segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Aquele que vê, aquele que domina.

Esteve em cartaz na Galeria Olido, e entra agora no Teatro Alfredo Mesquita (31 de agosto a 16 de setembro), "Experimentos cenográficos", do Balé da Cidade de São Paulo, com a direção artística de Lara Pinheiro. São quatro coreografias que, conforme o programa, visam “proporcionar uma perspectiva futura para jovens talentos e alimentar o mercado de dança com novos coreógrafos”. Fazem parte do programa “No' toque”, de Henrique Lima, “Papilon”, de Igor Vieira, “Aquele que vê”, de Liliane de Grammont e “Tempo”, de Fernanda Bueno. As quatro coreografias muito bonitas, as três primeiras tendo em comum uma tensão muito grande – ainda que por motivos diferentes.

“No' toques” parece ter uma tensão mais bruta: corpo em diálogo com os sons, sem apontar para uma harmonia – ainda que tensa –, como em “Papilon”, que chama a atenção pelo seu quê de onírico, e um duo mais que erótico, sensual.

Me detenho aqui em “Aquele que vê”.

A descrição – que começa com uma frase de Lacan, “o Outro é aquele que me vê” – comenta: “O que eu seleciono com o meu olhar, revela quem sou. Recorto a realidade e a reinvento. O outro, é uma abstração. Vejo e sou, sou visto e existo para o outro.”

Um das coisas que logo me chamou a atenção nesta obra não foi a questão da posição de quem vê, mas de quem é visto, aquele que é selecionado e recortado por esse olhar do Outro, e que só tem existência por causa dessa visão que faz emergir dadas figuras do que até então era fundo.

Há uma divisão bem delimitada entre o masculino e o feminino, e uma forte fragrância de machismo nessa divisão: os homens, vestidos de calça e camisa azuis, estão sentados nas margens do palco, enquanto as mulheres, em trajes pequenos, ocupam o centro ou circulam também pela margem. A diferença nos trajes deixa uma forte impressão de vulnerabilidade das mulheres. A diferença nas localizações reforça a posição de senhor do homem – se pensarmos numa dialética hegelo-marxista –, com as mulheres, apesar da sua vulnerabilidade, ocupando o centro do palco, da ação. Ademais, se o olhar do outro seleciona o que terá existência – e aqui o como o Outro se apresenta é importante para entrar no recorte –, aquele que pode ser olhado é cativo de um olhar que não o reconhece necessariamente, e por isso é obrigado a se sujeitar a estar nesse centro, vigiado de todos os lados, tendo que agradar, chamar a atenção, atrair.

O fato da coreógrafa ser mulher não deve ser desprezado. Entretanto, é curioso notar que a vulnerabilidade das mulheres em seus mini-trajes existiria igualmente se ao seu redor estivessem mulheres vestidas de calça e camisa azuis: antes de apontar para um culpado, um bode expiatório – os homens, o machismo –, a coreografia abre para a questão da relação entre seres genéricos, a relação entre papéis sociais – encarnados por homens e mulheres, mas que não são naturalmente de um ou de outro. Em suma, complexifica a questão de gênero a partir do que um dia foi seu símbolo mais imediato – o vestuário –, e o faz sem inverter essa simbologia.

Se as posições no palco, no início e em boa parte da apresentação, cheiram a dominação masculina, a dominação de quem, na verdade, está à margem, as várias coreografias têm um toque feminino, mesmo as com os homens – uma proposta de “feminilização” e não de “masculinização” como resolução dessa dominação? Nos duos (um no início, outro no final), uma tensão erótica muito grande – e sempre com a impressão de dominação masculina, então finalmente em ação de comando. No duo final, mais do que tensão, violência, com a bailarina, cercada inicialmente por dois homens, ainda mais exposta ao ter sua roupa arrancada. A violência logo se transmuta em tensão erótica, deixando no ar a dúvida se haveria sexo asséptico e politicamente correto – um contrato entre duas pessoas para usufruto das faculdades sexuais do outro, mais ou menos como disse Kant sobre o casamento, em fins do século XVIII – ou se as dissimetrias, desde que tidas seus devidos espaços e momentos, não são parte da sexualidade humana contemporânea.

