das IFES – como fez um outro jornal do grupo, dedicado à elite e não à classe média inculta, que sequer sabe quem foi Hegel (ao menos assim pensa a Folha de seus leitores) –, o jornal se centra na Unifesp, que, pelo que dá a entender a reportagem, seria uma das piores universidades do país, sem qualquer infra-estrutura. Pior: se centra na Unifesp de Guarulhos, ignorando os outros sete campi. Por que será? Se a infra-estrutura do campus de Guarulhos é realmente péssima – se é que não soa ridículo falar em infra-estrutura para o campus de Guarulhos –, o mesmo não se pode falar do de Diadema, para ficarmos num exemplo de campus novo. Neste campus, o problema está na assistência estudantil, como ausência de bandejão, e não na qualidade dos prédios e laboratórios – equipados com o que há de melhor, conforme me disse um amigo que estuda lá (e é do comitê de greve).

Os motivos de não terem ido ver as condições da UFAM, UFCG ou de outra federal perdida nos rincões do Brasil, e ter se fixado no pior campus de uma que está praticamente na capital paulistana tem motivo bem evidente: atingir Fernando Haddad, atual ministro da educação e pré-candidato petista à prefeitura de São Paulo. Faltou só eles falarem “se Haddad não é capaz de dar condições a uma universidade, o que dizer a uma cidade?” Quer dizer, do jeito que vai, logo eles falarão isso – só o Haddad sair dos 3%.

O relativismo da Folha é aviltante a qualquer pessoa que não coadune com a burrice e a má-fé; de qualquer forma, sinaliza do que se pode esperar para as eleições municipais.

São Paulo, 27 de maio de 2012.

sábado, 26 de maio de 2012

Santa Ifigênia à noite.

Sábado passado fui assistir à Osesp, na sala São Paulo. Depois, resolvi aproveitar a deixa para passear pela região da Santa Ifigênia à noite – início da noite, é certo, mas deserticamente desestimulante para andar despreocupadamente. O passeio durou umas duas horas, tendo começado umas seis e meia. Aos que não conhecem bem São Paulo, a região da Luz, da Santa Ifigênia, costuma ser mais conhecida por Cracolândia – andou passando por uma certa higienização social, mas ainda faz jus ao nome.

Saio da Sala São Paulo, na estação Julio Prestes, já noite escura. Ainda que tivesse me organizado para subir a Duque de Caxias, me perco, não sei como, e acabo na rua do Triunfo – daí a decisão de levar a cabo o que até então era apenas plano, o do passeio pela região. Não vou saber por quais ruas deambulei, sei que tratei logo de achar a Avenida Rio Branco. Já havia circulado algumas vezes por essa região – famosa pelos eletrônicos –, porém sempre em momentos de movimento e de dia – salvo a primeira, quando ainda não morava em São Paulo, que saí da Estação Pinacoteca e meio que me perdi por ali, no início da noite.

Tenho plena consciência que não é um lugar muito tranqüilo, e sei que pessoas de boa família ou que aspiram a ser bons intelectuais ou acadêmicos brasileiros não deveriam dar esse tipo de rolê, em meio ao povo, sempre perigoso e sujo, ainda mais quando se trata da escória da escória. Desprezo essa brasilidade da nossa academia, e torço para que nada me aconteça.

Próximo a uma delegacia de polícia, vejo dois homens que aparentemente perseguem uma mulher. Ao mesmo tempo que parece assustada, a mulher ri – como se estivessem brincando de pega-pega. Defronte a delegacia, duas mulheres observam a cena. Ok, se está acontecendo algo fora dos padrões de sociabilidade aceitos ali, as mulheres tomarão alguma atitude, penso, e prefiro não olhar para trás. Noto que destôo um pouco dos habitantes do local, e resolvo usar o capuz do moletom que uso – ainda que isso me faça passar a ter medo da polícia, aliviado um pouco pelo bilhete da orquestra, para o caso de uma abordagem o que você está fazendo aqui, playboy? Numa rua escura, atravesso ao avistar à minha frente um grupo de pessoas encostadas no muro. Na hora penso se não é preconceito da minha parte, desviar das pessoas só porque estão em grupo. Sigo caminhando, observando a paisagem urbana – prédios, nóias, imigrantes, samba nos bares, ruas repentinamente desertas, repentinamente povoadas e agitadas. Na rua Conselheiro Nébias resolvo não atravessar ao ver um grupo sob uma marquise. Sou nóia, mas sou sangue bão, diz a mulher a dois homens que estão com ela. Não sei de onde surge, mas noto um homem caminhando à minha frente: anda com um braço flexionado, o pulso fechado, um sorriso estranho no rosto. Aponta repetidamente para o braço. Finjo que não é comigo, sigo meu caminho, ele na minha frente. Uma hora ele fecha o sorriso, se volta e vem na minha direção, pronto pra desferir um golpe. Não chega a finalizar o ato, não sei como me desvencilho, estou já na sua frente. Ele aponta para um carro da polícia, na esquina atravessando a rua, desconfio que foi por isso a tentativa de agressão. Estou na minha, vou virar aqui, mano, e dobro a esquina para a praça Júlio de Mesquita. Olho para trás, ele corre atrás de mim. Não penso duas vezes e faço bom uso das pernas que herdei. Me sinto um cachorro escorraçado. Duas vezes. Talvez seja assim que ele também se sinta, e apenas esteja marcando território.

