sábado, 12 de maio de 2012

Gesto anacrônico

Amigo meu de Pato Branco disse ter raiva de gente que possui celular e não atende quando ele liga. Ainda bem que não moramos na mesma cidade, pois se sua raiva é tamanha como disse, nossa amizade estaria em risco – ou então ele teria que fazer como boa parte dos que me conhecem, e se adaptar ao uso que faço do celular.

Tenho a coleira móvel há quatorze meses. Deixei de largá-la sempre em casa quando me mudei pra São Paulo, início do ano, ainda que não seja sempre que saia com ela, ou que a deixe ligada quando carrego na mochila. Houve, é certo, um curto período, na segunda metade de abril, que só faltava eu dormir com o celular ao lado do travesseiro: ansiava por uma ligação ou um sms inesperado com algum convite para um reencontro. Como era de se esperar, nunca veio nada disso que eu almejava – no máximo, um convite para assistir a Raul, feito por um casal de bons amigos –, de modo que, meados de maio, de volta de Pato, e já resignado com a situação, voltei também ao meu velho uso: carrego-o quando sei que vou utilizá-lo, quando foi combinado d'eu sair com ele.

Deixo o celular, volto com o relógio.

Queria assistir a uma apresentação de dança e saí de casa em cima da hora. Consegui chegar a tempo, inclusive de comer algo antes. Quando fui ver a que velocidade precisaria engolir um pão de queijo com chá mate – e tinha sido por isso que carregara o relógio –, olhei para o pulso, onde havia posto o relógio há pouco, e tomei um susto: que gesto era aquele?! Foi como se eu olhasse para além das horas, para o passado.

Me explico.

Houve tempo que sair de casa sem relógio era o equivalente a sair sem as calças. Isso foi até 2007, quando eu tinha uma pontualidade de fazer inveja a britânicos e alemãs, e era de um rigor para comigo como o eram os ponteiros do relógio para com o tempo que mediam. Em 2008, já devidamente atordoado por um breve e silencioso relacionamento que tive em fins do ano anterior, querendo estudar a questão do tempo na sociedade do espetáculo (no livro, mas não tão interessado no livro em si), coincidiu do meu relógio acabar a bateria. Decidi que andaria um tempo sem. O início foi angustiante, mas fui me acostumando, e assim passaram os dias, por mais de seis meses, quando, para não perder as caronas de São Paulo para Campinas, precisei voltar a andar com trambolho – outra opção seria comprar um celular. Voltei a utilizá-lo com assiduidade, mas não como acessório obrigatório – e nunca mais o pus no pulso.

Não tinha me dado conta dessa minha nova relação com o tempo (que sequer chegou a ser tão revolucionária assim) até ano passado, quando uma amiga, que há três anos não encontrava, olhou para mim assustada: “você sem relógio?! Como?!”, só faltou perguntar se eu estava passando bem. Pois foi esse Dalmoro de quatro anos atrás que de repente me senti, ao trazer o pulso na posição habitual de olhar as horas. Me senti um estranho para mim mesmo, cometendo um ato sem sentido, exumando uma história já bem fechada e resolvida. 

Tirei o relógio do pulso como quem tira um espírito mau do corpo. Só então pude estar presente e atentar para as horas: tinha quinze minutos para meu lanche – que engoli em menos de dez, com medo de atrasar.


São Paulo, 12 de maio de 2012.

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