A coreografia termina ao som de criança rindo, como a indicar uma grande inocência em tudo aquilo, no sentido de desfrute do presente e não em engessamentos do futuro em promessas românticas de felizes para sempre. Claro, antes disso houve uma série de momentos de dominação, de recorte do Outro, de violência, que não podem ser esquecidos – resta saber se cabem serem carregados como máculas que impedem o desabrochar pleno do presente.


São Paulo, 27 de agosto de 2012.

sábado, 25 de agosto de 2012

[Vídeo] Mogwai: Mexican Grand Prix (versão 0.1)

Video-clip para a música "Mexican Grand Prix", dos escoceses do Mogwai, como se eu não tivesse nada pra fazer.

 

São Paulo, 25 de agosto de 2012.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Woody Allen agência de viagens (e de publicidade) apresenta: Roma (a os programas de celebridades)

Já quase saindo de cartaz, amiga me chamou para assistir ao último filme do Woody Allen, Para Roma com amor. Já sabia que o diretor estava no esquema de fazer filmes promocionais de cidades, mas ainda guardava alguma esperança – e não esperava o bombardeio de merchandising. Saí do cinema achando um filminho pop-cult, minha amiga foi da opinião que era pop, ponto; e pensando um pouco depois, me vejo a concordar com ela. O que não o impede de ser uma comédia boazinha, sem apelação, e que autoriza até certa crítica da sociedade (e me fez lembrar que eu deveria estar estudando, o que atrapalhou um pouco meu cinema).

São quatro histórias, cujo cenário é Roma.

Por um tempo imaginei que as histórias, a la Inárritu-Arriaga, iriam se cruzar – o que seria um razoável desafio, já que elas possuem temporalidades muito distintas. Não se cruzaram: são quatro histórias distintas, nas quais único ponto em comum é o local. E é Roma como poderia ser Veneza, Milão, Paris, qualquer cidade que concilie alguma fama de romântica e cosmopolita – isso para uma das histórias, a do casal em lua-de-mel; as outras três poderiam se passar em qualquer cidade que não fosse um fim de mundo.

Da parte agência de viagens, esperava que as paisagens de Roma seriam mais exploradas e, quando apresentadas, que fosse feito com um pouco mais de calma, com a cidade tendo um relevo maior tanto na trama quanto nos planos. Tem uma participação bem modesta. Em Anjos e demônios, filmeco de Ron Howard, tive a impressão da cidade ter um destaque maior.

Como quem patrocinava o filme, além de uma série de empresas, era a própria cidade, o filme, apesar de fazer humor com o estilo italiano, perde a oportunidade de fazer o mesmo com Roma. Pior, a apresenta de uma maneira idealizada a ponto de parecer cidade cinematográfica: quem já foi à capital italiana sabe o caos que a referida urbe é: o trânsito é insano, é preciso se pôr na frente dos carros para cruzar a rua (ao menos eles não te atropelam), o transporte público é lotado; o filme se passa, se não no verão, em período de clima ameno: a cidade é um formigueiro de turistas nessa época. Para não falar na ausência de artistas de rua e de pedintes, que há aos borbotões – eu, que comprava o discurso da social-democracia européia, me choquei com isso quando a visitei.

O ponto crítico do filme – e talvez o mais engraçado também – é a história do Leopoldo Pisanello (interpretado por Roberto Benigni). Trata-se de um homem comum, que vive uma vida absolutamente banal, beirando o chato com suas opiniões sobre tudo, que não fogem ao senso comum. De repente, ao sair de casa numa manhã, se vê cercado por repórteres e fãs, perseguido por paparazzis, é chamado para entrevistas na televisão, instado a fazer qualquer pronunciamento. Nas entrevistas, o que comeu, como prefere o pão, que cueca usa; reportagens sobre como faz a barba, pronunciamento sobre a possibilidade de chover, casos com atrizes famosas. Nenhum minuto de paz desde que põe o pé fora de casa. O motivo para ser famoso, conforme seu motorista é a tautologia "famoso por ser famoso": para a sociedade do espetáculo (não estava estudando, mas não me desliguei do mestrado, viu só?) não é preciso razões que não simplesmente ser – sendo que ser nela é aparecer. Depois de consideravelmente dilapidado pela indústria cultural, sua fama some como apareceu: uma hora se interessam por um outro transeunte, Aldo Rodani, e Leopoldo volta a ser um absoluto zé ninguém, de quem ninguém se lembra, já no dia seguinte.