Mesmo com as pernas bambas e o coração funcionando aceleradamente pelo susto, resolvo prosseguir meu passeio. Depois de algumas voltas a esmo, passo ao lado da praça da República e entro na rua do Arouche. Nesta região, que passei já algumas outras vezes, inclusive em horários mais tardios, volto a ter mais medo da polícia do que dos seus usuários.

Me avisaram que o Largo do Arouche é ponto de prostituição masculina. Um conhecido – acadêmico – me disse que da vez que passou ali viu dois michês brigando por ponto, todos ensanguentados. De minha parte, nunca vi nada anormal para o local – e com as três vezes desse sábado, já foram uns cinco vezes que passei pelo Largo. Me pergunto se ele teve “sorte” de passar ali justo quando acontecia uma briga dessas, ou se foi seu preconceito que permitiu ver muito além do que acontecia – talvez, se muito, fosse uma discussão pelo ponto. Passo por um grupo de três rapazes, inocentemente achando que só estão ali parados. Logo a atrás de mim vem um homem, mais velho. Vamos transar gostoso, perguntam ao homem. Descubro que não é só no Largo que rola a prostituição. Na esquina seguinte, um rapaz e duas mulheres – uma das quais desconfiei que fosse travesti – entregam um panfleto a um michê. Fico curioso em saber do que se trata, mas não peço um. Quando passo por eles, ouço uma parte da conversa. Se a gente não fosse tão conhecido depois da praça da República, dava pra ir pra lá. Como não guardo nenhuma visão idílica de pessoas de vida sofrida, não creio que sejam anjos dotados de sexo, fico me questionando conhecidos por quem, por o que? Disputa de ponto, faxina social, marcados pela polícia por conta de uma eventual ficha policial, grupo de extermínio? Há o dito que se não há deus, tudo é permitido. Mesmo havendo deus, se o Estado é falho – e muitas vezes ilegal, que crê que bandido bom é bandido morto –, como o nosso, tudo é permitido, logo, todos devem ser temidos. O trio me parece muito tranqüilo para que os tema, sigo meu trajeto e logo me distancio, pois páram para entregar outro folheto.

Perambulo um pouco mais por ali. Dois dias antes, dezessete de maio, havia sido dia de combate à homofobia, imaginei que fosse ter alguma campanha do gênero: nada. Talvez o trio da rua do Arouche?

São oito horas, mais ou menos. Os prostíbulos ainda esperam sua hora, botecos e pontos já estão cheios de travestis – diferentemente dos michês, essas me chamam para gozar gostoso –, algumas põem o celular pra tocar, outras dançam com fones de ouvido – e esse dançar aparentemente sem som dá um ar de loucura, de delírio onírico à cena, por mais ritmada que seja a dança –; muitos carros passam, alguns param, pessoas malham nas academias, mendigos dividem o fim da pinga e vasculham o lixo, espectadores entram em um teatro: a noite de sábado ainda está apenas começando.

São Paulo, 26 de maio de 2012.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Tornar-se vácuo.


(sobre o espetáculo de dança "Vácuo - I, Impostor")

Admito: pelos primeiros cinco minutos, isoladamente, eu teria criticado muito a coreografia "Vácuo – I, impostor", concebida por Hideki Matsuda, Key Sawao e Ricardo Iazzetta, a partir de instalações de Mike Nelson, apresentado na Galeria Olido, por ocasião do Festival Cultura Inglesa. Uma pessoa ao meu lado teve a mesma impressão desses cinco minutos e resolveu não esperar. Não sei se perdeu algo, porque se não teve paciência para ver o que viria a seguir, tampouco teria para o desenrolar da coreografia – muito mais num plano experimental, quase performance, do que um trabalho de plasticidade dos corpos e beleza de movimentos.
Há uma estranheza logo que se adentra a sala: palco e platéia com montanhas de papéis picados – essa indiferença inicial entre palco e platéia acaba frustrando uma eventual quebra da quarta parede que se abria como possibilidade. No palco, praticamente ao centro, meio encoberto por uma dessas montanhas, um relógio a contar o tempo – não se trata de contagem regressiva, não é pra se esperar nenhuma bomba, é apenas o andar automático e incansável dos segundos.

