quarta-feira, 25 de julho de 2012

Uma noite de terça na Augusta


O plano era simples: voltara da musculação morrendo de fome, não estava a fim de preparar e comer um macarrão-gororoba de novo, e decidi comer num fast food japonês, no baixo Augusta. Depois de jantar, se desse vontade (claro que deu) desceria um pouco mais, até aonde houvesse movimento, subiria pela calçada do outro lado, e nem uma hora depois, chegaria em casa devidamente alimentado (ia dizer “bem alimentado”, mas depois de jantar junkie food o máximo que se pode dizer é alimentado). Trocaria de roupa, talvez nem lesse e ficasse como na noite anterior: pensando, ao som de Sigur Rós, o porquê de Yuki ter me atraído mais do que May ou Yumiyoshi, apesar de ser uma garota de treze anos, meio mediúnica e de modos secos – falo de personagens do romance Dance dance dance, do Harumi Murakami. E sem concluir meus pensamentos, dormiria o sono dos justos.

Não foi bem o que aconteceu. No meio do caminho encontrei dois amigos num bar, parei para dar um alô, trocar rapidamente uma idéia – em pé, mesmo – e seguir meu plano original. Começou que esse rapidamente já devia estar durando quase dez minutos, mas eu resistia a sentar – até porque eles estavam na saideira.

Estava em pé conversando, quando uma mulher veio pedir ajuda pra segurar uma outra. Reparamos no bafafá que acontecia do outro lado da porta do bar, nos olhamos – depois um dos meus amigos disse que de início achou que se tratava de um cantada –, enquanto nos olhávamos tentando entender, sinto uma pancada no lado direito, na altura do rim. Na troca de tapas entre duas mulheres, uma delas foi empurrada e me acertou. Não que tenha sido um golpe que me fez contorcer de dor, mas não foi de leve e foi bem colocado. Depois dessa, aceitei sentar um pouco, pra seguir com a conversa, enquanto meus amigos tomavam sua segunda saideira. Para facilitar a crônica, chamemos a um deles de “amigo lindo”, e ao outro de “amigo do Garcia” – razão que ficará clara no correr desta crônica.

Pouco depois desse empurra-empurra, a mulher que me acertara o rim – que devia ser amiga dos donos – entra no bar e volta com um controle remoto que joga no meio da rua: “venga segurar-me”, desafia em portunhol. O amigo lindo ainda mantem o bom humor, pede pro dono: “aumenta o som da tevê, por favor!” Um tempo depois a mulher entra no bar de novo e quebra algo dentro. “O clima não está bom, vamos tomar a saideira e vazar”, sugere o amigo do Garcia. A mulher segue causando, e a dona decide chamar a polícia. Meus amigos decidem tomar uma saideira mais, pra ver como vai acabar a história. Acaba que a polícia chega muito tempo depois: já havia dado tempo pra pedir a quarta saideira e a mulher já havia sumido – e olha que ela ficou um tempo rondando por lá. Enquanto isso conversávamos quase-amenidades: Casuística (claro), Deleuze, estruturalismo, Debord, fim da PM, Safatle... Um morador de rua passa correndo: vacilou, a polícia já tem quem pegar: preto pobre e fugindo: é culpado. Saem atrás dele, e o alcançam uma quadra acima para uma geral.