Crítica às celebridades instantâneas. Mais do que isso: crítica à futilidade do espetáculo e suas vedetes: o engraçado dessa história está no fato das reportagens de fofocas de famosos deslocadas para a vida de um homem banal. O questionamento que sobra é: o que há de diferente da vida dele para a de um ator de cinema ou tevê? Um aparecer sempre, o outro nunca, basicamente. Por que o aparecer o faria superior aos anônimos do espetáculo, de modo a torná-lo importante para o quotidiano de pessoas comuns? O que há de original em qualquer um dos dois, no dia-a-dia, nas opiniões? Nada. Simplesmente um foi eleito pelo espetáculo, o outro, não: por isso é influente na sociedade do espetáculo. Há apenas a fama, e os convites para esse círculo dos famosos, que alimenta... a fama. A tautologia de ser famoso por ser famoso não nos assusta porque o espetáculo anda em círculos: nós é que imaginamos vislumbrar novidades nas modas retrô.


São Paulo, 23 de agosto de 2012.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Sinceridade de mãe

Amigo meu, leitor de Montaigne, comentou, dia desses, que o ensaísta francês fala que virtude em excesso deixa de ser virtude. É o que estou tentando explicar para minha mãe esta semana: sinceridade em excesso pode não ser algo muito legal – ainda mais ser sincera com um filho espírito-de-porco como este escriba.

A primeira resvalada de sinceridade de minha estimada progenitora se deu há uns cinco anos. Conversávamos pelo skype e uma hora ela solta: “teu irmão é inteligente, você é esforçado”. Além de sincera, foi também uma mostra de ingenuidade da minha mãe, ao crer que eu seja esforçado – a não ser que ela encare positivamente o fato de eu me esforçar para fugir da labuta. Agradeci pela sinceridade e pela parte que me cabia. Ela quis se explicar, não deixei: a frase estava boa assim; se explicasse, estragava! Até hoje ela tenta se explicar, toda vez que relembro que meu irmão é inteligente, enquanto eu, eu sou esforçado.

Nova mostra de sinceridade ela me deu esta semana, que passo na casa dos meus pais. Ao contar de uma amiga deles, que depois de falar as agruras com seu filho, concluiu: “vocês que tiveram sorte com os filhos”; minha mãe olhou para mim e comentou: “não sei se foi sorte”. Não deixei que terminasse a frase: estava ótima! Novamente, quis se explicar, que ter dito que não sabia se fora sorte não significava que estava dizendo que tiveram azar, pelo contrário, mas eu já tinha entendido o que precisava.

Por sorte, sou um rapaz bem resolvido, e a sinceridade de minha mãe uso como piada (e agora como crônica – "claro", diria ela). Ela, por outro lado, parece estar começando a se traumatizar com o filho...


Pato Branco, 15 de agosto de 2012.

PS: além de me achar esforçado, e que não sou um caso de sorte, minha mãe, como boa mãe, também reiteradamente repete que me acha bonito: sinal que ela vê sempre o lado positivo, ou que não tem um discernimento lá muito grande?

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Olha o rapa!

Estou caminhando na rua Coronel Xavier de Toledo, próximo à entrada do metrô Anhangabaú, em direção à Paulista. Percebo um certo frenesi entre os ambulantes: é a guarda civil municipal fazendo o rapa. A novidade para mim é que desta vez passo quando o rapa está em ação, e não quando já passou ou é ainda apenas uma ameaça. Logo estão todos os ambulantes recolhendo rapidamente suas mercadorias e partindo em disparada. Alguns levam só os produtos, mesmo, e deixam as caixas onde as expunham. Outros – como o criminoso que vende cedês de mp3 – saem carregando a caixa na cabeça.

