sexta-feira, 25 de maio de 2012

Tornar-se vácuo.


(sobre o espetáculo de dança "Vácuo - I, Impostor")

Admito: pelos primeiros cinco minutos, isoladamente, eu teria criticado muito a coreografia "Vácuo – I, impostor", concebida por Hideki Matsuda, Key Sawao e Ricardo Iazzetta, a partir de instalações de Mike Nelson, apresentado na Galeria Olido, por ocasião do Festival Cultura Inglesa. Uma pessoa ao meu lado teve a mesma impressão desses cinco minutos e resolveu não esperar. Não sei se perdeu algo, porque se não teve paciência para ver o que viria a seguir, tampouco teria para o desenrolar da coreografia – muito mais num plano experimental, quase performance, do que um trabalho de plasticidade dos corpos e beleza de movimentos.
Há uma estranheza logo que se adentra a sala: palco e platéia com montanhas de papéis picados – essa indiferença inicial entre palco e platéia acaba frustrando uma eventual quebra da quarta parede que se abria como possibilidade. No palco, praticamente ao centro, meio encoberto por uma dessas montanhas, um relógio a contar o tempo – não se trata de contagem regressiva, não é pra se esperar nenhuma bomba, é apenas o andar automático e incansável dos segundos.

Da mesma porta que o público, entra o primeiro bailarino e se dirige ao palco – a luz da platéia ainda acesa, como ficará praticamente toda a apresentação. Como trilha sonora, ruídos, apenas. Ele passa a fazer alguns movimentos "avulsos", tão sem sentido quanto os ruídos, quanto os papéis picados, quanto sua entrada pela porta e não pela coxia. São mais de cinco minutos nessa "coreografia", sem beleza, sem sentido, até ele dar algumas voltas correndo pelo centro do palco, ir para o fundo e parar, encostado à lateral. Entra, então, uma das bailarinas. Ainda que não os mesmos, gestos sem sentido, até que ela se imobiliza também. Entra a outra bailarina, outros gestos sem sentido para os mesmos ruídos que tocam desde o início da apresentação.

Na platéia, mais alguém resolve sair – dá para ouvir, por causa dos papéis no chão.

Me pergunto se não deveria ser Sísifo, ao invés de Vácuo, o título da coreografia: há som demais, há coisas demais para um vácuo – os montes de papéis brancos poderiam remeter a montanhas de lixo, ou de tranqueiras de consumo, como i-pads e i-phones, alvo dos saques em Londres, no ano passado –, aqueles gestos sem sentido poderiam se reportar ao labor inútil do dia a dia – em busca desses objetos-lixo de luxo. Me dou conta de que não, não é uma questão de Sísifo: os bailarinos não se chocam, não se tocam, quando muito se cruzam, sempre à distância. Se não há um vácuo pleno é por uma impossibilidade física, apenas: contudo, entre os vazios que as montanhas de papéis picados deixam, há um vácuo entre cada bailarino: não há encontro, não há olhares, não há interação – como se cada um estivesse perdido no vácuo de si próprio.

Há apenas um momento em que os três têm sincronia, e é justo a prova de que não se trata de vácuo: quando gritam. Não há vácuo, como não há eco. Está cada um no seu canto, solitário, sem relação com os demais, por mais que o sentimento de todos seja o mesmo, que inspire o mesmo grito – gutural, de um vogal só. Lembrei de Juliano Garcia Pessanha e suas questões com o homem-de-Fora, homem-de-Dentro: se pararmos para nos observar, o quanto de nós não é exílio?

Pouco depois, finalmente, um trecho com música e não ruídos – o noturno opus nove, de Chopin, se não me equivoco. Muda a iluminação, para uma luz quente. Os bailarinos inertes. Enquanto dura a música, poucos, quase nenhum movimento. Até que se retiram, cada um por onde veio à cena, solitários como entraram – e como o tempo todo permaneceram. No fim, tudo igual: se não era vácuo, foi tornado vácuo. No breu, resta apenas o relógio, os segundos a correrem indiferentes como correram durante toda a apresentação.

Resta também uma sensação de vácuo, de incômoda ausência – logo preenchida por aplausos premeditados de alguém que decerto não via a hora de ir embora.


São Paulo, 25 de maio de 2012.

ps: procurei na internet obras de Mike Nelson. Não entendi o título “Vácuo”, já que tudo ali remetia muito mais a obra “Triple bluff canyon” (primeira foto) do que a “A psychic vacuum” (segunda foto).

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