Uma garota na mesa ao lado, consideravelmente alcoolizada, resolve puxar papo. Primeiro pergunta onde moramos – estranho a pergunta, imagino que talvez quisesse saber de onde viemos, já que ainda carrego restos do meu sotaque leitE quentE. Se irrita que não entendi a pergunta – logo eu que sou inteligente e tal, como ela vai dizer várias vezes na noite. Pergunta se alguém tem um baseado – mesa de quadrados, ninguém. Cisma que somos artistas. Canta uma música que não me é desconhecida, que não consigo reconhecer (nem lembrar agora). Convidamos para sentar na mesma mesa que nós, ela se recusa e pede desculpa por se intrometer. Voltamos a nossas quase-amenidades. Não tarda muito e ela outra vez puxa conversa – sempre com uma música pra ilustrar qualquer coisa, assim como eu costumo ter uma tirinha. Demora até ela aceitar sentar na mesma mesa. A ébria conversa que se segue é papo de doido, sempre pontuada por alguma música: ela faz perguntas bizarras – que evito reproduzir, vai que minha mãe ou algum menor de idade leia –, e quando perguntamos algo de boa – como porque ela achou que éramos artistas –, se sente ofendida. Está bêbada, eu sei, não precisava ela repetir seguidamente. Meus amigos também estão um tanto altos. A conversa segue non-sense, nossa nova amiga começa frases e não termina, o amigo do Garcia ora toca air guitar e air drums para acompanhá-la, ora manda patadas – como, por exemplo, recriminá-la por seu air cavaquinho estar com o braço muito grande –, o amigo lindo decide tentar “ganhar a noite” – eu fico meio de canto, rindo, de vez em quando lembram que eu também estou na mesa. Não sei em que saideira estão, acaba sendo a última porque o bar está fechando – são quase três da manhã –, e resolvo pedir um copo, pra ver se um pouco de álcool me permitiria acompanhar a conversa. Não ajuda muito.

O bar fecha, decidimos descer a Augusta – depois de nossa nova amiga abraçar e beijar os donos do bar. Na indecisão do que fazer – depois de pararmos para que nossa nova amiga abraçasse e desse um beijo na bochecha de um funcionário que mexia na rede de esgoto –, o amigo do Garcia falou que iria consultar seu “guia espiritual”, o tal Garcia. Fomos atrás dele. Garcia é o porteiro de um inferninho. Enquanto o Garcia, a pedido do aqui chamado amigo do Garcia, explica como funciona a casa, eu, o amigo lindo e a nossa nova amiga estamos nos distraindo com outras coisas. Garcia se ofende com nosso desdém, meu amigo se irrita (mais), e seguimos descendo.

Paramos num bar. Nossa nova amiga liga para o pai, que desliga na sua cara – esquecia: é uma moça bonita, aparenta vinte e poucos mas diz ter trinta e cinco. O amigo do Garcia até segue tentando alguma conversa minimamente séria com a nossa nova amiga – como qual sua ocupação antes de estar desempregada –, mas não há espaço pra isso e ele apenas se irrita mais. O papo segue maluco como desde o início, e pontuado com músicas, como desde o início – apenas o amigo do Garcia que a acompanhava, irritado, deixou de fazer o dueto. “Quer saber? Foda-se, estou bêbada”, ela repete outras n vezes. É uma bêbada que oscila entre patadas e beijos. O amigo lindo fica na tentativa de algo com ela. O amigo do Garcia, depois de ganhar dela muitos beijos na bochecha, desiste e parte pra outra. Eu já antevejo ela ficando com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história. Um copo cheio de cerveja cai na minha calça – ao menos não pediram pra eu pagar a cerveja que eu usufruí com minha roupa. Reparo que do lado de fora do bar um careca não pára de me observar, finjo que não é comigo. Um outro maluco alto chega e fica amigo também na nova amiga, que se apresenta como sobrinha do Angeli. Ela exclama que finalmente achou alguém legal na noite – meus amigos ficam com cara de bunda, eu rio, até pareço ser o mais bêbado do grupo, justo eu, o único que lembra o nome de todos (mais: que lembra o nome de alguém). Para comemorar sua chegada, canta a mesma música que cantou logo que puxou papo conosco – e que havia cantado antes quando pediu o cigarro pra um rapaz na frente do inferninho do Garcia, a quem também havia abraçado e dado um beijo na bochecha. Ele se afasta, acho que vai ao banheiro, e nisso o amigo lindo volta a tentar algo – ainda mais depois d'ela ter dito ao cara legal que ele era lindo. O amigo do Garcia consegue um beijo da moça com quem conversava, mas depois me confessa: “putz, me confundi, não era d'ela que eu estava a fim”. Coisas de quem já está consideravelmente alto. Eu só observo e dou risada – já havia dado umas duas ou três vaciladas e resolvo que não preciso acabar com minha auto-estima toda na mesma noite. Também penso nesta crônica (que achava que ficaria bem mais interessante). Na rua, um homem noiado quebra a porta do estacionamento e chama todo mundo pra briga. A polícia aparece meia hora depois. Já de saída, terminando a conversa com a nossa nova amiga – se é que havia alguma conversa pra terminar, se é que havia alguma conversa – um homem um pouco bêbado vem fazer propaganda de um inferninho que há logo acima. O bar começa a fechar. O amigo lindo – que pouco antes tinha ido me perguntar o nome da nossa nova amiga – consegue uns beijos dela, o amigo do Garcia tenta descolar o quarto do Gyorgy – que não estava dormindo em casa – para o casal. Sem cerimônias, corto o barato: “esquece, nem é minha cama”. O cara legal já está em outra roda, tentando agitar gente para acompanhá-lo a outro bar.