Da mesma porta que o público, entra o primeiro bailarino e se dirige ao palco – a luz da platéia ainda acesa, como ficará praticamente toda a apresentação. Como trilha sonora, ruídos, apenas. Ele passa a fazer alguns movimentos "avulsos", tão sem sentido quanto os ruídos, quanto os papéis picados, quanto sua entrada pela porta e não pela coxia. São mais de cinco minutos nessa "coreografia", sem beleza, sem sentido, até ele dar algumas voltas correndo pelo centro do palco, ir para o fundo e parar, encostado à lateral. Entra, então, uma das bailarinas. Ainda que não os mesmos, gestos sem sentido, até que ela se imobiliza também. Entra a outra bailarina, outros gestos sem sentido para os mesmos ruídos que tocam desde o início da apresentação.

Na platéia, mais alguém resolve sair – dá para ouvir, por causa dos papéis no chão.

Me pergunto se não deveria ser Sísifo, ao invés de Vácuo, o título da coreografia: há som demais, há coisas demais para um vácuo – os montes de papéis brancos poderiam remeter a montanhas de lixo, ou de tranqueiras de consumo, como i-pads e i-phones, alvo dos saques em Londres, no ano passado –, aqueles gestos sem sentido poderiam se reportar ao labor inútil do dia a dia – em busca desses objetos-lixo de luxo. Me dou conta de que não, não é uma questão de Sísifo: os bailarinos não se chocam, não se tocam, quando muito se cruzam, sempre à distância. Se não há um vácuo pleno é por uma impossibilidade física, apenas: contudo, entre os vazios que as montanhas de papéis picados deixam, há um vácuo entre cada bailarino: não há encontro, não há olhares, não há interação – como se cada um estivesse perdido no vácuo de si próprio.

Há apenas um momento em que os três têm sincronia, e é justo a prova de que não se trata de vácuo: quando gritam. Não há vácuo, como não há eco. Está cada um no seu canto, solitário, sem relação com os demais, por mais que o sentimento de todos seja o mesmo, que inspire o mesmo grito – gutural, de um vogal só. Lembrei de Juliano Garcia Pessanha e suas questões com o homem-de-Fora, homem-de-Dentro: se pararmos para nos observar, o quanto de nós não é exílio?

Pouco depois, finalmente, um trecho com música e não ruídos – o noturno opus nove, de Chopin, se não me equivoco. Muda a iluminação, para uma luz quente. Os bailarinos inertes. Enquanto dura a música, poucos, quase nenhum movimento. Até que se retiram, cada um por onde veio à cena, solitários como entraram – e como o tempo todo permaneceram. No fim, tudo igual: se não era vácuo, foi tornado vácuo. No breu, resta apenas o relógio, os segundos a correrem indiferentes como correram durante toda a apresentação.

Resta também uma sensação de vácuo, de incômoda ausência – logo preenchida por aplausos premeditados de alguém que decerto não via a hora de ir embora.


São Paulo, 25 de maio de 2012.

ps: procurei na internet obras de Mike Nelson. Não entendi o título “Vácuo”, já que tudo ali remetia muito mais a obra “Triple bluff canyon” (primeira foto) do que a “A psychic vacuum” (segunda foto).

domingo, 20 de maio de 2012

Da distância entre os corpos e os padrões da cultura

Saí com o Wlad, fomos dar uma volta na Augusta, sexta-feira à noite. Lá ele encontrou um conhecido da sua cidade: normal, Augusta à noite é ponto de encontro de várias tribos, de vários estilos. O que soa estranho é que poucas vezes trombei com um conhecido, por mais que a desça e suba umas quatro vezes por semana, ao menos. Quando isso aconteceu, não ficamos só no oi! Você aqui? Tchau, nem acabamos na tradicional cerveja em um bar. A primeira vez que encontrei dois amigos, fomos ao show da banda de um outro, na Augusta, mesmo. Na segunda, fiquei conversando com uma amiga, na Paulista, até depois da uma da manhã. Fomos, inclusive, assaltados em dez reais. Na verdade, o assaltante dizia que queria dez reais para não ter que assaltar ninguém. Comecei a argumentar com ele que a sua exigência era, sim, um assalto; mas minha amiga achou que não era o momento para uma discussão de relação com a pessoa, e resolveu dar os dez reais e se livrar dela – e não quis dividir o custo do assalto depois. Este sábado encontrei outros dois amigos, Tiago e Alexandre. Eu ia para casa, talvez escrever algo e dormir cedo (antes das duas). Eles me chamaram para a sessão da meia-noite “de um filme japonês sobre drama familiar”, resolvi aceitar – se não for assim, convidado, não assisto a filme algum.