Vindo na outra direção, um negro, desses que vendem relógio e bijuterias, fura o primeiro cerco, mas corre na direção errada e é pego no segundo – praticamente na minha frente, que de início me assunto com uma mulher caindo. O homem se desvencilha da mochila que um dos guardas segurava e desce as escadas, ainda com uma maleta. Tropeça e cai. Os dois guardas decidem empreender a caçada: um deles sai correndo atrás do bandido, cassetete numa mão, a mochila na outra. O outro já desabotoou o coldre e troteia atrás dos dois com a mão na arma.

É prendendo vendedores ambulantes de berloques que São Paulo ganhará o selo de cidade civilizada, vindo diretamente de Genebra, penso.

Uma multidão se forma para acompanhar a fuga – só um casal se beija alheamente ao que se passa ao redor. Não chego a olhar com atenção, mas numa vista rápida, conto cinco carros da guarda civil municipal: combate eficiente ao que há de mais pernicioso na sociedade, pelo jeito: dá tempo pra correr atrás de camelô. Duas mulheres me perguntam se foi assalto. "Não, rapa", "Ah, coitado". Um guarda com uma lanterna vasculha um local escuro e acha um papelão com capas para celulares. Noto a grandiosidade da obra da guarda: o Brasil sem as nocivas capas para celulares estará a um passo de se tornar um país desenvolvido.

As pessoas começam a se dispersar, eu também sigo meu rumo. No caminho, um bichinho de pelúcia no chão, que o ambulante não conseguiu pôr no saco e a guarda não recolheu como prova do crime. Quem se abaixar para pegá-lo terá economizado cinco reais.


São Paulo, 10 de agosto de 2012.

Bela Vista – Sé – República – Jardins

Meu programa ontem foi sair à cata de uma farmácia. E digo aqui farmácia mesmo, e não uma atendente exuberante, uma nova Ruth, que essa eu já encontrei (não em farmácia), só não tive tempo ainda de escrever sobre. É que Aílton, meu homeopata, havia achado caro o orçamento feito pela botica ao lado de casa e me sugeriu procurar em algum lugar menos esnobe. Atendendo ao sábio conselho de um dos caras que mora comigo, procurei no Gugou uma farmácia de manipulação, e achei uma próxima ao Masp. Vi no mapa como chegar lá e saí de casa apressado, pois ainda queria ir pra PUC estudar. A farmácia fica no bairro da Bela Vista, que é um labirinto. Desço as duas ruas indicadas pelo Gugou, nada de achar a rua da farmácia. Sigo em frente, e nada da maldita rua – por conseqüência óbvia, não achei a dita farmácia, tampouco. Tanto desci, que decido ir até a Brigadeiro Luís Antônio, onde vira na internet o anúncio de duas. Desço, desço, desço, nada de farmácia de manipulação e homeopatia. Desisto: melhor ir até a Sé, lá com certeza tem e chego fácil de metrô, para buscar, no outro dia.

No viaduto Pedroso, o albergue para moradores de rua, uma das mais grosseiras piadas de mau gosto que vi em São Paulo, não por mandar os moradores de rua literalmente para debaixo da ponte, mas pelo seu número: 111 – aos que não lembram, o número oficial de pessoas mortas no massacre estatal-policial do Carandiru, em outubro de 1992.

Na rua Galvão Bueno, passo por uma loira que me fez lembrar do jogo Noruega contra Coréia do Sul, que eu assistira uma parte, na academia – eu sei que Coréia e Japão não são a mesma coisa, nem há só loiras na Escandinávia. No meio da avenida Liberdade, entre as duas pistas, um mendigo faz uma fogueira.