Cinco da manhã. Repasso a noite: janta rápida, Delueze, Wander Wildner, PM, cerveja Duff, propaganda de inferninhos, conversas non sense: para um neófito na noite paulistana, até então acostumado com festinhas e barzinhos universitários bundas, é interessante. Concluo que meu plano original falhou totalmente – mas me diverti. A la Murakami – para compensar que não fiquei matutando no livro –, até penso que pode haver alguma ligação entre passar a encontrar outras pessoas mais de uma vez na Augusta e não ter mais encontrado Camila, a moreninha da balada, depois disso. Decido que é hora de voltar pra casa e dormir. Combino com meus amigos uma próxima trombada pela Augusta – sem golpe nos rins, de preferência.


São Paulo, 25 de julho de 2012.

domingo, 22 de julho de 2012

Como irritar pessoas (revisitado)– apresentação de dança

Reconheço, quando mais jovem eu era um velho rabugento e chato [j.mp/cG151001]. Agora, beirando os trinta, sigo um velho rabugento, mas menos, tanto velho (ao menos quesito "velho de espírito"), quanto rabugento (por conseqüênica, até). No quesito chato, sim, eu mudei: não que tenha deixado de sê-lo, apenas mudei minha chatice de situações. E não sei se por estas semanas estou um pouco mais irritadiço, ou se tenho tido sorte, mesmo.

Ao assistir à ultima apresentação do Balé da Cidade de São Paulo, no Theatro Municipal, me lembrei da esquete de John Cleese, do Monthy Pyton, "How to irritate people", quando ele fala do cinema. Não costumo ir muito a cinemas, mas apresentações de dança tenho me esbaldado como nunca este ano, desde que me mudei pra São Paulo. Tenho, logo, algum repertório de como irritar pessoas numa apresentação de dança – no caso, por ser uma das pessoas perturbadas e não perturbadoras. Eu bem poderia falar de jovens que querem aparecer mais do que quem está apresentando, mas sigo a esquete do Cleese, e prefiro falar de senhoras já de uma certa idade – coincidentemente três se sentaram ao meu lado no Municipal.


Não reparei bem na forma das senhoras, se se pareciam com saleiros ou o que, para seguir a esquete desde o início, pulemos para dentro da sala de espetáculo.

Conversas banais antes de começar a apresentação. Até aí, tudo bem. Muito normal, nada a reclamar – nem mesmo da conversa, que não tinha nada no esquema "bandido bom é bandido morto", "empalamento das aborteiras", "você viu na Veja?", ou coisas do gênero.

Soa o terceiro toque para o início da apresentação. É dado o aviso das saídas de incêndio, o pedido para que celulares sejam desligados. As luzes se apagam, as cortinas se abrem, o espetáculo começa. (Para poupar espaço, abreviemos as senhoras ao meu lado como V1, V2 e V3, na ordem de frase dita, e não para me referir a cada uma delas, que não fiquei reparando quem dizia o que).

Primeiro, elas reagem com alguma organização:
V1 – Começou!
V2 – Vai começar!
V3 – Sim, começou!