E essa era toda informação que tinha quando adentrei a sala para assistir a O que eu mais desejo, do diretor Hirokazu Kore-Eda. Não digo que o filme seja ruim, mas o fato de durar (enroladamente) mais de duas horas faz com que eu não o recomente. A estética não me impressionou, diferentemente de outros diretores orientais que conheço, como Akira Kurosawa, Kim Ki-duk ou Takeshi Kitano, que parecem ter um ponto de tensão oriente-ocidente nesse aspecto. No máximo, o diretor conseguiu uma poética interessante para o tema do desapego, de aprender que as coisas possuem um fim e aceitar isso como parte da vida. 
 
O que acabei atentando mesmo foi para as relações interpessoais que o filme retrata – bem típicas da cultura, creio eu –, talvez até por certas pulgas atrás da orelha, reflexo principalmente de amizades e casos com descendentes.

Começo pela escola: me causou estranhamento o medo para com o professor, e a sujeição à sua autoridade – por mais que se pense em questioná-la depois, por outras instâncias: os alunos teriam, conforme a sinopse, doze anos, já seria idade de terem um pouco mais de audácia.

Nas relações familiares, mais propriamente falando, há as especifidades dos personagens do filme: um dos irmãos que se vê responsável por cuidar das tarefas rotineiras da casa, acordar o pai, etc; o outro preocupado em desfazer o divórcio dos pais; a garota que quer ser atriz e é mais do que desestimulada, ridicularizada pela mãe, frustrada com seu passado, em que tentara ela seguir a carreira. O que me chamou mesmo a atenção foram as relações quotidianas: a exemplo do próprio cumprimento típico japonês, o se curvar para frente (ao invés do aperto de mão ocidental), as demonstrações de afeto não passam pelo toque, seja nos momentos de agradecimento por um grande favor, seja nos momentos de emoção, como do casal de velhos que recebe a visita da pretensa neta – o que dizer, então, no dia-a-dia de pais e filhos, avôs e netos. Os próprios movimentos de entrega, de compartilhar, são feitos de gestos bruscos, como quando o avô dá ao neto um manju. Não que as pessoas não se toquem no filme: isso parece ser mais comum, contudo, entre amigos, sejam crianças ou adultos.

Esses comportamentos me fizeram lembrar de que na apresentação da Osesp, que eu assistira há pouco, só havia uma pessoa que me pareceu mais entregue ao seu instrumento do que o spalla Emmanuele Baldini: uma oriental do celo (ia falar japonesa, mas vi no site que se trata de uma coreana, Jin Joo Doh). O celo, por se tocar próximo ao corpo, quase como em um abraço, já parece ser um instrumento que convida mais à uma entrega – bem visível na ”dança da orquestra”, não havia celista que tocasse com a frieza de certos violinistas –, por que calhar justo com a oriental essa maior expressividade da pessoa e o instrumento se fundindo em um só? Coincidência? Pode ser. Porém penso que um fundo cultural tenha sua parte na explicação.


São Paulo, 20 de maio de 2012.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Soninha Francine e o metrô “sussa”

Soninha Francine, pré-candidata do PPS à prefeitura de São Paulo, jura que foi ironia o que escreveu no twitter: "Metrô caótico, é? Não fosse pela TV e o Twitter, nem saberia. Peguei linha verde e amarela sussa". Sendo uma figura pública e conhecendo das suas posições políticas, não consegui encontrar a ironia na frase – e não creio na sua incapacidade intelectual para ironias, antes na sua inabilidade política para tentar salvar o chefe. O comentário foi uma clara tentativa tornar o acidente na linha 3 como um caso isolado, resguardando o resto do maravilhoso sistema de metrô da cidade.