Próximo à Sé, encontro a primeira farmácia – finalmente! Quando estou entrando, noto que a garota de programa com cara de bunda encostada na parede se ajeitava, provavelmente imaginando que me ia em sua direção. Peço o orçamento: dez reais mais caro do que na farmácia perto de casa – no creo! Em outra farmácia consigo um preço mais em conta. São quase cinco da tarde, ainda planejo assistir a uma dança na Olido, e acho que não vale a pena encarar a linha vermelha duas vezes em duas horas: melhor fazer alguns corres que precisava pelo centro.

No CCBB a fila faz curva – aí uma coisa que brasileiro parece adorar, filas! Páro nas lojas Americanas, comprar barras de cereais por metade do preço do Pão de Açúcar: almocei há três horas e preciso comer, por conta da hipoglicemia. Na loja, tenho a oportunidade de ouvir um sertanejo que parece ameaça de seqüestro (descobri que era sertanejo ao procurar a letra na internet): “O meu cartão foi bloqueado/ E o meu limite tá estourado/ Sou simples, mas eu te garanto/ Eu sei fazer o Lê Lê Lê/ Se eu te pegar você vai ver". Perco a fome. Na fila, tenho o imenso prazer de ouvir um pagode de um cara usando boné de aba reta com as letras NYC: "Deve ser o mel que a mamãe me passou/ Deve ser o céu que elas pedem, eu dou/ no amor eu tenho dom e a cada flecha um coração/ eu sou o Robin Hood da paixão". Uma das flechas ele deve ter errado e me furou o estômago: começo a ficar enjoado. Na segunda música (que tentei ao máximo não ouvir, sei que falava do céu, parecia quase um romântico gospel), tenho ânsia. A fila parece demorar décadas para andar – e nem a morena bonita pouco atrás de mim é capaz de aliviar a tortura daquelas músicas.

Fora, em frente ao shopping Light, o bailarino-cover de Michael Jackson que às vezes passo pela Paulista se apresenta a um bom público. Mulheres vendem chip de celular – com bônus! Um homem distribui panfletos de um inferninho – me traz à memória mi Buenos Aires querida! Vou até o Municipal, comprar o ingresso pro concerto de sábado. Na saída, ouço uma dupla cantar "tchê tchê tcherê tchê tchê". Lembro da última vez que fui ao Municipal, e na hora que entrava um homem gritava do outro lado da rua: "infiel! Está negando a palavra de Deus! Vai queimar no inferno! Infiel!" Provavelmente o infiel deve ter pedido para ele baixar o som, ou mesmo parar de cansar Deus e seus filhos com aquele monte de asneiras. Reparo, então, que não cruzei com nenhum chato de Bíblia na mão, berrando (ou com caixa de som), enchendo o saco dos infiéis. Não precisei arremedar Castro Alves: "Deus, ó Deus, onde estás que não responde, e manda um raio nesse chato?" Pelos meus planos, voltaria a passar por ali em menos de duas horas. Noto que estou cansado, e decido fazer o que ainda preciso – para o caso de decidir ficar em casa estudando, ao invés da dança.

Passo pela galeria do Rock. Vejo bonés com o mapa de São Paulo sendo vendidos – tenho medo do fascismo paulista. Pela primeira vez me oferecem tatuagem e piercing. Lembro da japonesa de tatuagem na testa, que encontrei duas vezes quando tinha pouco tempo de São Paulo – depois, nunca mais a vi. Lembro também da japonesa com quem trombei esta semana: se a da tatuagem da testa se vestia toda de preto, essa estava de branco, saia e uma camiseta larga, de gola aberta, que insinuava uma tatuagem que devia cobrir todas suas costas: mais do que desenhada, parecia esculpida. Cruzo com um homem de meia idade vestindo blazer que parece repórter da BBC dos anos 70. Atravesso a São João. Na lanchonete, não vejo o que busco, peço ao atendente. Ele vai para o fundos da loja e me traz dois pacotes de erva. Repete o que já dissera das outras vezes: "só a gente e a loja aqui do lado tem destas ervas, pode procurar por aí". É um pacote de Amanda e outro de Rosa Monte – um pra consumir em Sampa, outro pra levar pra Pato.