Então, não chegam a fazer um minuto de silêncio, e comentam algo sobre a dança:
V1 – Estão todos de terno!
V2 – É... todos de terno!
V3 – Sim, todos!
No caso, todos os bailarinos e bailarinas estavam vestidos de terno.

Logo a seguir, uma delas lembra que se esqueceu de desligar o celular:
V1 – Esqueci de desligar o celular!
V2 – Então desligue!
V3 – Sim, desligue!
V1 – Vou desligar.
A velhinha ao meu lado tira seu celular da bolsa, e antes de desligar, confere ver se não tem mensagem ou ligação nova, com ele virado para meu rosto. Quase um minuto depois, desliga a porcaria do aparelho.
V1 – Pronto!
V2 – Desligou?
V1 – Desliguei.
V2 – Ah, que bom!
V3 – Sim, que bom! Porque senão pode tocar...
V1 – Não mais.
V2 – Ah, que bom!

Pronto, posso começar a assistir à apresentação concentrado e tranqüilo, penso, ingenuamente. Elas seguem fazendo comentários, mal passa um minuto em silêncio:
V1 – Aquele cabeludo é muito bom!
V2 – Qual?
V1 – O cabeludo.
V2 – Ahhh...
O tal "cabeludo" devia ser uma das bailarinas, já que os bailarinos tinham todos cabelo curto.

Um instante um pouco maior de silêncio, deve chegar a três minutos, e novos comentários:
V1 – Como é escuro.
V2 – Muito escuro.
V3 – Sim, muito escuro.
Se referiam à iluminação da coreografia, que fazia uso um tanto acentuado do breu, até pra construir uma atmosfera pesada.

Talvez por não conseguir pensar em novo assunto e longe demais para reparar nos detalhes, a senhora exatamente ao meu lado – a mesma do celular – resolve limpar as mãos em um lenço de papel muito barulhento. Lentamente o tira da bolsa. Lentamente começa a limpar as mãos. Olho para ela uma vez. Segue limpando - lentamente, imaginando que assim não faz muito barulho nem incomoda os outros (quero crer na minha polianice). Olho outra vez, parece que percebeu meu olhar de pouco amigos, mas segue limpando (lentamente). Olho novamente, e desta feita resolve guardar o lenço – lenta e calmamente, com muito barulho.

Limpava as mãos, é claro, porque não iria levar comida à boca com elas sujas. Tira da bolsa balas e oferece às outras senhoras:
V1 – Quer bala?
V2 – Eu quero!
V3 – Bala?
V1 – Sim, bala.
V3 – Não, "obrigado" [sic].
V1 – Não mesmo?
V3 – Não, "obrigado" [sic].
Então as duas senhoras muito discretamente abrem as embalagens individuais de suas balas, no mínimo três minutos para desembrulhar aquelas embalagens barulhentas e discretamente guardarem o papel de bala na bolsa.

Passam um tempo em silêncio – creio eu que acompanhando a dança e procurando assunto:
V1 – Música cansativa.
V2 – Sim, cansativa.
O detalhe: a trilha sonora da coreografia era feita apenas por "barulhos" – vamos assim chamar –, não sei se as senhoras estavam a par de música eletroacústica para considerá-la música, mas a chamaram assim.

Mais um período em silêncio. A senhora ao meu lado não chega a roncar plenamente, mas ouço seu ressonar do sono de uma pessoa cansada – afinal, a música... 

Paz! Mas por alguns instantes.

Pouco antes do final, uma das senhoras se levanta, e falando sussurrante para não incomodar quem está atrás:
V1 – Vou embora.
V2 – Já?
V1 – Sim, já.
V2 – Não vai ver a outra coreografia.
V1 – Não, vou embora.
V2 – Então tchau.
V1 – Tchau.
V3 – Tchau.
V1 – Tchau. Bom espetáculo.
V2 – Obrigada.
V3 – "Obrigado" [sic].
V1 – Com licença, com licença.

Nem cinco minutos depois a coreografia se encerra.