Sua frase serviu de gancho para lembrar a decepção – não só minha – que a ex-apresentadora e agora política profissional foi para uma geração – essa que hoje está entre os vinte e cinco e trinta anos, mais ou menos. Com bandeiras progressistas na área de direitos humanos, lembro de muitos amigos terem votado nela para deputada federal, em 2006, quando era ainda filiada ao PT. Depois trocou de partido, foi para o PPS, partido reboque de segunda mão (em vias de se tornar de primeira, com o naufrágio do DEM) do PSDB. Em 2010 apoiou Alckmin e participou da campanha de José Serra, dois dos expoentes mais fortes do conservadorismo reacionário em direitos humanos. Soninha definitivamente se transformava numa carcaça do que um dia havia sido.

Surpreende? Não. Decepciona, isso, sim.

Não surpreende porque Soninha é antes cria da indústria cultural. Oriunda da MTV, onde a linguagem da emissora – na época, década de 1990 – dava aos apresentadores a impressão de donos de uma personalidade independente e não mero representantes de um figurino para a ocasião, teve coragem de admitir que fumava maconha e de ter feito um aborto. Se admitir que usava maconha custou-lhe o emprego na emissora controlada pelo PSDB, ter assumido o aborto, para sua sorte, não lhe custou a estima do cruzadista da moralidade, José Serra – porque político, como comunicador, é uma espécie bem maleável. Contudo, ao aceitar participar da campanha do candidato tucano, parece que, no fundo, aceitou o pensamento de todo bom moralista: que os outros não façam aquilo que julgo errado, por mais que eu já tenha feito.

Sentimento semelhante de deslumbramento com um candidato parece ter acontecido com Marina Silva, na eleição para a presidência, em 2010. As diferenças, contudo, são enormes, e não fosse a própria Soninha jogar fora seu histórico, soaria ofensivo a comparação: Marina Silva é o Alckmin de saia, aversa aos avanços dos direitos civis, só que travestido num discurso up to date de preservação do meio-ambiente. Discurso que não é vago, visto sua história de vida, mas que não me surpreenderia ela ir para o outro oposto, caso fosse politicamente necessário – vide seu silêncio sepulcral durante todo o início da discussão do novo código florestal, quando ela estava mais preocupada em disputar o poder interno do PV.

Não tenho certeza disso que vou falar agora: porém tenho a impressão de que o Tiririca é menos nocivo à política nacional – encarando aqui além de seus aspectos pragmáticos, no que há de simbólico –, do que a Soninha. Ou talvez, sendo mais sensato, o palhaço Tiririca talvez seja só uma versão sem disfarces da comunicadora Soninha Francine.

São Paulo, 18 de maio de 2012.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Um acidente para começar a discutir São Paulo?

Em meio a discussões sobre copa do mundo, CPI, Comissão da Verdade, o acidente do metrô, esta quarta, dia 16 de maio, pode ter sido o pontapé inicial para que a disputa pela prefeitura paulistana se dê em torno de problemas do município. O acidente é mais um episódio que se soma aos constantes problemas com o sistema ferroviário urbano, que vão de crateras a casos de corrupção, passando por panes em trens e agora acidente no metrô. Felizmente não houve mortos ou feridos graves. O mais grave atingido talvez tenha sido o PSDB, que tem o estado de São Paulo como foco de resistência contra seu esfacelamento a la DEM, e de busca de uma identidade de um partido que não sabe a arte de fazer política em sua completude (ora como governo, ora como oposição).

A precariedade dos serviços de transportes públicos na cidade e região metropolitana são evidentes. São poucos os corredores exclusivos para ônibus, a espera nos pontos é grande e os trajetos das viagens não raro são um tanto irracionais – do ponto de vista do usuário. Quem reclama da lotação do metrô é porque desconhece o que é (ou era, ao menos, antes da linha quatro) o trem para Osasco: com intervalo de até vinte minutos, domingo à tarde os carros iam cheios. A vez que tive a brilhante idéia de pegar às sete da noite de uma sexta-feira, tive uma sensação de estar no trem para o inferno.

Como comentou um cara com quem vim de carona de São Paulo: a linha quatro foi inaugurada não faz um ano, e a cidade se mostra hoje impensável sem ela. Quantas outras linhas amarelas não seriam impensáveis, caso existissem, mas que sua na ausência, vamos dando um jeito e tocando a vida do jeito que dá? A resposta do PSDB para o problema do transporte público foi dizer que trem é metrô, e contribuir para o caos urbano, com novas faixas na marginal Tietê.

A título de comparação: São Paulo e Pequim possuíam, na década de 1970, malha metroviária muito próximas, algo em torno de 30 km. Na virada do século, São Paulo tinha 47 km, contra 53 km da capital chinesa – que em 2003, com duas novas linhas, foi para 113 km. Hoje Pequim tem 372 km em 15 linhas e 218 estações, contra as cinco linhas paulistanas e seus 74 km de trilhos onde se espalham míseras 64 estações – ainda acusadas de levar gentalha aos bairros onde vive gente feliz, como Morumbi ou Higienópolis.