São Paulo, 22 de julho de 2012.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Das coisas que não entendo

Caminhava rumo à Galeria Olido, sábado. Na Rua da Consolação, no cruzamento com o viaduto Nove de Julho, uma SUV ultrapassa em alta velocidade um carro comum, ocupado por quatro homens. “Viados-filho-da-puta”, gritam de dentro do carro. “Apenas outra troca de carícias no trânsito”, penso. Então reparo que a ofensa não é para a SUV apressada em buscar a mãe na zona, mas para um casal de homens que caminha de mãos dadas. Não entendo – e me choco, em resquícios da minha caipirice que crê num mundo harmônico, ainda que na roça não fariam muito diferente diante de um casal homossexual – a ofensa gratuita para alguém absolutamente indiferente. Lembro do que minha mãe costuma dizer, que “quem muito prega, pouco crê”. Imagino que não é difícil acontecer dos machões do carro irem da ofensa à agressão, simplesmente por rejeitar o que é diferente, o Outro.

Não entendo.

Não entendo como uma cidade pode ter o melhor do cosmopolitismo e o mais precário do provincianismo. Pior: como uma cidade pode ter o pior dos dois. Não entendo porque demorei tanto pra me mudar pra São Paulo, e como suportei tanto tempo Barão Geraldo e Campinas. Não entendo Serra e Russomano serem líderes na disputa pela prefeitura nas últimas pesquisas de intenção voto. Não entendo como a polícia pode matar oito pessoas em quatro horas e isso não causar a queda de, no mínimo, o secretário de segurança e toda a cúpula da PM – para não dizer do governador do Estado (entendo que na mesma semana a mesma PM saia matando publicitários e outros jovens, mais bem nascidos). Não entendo como os ditos “cidadãos de bem” podem defender o atire antes, pergunte depois (ou desculpe-se, como nos casos mais recentes). Como não entendo a academia, devastando florestas para produzir pilhas de estudos sobre violência e não conseguir impôr sequer o debate (mais que tardio) sobre a existência de uma polícia militar numa democracia. Também não entendo o pensamento binário de boa parte da academia e dos chamados intelectuais tupiniquins. Não entendo porque ser professor universitário ou âncora de tv é condição homologadora de seriedade para qualquer pataquada dita. Não entendo o que seria um Estado “laico-cristão”, e não entendo porque sopão aos pobres seria uma ofensa aos valores desse Estado (apesar da segunda explicação da prefeitura ser bem razoável).

Não entendo porque carro é a vaca sagrada no Brasil, e não entendo porque o Estado é invasor do direito individual ao tentar evitar números de guerra civil de mortos no trânsito – mortes e mutilações plenamente evitáveis, mas que preciso ler, quase diariamente, de motoristas bêbados que atropelam inocentes.

Não entendo a instalação sendo feita em frente a praça Roosevelt, nem se é por um artista plástico bem de vida ou mendigo. Não entendo um grupo de turistas orientais abestalhados em frente a um açougue. Não entendo porque as personagens femininas do Haruki Murakami me atraem tanto. Não entendo a queda brasileira por filas.

Não entendo porque virou ritual entrar com pacote de pipoca fedorenta no cinema e mastigar de boca aberta. Não entendo pessoas que vão a danças ou concertos para bater papo ou ficar mexendo no celular. Não entendo certas coreografias que assisto (mas não é por isso que deixo de achá-las boas por isso). Como não entendo as mulheres (e quando acho que as entendo, descubro que não entendo mais do que achava que não entendia). Não entendo como duas pessoas acabam por se encontrar, numa seqüência de acasos que remonta ao dia em que cada uma nasceu. Não entendo porque acho poético o silêncio de um casal terminando (não quando estou envolvido), o momento em que parece abrir um abismo entre as duas pessoas – talvez seja a impressão que me passa (e que também não entendo) de que uma mágica, um milagre está à espreita nesse instante de abismo.

Não entendo o porquê de uma crônica que diz algumas coisas que não entendo. Mas não entendo nem a mim mesmo. Minha cara de paisagem, meu traquejo diplomático para certas situações e minha completa falta de jeito para outras (quando diplomacia não serve).