O PT deve explorar o episódio, inaugurando, finalmente, um assunto de interesse local na disputa local que ocorre este ano. Faz parte da hipocrisia política representativa: um partido que jogasse justo não ganharia nada. Convém lembrar, contudo, que enquanto a expansão (ou criação) dos metrôs pelo país vai devagar, quase parando, apesar de ser mais do que urgente, o governo federal – PT – insiste no trem bala ligando São Paulo ao Rio. Conversava com o arquiteto português que mora comigo, e ele contava da idéia dos trens balas em Portugal: o deslumbramento do país crescendo, e a vontade de ser como toda a Europa rica, que possui trem bala, levou o governo a começar a implementação de três linhas. Depois de alguns gastos com desapropriações e início das obras, foram abandonados. Quando me contou, senti o Brasil embarcando um pouco atrasado nesse trem que Portugal já havia abandonado.

Que o acidente do metrô e a discussão que promete seguir dele ao menos faça com que o debate sobre a disputa municipal se centre na urbe, seus problemas quotidianos, propostas para torná-la menos hostil às pessoas que nela vivem. Que a disputa seja pautada em projetos sobre o futuro da cidade e não sobre o futuro dos partidos e candidatos. Porque o que vimos até agora foi a cadeira de prefeito ser disputada por conta da função que teve nos últimos anos: trampolim para cargos mais “nobres”.


São Paulo, 17 de maio de 2012.

sábado, 12 de maio de 2012

Gesto anacrônico

Amigo meu de Pato Branco disse ter raiva de gente que possui celular e não atende quando ele liga. Ainda bem que não moramos na mesma cidade, pois se sua raiva é tamanha como disse, nossa amizade estaria em risco – ou então ele teria que fazer como boa parte dos que me conhecem, e se adaptar ao uso que faço do celular.

Tenho a coleira móvel há quatorze meses. Deixei de largá-la sempre em casa quando me mudei pra São Paulo, início do ano, ainda que não seja sempre que saia com ela, ou que a deixe ligada quando carrego na mochila. Houve, é certo, um curto período, na segunda metade de abril, que só faltava eu dormir com o celular ao lado do travesseiro: ansiava por uma ligação ou um sms inesperado com algum convite para um reencontro. Como era de se esperar, nunca veio nada disso que eu almejava – no máximo, um convite para assistir a Raul, feito por um casal de bons amigos –, de modo que, meados de maio, de volta de Pato, e já resignado com a situação, voltei também ao meu velho uso: carrego-o quando sei que vou utilizá-lo, quando foi combinado d'eu sair com ele.

Deixo o celular, volto com o relógio.

Queria assistir a uma apresentação de dança e saí de casa em cima da hora. Consegui chegar a tempo, inclusive de comer algo antes. Quando fui ver a que velocidade precisaria engolir um pão de queijo com chá mate – e tinha sido por isso que carregara o relógio –, olhei para o pulso, onde havia posto o relógio há pouco, e tomei um susto: que gesto era aquele?! Foi como se eu olhasse para além das horas, para o passado.

Me explico.

Houve tempo que sair de casa sem relógio era o equivalente a sair sem as calças. Isso foi até 2007, quando eu tinha uma pontualidade de fazer inveja a britânicos e alemãs, e era de um rigor para comigo como o eram os ponteiros do relógio para com o tempo que mediam. Em 2008, já devidamente atordoado por um breve e silencioso relacionamento que tive em fins do ano anterior, querendo estudar a questão do tempo na sociedade do espetáculo (no livro, mas não tão interessado no livro em si), coincidiu do meu relógio acabar a bateria. Decidi que andaria um tempo sem. O início foi angustiante, mas fui me acostumando, e assim passaram os dias, por mais de seis meses, quando, para não perder as caronas de São Paulo para Campinas, precisei voltar a andar com trambolho – outra opção seria comprar um celular. Voltei a utilizá-lo com assiduidade, mas não como acessório obrigatório – e nunca mais o pus no pulso.

Não tinha me dado conta dessa minha nova relação com o tempo (que sequer chegou a ser tão revolucionária assim) até ano passado, quando uma amiga, que há três anos não encontrava, olhou para mim assustada: “você sem relógio?! Como?!”, só faltou perguntar se eu estava passando bem. Pois foi esse Dalmoro de quatro anos atrás que de repente me senti, ao trazer o pulso na posição habitual de olhar as horas. Me senti um estranho para mim mesmo, cometendo um ato sem sentido, exumando uma história já bem fechada e resolvida. 