O que tenho compreendido é que com uma coisa que não entendo aqui, outra que não consigo achar sentido acolá, com algo que poderia esclarecer mas prefiro deixar na sombra, a vida vai ganhando contornos mais coloridos, vai se tornando mais cheia de surpresa, mais rica, mais plena, mais interessante – diferentemente de quando eu tinha uma opinião formada sobre tudo.


São Paulo, 17-20 de julho de 2012.

ps: ok, eu poderia não entender um pouco menos as mulheres.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Minha primeira namorada

Manuel Bandeira teve seu porquinho-da-índia como primeira namorada: começou mal, sua namorada desdenhava de suas "ternurinhas" e preferia o calor do fogão ao seu. Menos terreno e mais idealista, Drummond foi achar sua primeira namorada nas estrelas, em Orion: entre eles luziam quilômetros de silêncio, sem beijo ou toque.

Ainda que um pouco mais tardio que os poetas (pra variar, eu sempre atrasado, quando não há hora marcada), minha primeira namorada foi por caminhos parecidos: meu piano – eu tinha meus quatorze anos, por aí. Não sei se foi questão de sorte ou de esperteza (pensando bem, foi sorte), porém escolhi uma primeira namorada que não me fugia, nem se calava – e isso por mais que eu carinhosamente a maltratasse diariamente (na verdade, acho que os mais maltratados nesse meu namoro foram (são) meu irmão e meus pais, e olha que eles foram inteligentes ao não deixarem eu estudar bateria, quando tinha uns nove, dez anos).

Depois do piano, até consegui arranjar outras namoradas e, admito, mais interessantes: mulheres, como espera-se que uma namorada seja – dando início a um período de relacionamentos com intervalos bissextos entre eles, que eu bem tenho tentado, sem sucesso, encurtar para bienais, ao menos. Nunca me considerei um bígamo, ou que estivesse traindo meu piano com esses relacionamentos, ou com as paixões platônicas que apareceram no interlúdio – uma delas, por sinal, fazia sempre aula num horário contíguo ao meu.

Mas assim que saí da casa dos meus pais, admito, diante da impossibilidade de um piano em Ribeirão, flertei com a flauta transversal – pequena, leve, poderia me acompanhar aonde eu fosse. Meus pais só aceitariam essa minha nova namorada se me desfizesse de meu piano. Nada feito! Segui fiel à minha primeira namorada.

Umas férias fui ver se conseguia algo com violão. A experiência não precisa maiores descrições.

Em meados da década cogitei o pandeiro. Não cheguei às vias de fato. Se tivesse chegado, contudo, não consideraria uma traição: é certo que havia um interesse no instrumento, porém havia também a necessidade de aprender a pegar ritmo – até para conseguir tocar o piano sem maltratá-lo tanto.

Tempos depois descobri o piano elétrico – o qual, me convenci, não é bem um piano, é mais um simulacro de, de forma que posso dizer que, caso um dia tenha um, não troquei minha primeira namorada. Inclusive, já prometi a mim mesmo, se algum dia eu arranjar um trabalho assalariado, a primeira coisa que comprarei será o tal do piano elétrico.

Mas ontem, ouvindo uns tangos e tangos eletrônicos, me lembrei da espichada de olho que dei ano passado, num congresso de medicina, para um acordeon, que um dos futuros médicos tocava, acompanhado de um bigode (pareceu meio sem sentido essa última frase? Tudo bem, o referido estudante também). Além de mais prático para carregar (piano é sempre um trambolho, por mais que seja elétrico), um instrumento mais cinematográfico, de mais presença: não tem como não lembrar do filme Tango, de Carlos Saura, e, principalmente, O fabuloso destino de Amelie Poulain, do Jean-Pierre Jeunet. Por mais que eu já tenha tocado “La cumparsita” e ainda consiga tocar (arranhar) a “Comptine D'un Autre Été: L'après Midi”, do filme da Amelie, não é a mesma coisa: é a valsa tocada no acordeon que marca a trilha sonora do filme, assim como um tango sem um instrumento de palheta livre soa maneta.

Sabia que não era sério essa minha ideia do acordeon. De qualquer modo, para garantir que ficaria só no platonismo musical, pensei no trabalho todo que não teria para aprender um novo instrumento. Recordei da minha tentativa com violão, do mestrado por acabar e da graduação ainda começando, e reparei que me faltaria ânimo para encarar um novo desafio desse porte. Mas a gota d'água foi quando me lembrei que em tango se toca bandoneon e não acordeon. Decidi, enfim, permanecer fiel ao velho piano, minha primeira namorada – ao menos no que se refere a instrumentos musicais.


São Paulo, 09 de julho de 2012.

domingo, 8 de julho de 2012

Danças [Im]Puras

Um corpo tensionado não é necessariamente um corpo em tensão.

Imagino que tensionar um corpo a ponto de representá-lo em tensão não seja tarefa fácil – se é que é possível esse tensionamento não se tornar em tensão mesma. "Danças [Im]Puras", espetáculo de Maura Baiocchi e Taanteatro Companhia, arremessa o espectador nesse aspecto tenso – não se pode falar em clima, propriamente, pois a coreografia não dá tempo para a criação de um. De modo que me impressionou o fato de essa tensão – física – representada no corpo de um dançarino, apresentada de chofre, ser tão pulsante a ponto de reverberar no meu: era possível compartilhar da tensão – assim como certa angústia, determinadas horas –, isso apenas passando pelo corpo e a criação da situação – sem apelar para uma narrativa que se constrói no tempo e nele se distende. Pode ser proposta da criação, mas a um leigo (não totalmente ignorante, preciso admitir) em dança, a impressão de algumas falhas de técnica (que podem ser impressão errada do escriba leigo, também preciso admitir) ajudaram ainda mais nessa tensão.

Com influências do surrealismo, bem calcado em Lautréamont – como na mistura de objetos, elementos díspares, fora do seu uso usual (o encontro de um guarda-chuva e uma máquina de costura numa mesa de operação) –, partindo de um contexto mais ligado à natureza (tudo começa, ainda fora da sala de espetáculos, com um vídeo rodado no Parque Água Branca, na região oeste de São Paulo), “Danças [Im]Puras” constrói uma atmosfera onírica, mas atualizada para um tempo em que se desaprendeu a sonhar: não é pesadelo, mas tampouco é a realização de desejo: é claustrofobia – por mais que haja saídas, que haja o céu no horizonte.

Sob um céu tempestuoso, paredes com aspecto de gasto e galhos secos, os bailarinos bailam com girassóis ressecados e brilhantes, luvas de boxe feitas de esparadrapos se desfazendo em sanguinolências (ou seriam se fazendo, e o sangue seria da própria luva?), bonecas de um olho que arrancam a própria cabeça, um grande pássaro, uma coisa branca amorfa; tudo – sempre – em grande tensão, ora positiva – como na “Cópula Tatarana + Pombadapaz & Macacoshivapatodoparaíso” –, ora negativa – “Objeto fel” –, ora ambígua – “Tartarugaluvadebox & porco”. E tudo – coreografia, música, cenário, iluminação, figurino – muito coeso (e bem feito!), o que ajuda a prender ainda mais a atenção naquele universo de estranhas narrativas e expressivos significados.

Se, como disse no início, “Danças [Im]puras” começa por arremessar o público na tensão; no fim, ela termina por distendê-la, em “Partida: viver juntos'bar”, abandonando a platéia num estranhamento geral. Difícil é seguir a sugestão e encarar tranqüilamente um bar depois: como toda boa obra-de-arte, "Danças [Im]Puras" exige digestão lenta.