Tirei o relógio do pulso como quem tira um espírito mau do corpo. Só então pude estar presente e atentar para as horas: tinha quinze minutos para meu lanche – que engoli em menos de dez, com medo de atrasar.


São Paulo, 12 de maio de 2012.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Sobre covers de Radiohead

Em um mês, pouco mais, assisti a três shows cover do Radiohead. O primeiro foi sem querer. Eu flanava pela rua Augusta, quando ouvi um grupo de estrangeiros comentar do show. Fui atrás deles. Achei salgada a entrada – descobri depois que para São Paulo é esse o preço –, mas como estava no clima, achei que valia a pena assim mesmo.

Ainda esperava o show começar quando me dei conta: fazer cover do Radiohead não é nada fácil. Começa pela voz de Thom Yorke, a forma como ele canta e varia o tom; segue pelas experimentações, pelo uso de eletrônica nas músicas.

Mas não foi pela dificuldade de tocar Radiohead que o show da banda Pública foi um lixo. Foi simplesmente porque, apesar de terem pego um disco fácil – The Bends, rock alternativo de alto nível, mas sem maiores invenções –, seguido ele na ordem, não eram bons instrumentistas e, como eu temia, o vocalista não conseguia acompanhar – nem de perto – Thom Yorke. Para piorar: não sabia as letras – sequer dos hits! Saí emputecido. Mesmo assim fui num outro cover de Radiohead, logo na semana seguinte. A explicação para arriscar novamente eu tinha fácil: conhecia o baterista, Luis André “Gigante”, dos tempos de Unicamp, e sabia que ele valia por um show.
Tendo como base músicas que vão do disco Ok Computer a In Rainbows, cedendo apenas em “Fake Plastic Trees”, o show foi um ótima surpresa: contrariamente a Pública, Radiolarians vai além de mero cover: adapta de leve as músicas, sem grandes invencionices, sem desfigurá-las – e não creio que seja por conta de limitações técnicas dos músicos as alterações, pois além do Gigante, os demais se mostraram ótimos instrumentistas: Fabio Pinc, Junior Gaz e Duda. Provavelmente as leves nuançares servem para as músicas melhor se adaptarem aos vocais de André Frateschi – ator que me é desconhecido, mas parece que já fez até novela –, que não tenta cantar além do que consegue: não tem a voz do Thom Yorke, mas canta no tom (trocadilho involuntário).

O terceiro cover foi nova apresentação do Radiolarians – até para ver se não me deixara influenciar pelo meu fim de noite da apresentação anterior. Para desagradável surpresa, Gigante não estava na bateria. Conforme o cara que estava no som, tinha tirado o dia para descansar. O baterista que entrou para substitui-lo poderia até ser bom, mas claramente havia sido escalado meio em cima: tocava lendo partitura. E pior: tinha Gigante para ser comparado – em "There there", que no show do Radiohead de verdade Phil Selway é ajudado na percursão por Ed O'Brien e Jonny Greenwood, e Gigante leva sozinho, ficou mais do que claro o desnível. Para completar: a banda não estava inspirada, cometendo erros.

Eram três da manhã, nem tanto por cansaço, antes por e-mails pra responder e não querer dormir tão tarde, preferi sair antes do final. Saí certo de que fazer cover de Radiohead não é para qualquer um, nem é para qualquer dia. E que o Gigante, se não é por um show, por metade dele, ao menos, vale.

Pato Branco, 08 de maio de 2012.


(neste vídeo, se não me equivoco, o baixo é tocado por Gustavo Boni)

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Franjas, entradas, saídas e outras bossas do gênero

Deve ter sido há uns vinte anos que eu fizera isso pela última vez (também a primeira). Estava na praia, no litoral paranaense, meu pai avisara: hora de cortar a franja. Naquela época devia ser moda isso: para economizar no cabeleireiro, salão, barbeiro, cortava-se a franja da pobre criança e assim dava para passar um mês mais com o cabelo comprido – lembro de ter visto foto de infância de uma amiga, a mesma franjinha de pais pão-duros.

Se meu pai tinha avisado, não tinha como fugir: a franja seria cortada, quisesse eu ou não. Para manter o mínimo de orgulho que me restava, resolvi eu mesmo cortar minha própria franja. A primeira tentativa saiu errada, torta. A segunda, também. A terceira, já quase sem franja, pior ainda. Me desesperei: já é daquela época que roupa, em geral, não me incomoda, mas cabelo... impensável sair de casa com um teco arrepiado. Para me ajudar: não era moda, ninguém usava cabelo raspado – situação que se inverteria uns dois anos depois – e eu não era lá adepto do boné – nunca fui, na verdade; de boina, nos últimos tempos. Fomos até um salão, onde uma mulher fez uma gambiarra com o que me restava de cabelo.

Eu era feliz nessa época, pois o “me restava de cabelo” era uma situação pontual, bem diferente da de agora, em que o que me resta de cabelo, estou quase passando cola pra que sigam na cabeça os parcos fios. E pior é pensar que cheguei nesta situação porque ninguém me explicou que quando me diziam que meu cabelo estava afinando, isso era o prenúncio da queda. Poderia ter evitado – ou tentado, ao menos. Lembro de uma crônica do Antônio Prata, em que ele dizia que preferia tomar finasterida e arcar com problemas de ereção: afinal, brochar seria algo que só ele e uma mulher precisariam saber, enquanto a careca refletindo a luz do sol poderia atrapalhar a visão de todos os que estão no tobogã do Pacaembu – inclusive diz ele que a tal da impotência causada por finasterida é lenda: toma desde os dezenove e pratica sexo todos os anos, sem nunca ter tido problemas.

Deixo o Prata com sua quase cabeleira a base de finasterida e volto à minha grande aventura dos últimos dias.

Da última vez que cortei o cabelo (no salão), dei as indicações de sempre: dá uma aparada não muito grande, mas o suficiente pra disfarçar a careca que se anuncia. Assim foi feito, mas a cabeleireira esqueceu das entradas, e o corte as deixou muito maiores do que realmente são. Essas entradas falsas me incomodavam, já fazia mais de mês, até que terça tomei uma decisão drástica: cortar minha própria franja. Depois de vinte anos, me aventuraria novamente. Tesoura em punho, sem ter achado nenhum pente ou escova pra dar uma arrumada antes (abandonei esse tipo de apetrecho há uma década, o que não implica em cabelo arrepiado), cortei aquele enganoso trecho da franja. E digo mais: não sei se dá pra dizer que ficou bom, mas ficou melhor do que antes.

Me olhei no espelho, orgulhoso do meu feito, e vi um pouco daquele garoto que há vinte anos chorava o cabelo mal cortado no banheiro: rá! Você não sabia fazer direito!, disse a esse piá que me olhava do outro lado do espelho. E, realmente: se soubesse, teria corrido atrás de algo pra calvície quando ainda havia cabelos em abundância.


Pato Branco, 04 de maio de 2012.

terça-feira, 1 de maio de 2012

O reajuste do salário mínimo e o silêncio da Grande Imprensa

A proposta é de aumentar em 17% o salário mínimo. Depois, indexar o reajuste à inflação anual. Mirian Leitão e outros intelectuais (porque economista da Grande Imprensa sempre se crê um intelectual, por mais estreita que seja a viseira) do mesmo quilate devem saber da notícia, que saiu no último dia de abril de 2012, mas preferem não dizer nada. Conseguiu o governo comprar até esses independentes arautos da responsabilidade?

Não, desta vez não se trata de mais uma medida disparatada, inconseqüente e populista do governo petista (lembrando: Lula não é mais presidente do Brasil). A proposta é para Nova Iorque, nos Estados Unidos, e o silêncio dos formadores de opinião tupiniquins é óbvio: foram desditos pela própria matriz do pensamento que papagueiam. Se se souber que o salário mínimo no Reino do Liberalismo é indexado à inflação, como criticar o governo brasileiro de irresponsável? Se uma proposta de reajuste de 17% está para ser aprovada nos EUA, como justificar que reajustes menores no Brasil irão custar a volta da inflação, o emprego de milhares e trazer a miséria novamente (?) a estes tristes trópicos?

Há diferenças de contexto, é certo: lá, pretende-se que com o salário mínimo possa uma família de três pessoas viver acima da linha da pobreza – é pouco para o país mais rico do mundo –; aqui, que um salário mínimo garanta às empresas a competitividade no mercado externo – competitividade que elas não conseguem ter por não aplicarem em pesquisa e desenvolvimento, por exemplo. Ah, sim, há um trabalhador que ganha R$ 622,00 por mês, e deve sustentar uma família com isso, mas é detalhe.

Para uma imprensa engajada, mais importante do que informar é desinformar. Para os veículos e colunistas de "respeito", nada de mentiras, apenas singelas omissões.

São Paulo, 01 de maio de 2012