São Paulo 08 de julho de 2012.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

A Monsanto assume o poder no Paraguai

O Palmeiras bem tentou, venceu o Coxa no primeiro jogo da final Copa do Brasil, mas o assunto do dia ainda é o campeonato inédito do rival Corinthians. Para a semana que vem, talvez a discussão seja sobre a contratação de Ney Franco – responsável por montar esse time do Coritiba que é só o Marcelo Oliveira não estragar que ganha sozinho – pelo São Paulo. Para logo, deve voltar à tona o julgamento do mensalão ou a CPI do Cachoeira. Até lá, a foto de Maluf com Lula será assunto velho – precisará ser requentado para ter algum efeito, se tiver. Mais provável que seja esquecido, como esquecido estão as fotos de Maluf junto com FHC.

Semana passada, assunto quente era o Paraguai – coisa que esta semana já foi esquecida.

Em uma belo espetáculo da Caleidos Companhia de Dança, “Para seu governo”, eles souberam tratar com propriedade esse excesso de informação, a ânsia (e a possibilidade) de estar a par de tudo o que acontece imediatamente, para tudo esquecer no imediato seguinte – na busca de estar sempre up-to-date, verdadeiro up-to-minute (e eu não sei porque não escrevi uma crônica sobre o espetáculo).

Bem, eu queria falar sobre o Paraguai. Admito, pouco sei sobre o país. Sei que é um país pobre, desconfio que não tenha uma marinha, mas não garanto, com a elite que possui; sem ideologia outra que a do saque pelas elites, tem um Estado mínimo que não segue os pressupostos do Estado mínimo neoliberal: não faz seu papel de manter a ordem – necessária para o progresso, dizem. O atento leitor, a informada leitora, talvez já lembre algo sobre o que aconteceu em um passado recente por lá: um massacre em um conflito de terras foi o estopim para que o então presidente Fernando Lugo, em crise com sua base aliada, fosse destituído do cargo em menos de quarenta e oito horas.

Lembro que muitos dos meus amigos “de esquerda” (seja lá o que isso signifique, mas eles se põem nesse rótulo) no Facebook republicaram mensagem acusando a Monsanto de contribuir com a destituição de Lugo. Mais do que isso: a forma como era posta, a Monsanto era praticamente a artífice do que se tem chamado de golpe de estado legislativo.

Como disse: pouco entendo do Paraguai. Mas mesmo entendendo pouco, quase nada, tenho meus palpites sobre a acusação à Monsanto. Achar que ela tem todo esse poder, soa um pouco ingênuo. É como achar que o golpe militar no Brasil, em 1964, foi obra da CIA, tão-somente, e não havia setores das elites – política, econômica, agrária, industrial – que tinham interesses em jogo – para não falar de uma parcela da população que apoiava o combate ao comunismo a qualquer custo. Acredito que o mesmo deva valer no Paraguai: há disputa pelo poder político – como em qualquer país democrático, ou então o PT pedindo impeachment do FHC por causa das privatizações era uma tentativa de golpe –, há interesses econômicos – dentre esses, os dos grandes fazendeiros brasileiros, por exemplo, e o da Monsanto, por que não? – há tensões externas e internas, enfim. Por que resumir tudo a um bode expiatório?

Atacar a Monsanto também soa de uma confortável preguiça intelectual: encara-se a América Latina como quintal dos EUA, que fazem o que querem por aqui, como aconteceria há cinqüenta anos. Esquecem-se que o mundo mudou um pouco nos últimos tempos, e a ameaça de acordo de livre-comércio do novo governo paraguaio com a China mostra que os bons tempos da guerra fria, quando era fácil achar o inimigo, não dão mais conta do presente. A China já tomou o quintal do Japão, já assumiu o que era o quintal da Europa, e vem com tudo para o quintal dos EUA, com uma política agressiva de investimentos diretos e acordos comercias.

Posso estar enganado e a China tenha aparecido nessa história por mero acaso, sem querer, e sem nada influenciar no processo político paraguaio. Contraditoriamente aos meus amigos esquerdistas up-to-minute, eu só não descartaria as últimas novidades em nome das velhas ideologias – leituras um pouco menos simplórias do mundo e busca de análises um pouco mais embasadas talvez sejam mais importantes que compartilhar a cada dois minutos as novidades que corroboram arcaísmos.


São Paulo, 06 de julho de 2012.