Já no caminho de retorno ao lar, entro em vão num sebo em busca de algum livro do Murakami. No viaduto Nove de Julho quando percebo um homem está tombando na calçada. Um senhor vai ajudá-lo a se levantar, repõe seu boné. Pelo caminhar, o homem que caiu parece bêbado, pelo falar, não. Eu sigo, e reparo que aquele é um caminho que faço seguidamente, dificilmente de dia. Páro no Conjunto Nacional para escrever os tópicos desta crônica: sei que ao chegar em casa vou ligar o pc e esquecer o que tinha que fazer. Decido também não ir na dança: vou aproveitar pra tomar un bueno mate argentino (lamentando a derrota do Brasil no basquete, é certo). Ao chegar em casa me dou conta: esqueci de comprar guioza pro jantar. E nem preciso dizer que não estudei.


São Paulo, 10 de agosto de 2012.


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Cronista crônico

A primeira vez que ouvi algo do gênero foi da minha mãe, no aniversário de noventa anos do meu avô. Em meio à festa, mais pro final, comentou, olhando para mim: “já vejo que isto vai virar uma crônica”. Não virou. Porém notei que minha estimada progenitora tinha encasquetado que eu transformava qualquer acontecimento em crônica. “Coisa de mãe”, pensei eu, sabendo ser ela uma das minhas poucas leitoras cativas, junto com meu pai – pelos motivos óbvios.

Dia desses estava numa despedida de um amigo, que iria para um curso na Bauhaus, e depois de um dos seus amigos ter seu isqueiro roubado (!), meu amigo viajante falou: “aposto que o Dalmoro vai escrever uma crônica sobre isto”. Não escrevi. Creio que mais por falta de tempo do que vontade, é certo. Mas comecei a me dar conta que ando com certa fama de cronista crônico, quase um big-brother do quotidiano – ao menos não tenho mais uma opinião formada sobre tudo, como quando comecei a escrever por hobby e não para redação da escola ou cursinho.

Fama essa reafirmada pelos meus amigos de república. Como somos jovens-não-mais-tão-jovens, sem pré-combinarmos acabamos tendo quase quotidianamente uma “hora do chá”, que não é às cinco da tarde, com chá preto, à moda britânica, e sim às onze da noite, com chá de cidreira, camomila, e ervas do gênero. Na hora do chá de ontem eles cismaram que eu preciso parar de escrever: “quando você sair à noite, ao invés de pensar na crônica, viva!”, sugeriu um deles, como se eu tivesse trocado qualquer programa mais interessante por uma crônica – e não o contrário, que já tivesse aceitado programas aparentemente desinteressantes pensando numa possível crônica.

Tentei justificar minha escrita em larga escala deste ano como uma tentativa de enganar a mim mesmo, que estou produzindo algo quando na verdade precisava era produzir minha dissertação. “Cara, você olha uma garota e já pensa numa crônica”, me acusaram injusta e erroneamente: olho uma guria, penso em puxar papo, mas como não sei o que falar – minhas abordagens estão mais para harakiris do que para cantadas –, acabo sendo levado naturalmente à crônica – muito eventualmente ela é interrompida bruscamente no meio, como no evento de Camila, a moreninha da balada, que só virou crônica quando não virava mais nada com a referida guria.

No fim, eis-me aqui, a escrever uma crônica para dizer que não sou desses que transformam tudo em crônica: tenho me aventurado por alguns contos e novelas também!


São Paulo, 08 de agosto de 2012.

ps: e Ruth existe de verdade!

domingo, 5 de agosto de 2012

Estudo ou dança? Rolê pelo centro.

Hesitava entre ficar em casa e estudar e ir a uma apresentação de dança. Como vi que não iria estudar de qualquer forma, decidi pela dança. Nenhuma novidade até aí – sempre tenho essa dúvida, sempre vejo que não vou estudar, sempre decido pela dança. O diferente foi que desta vez eu decidira faltando vinte minutos para o início do espetáculo. Me arrumo correndo: ponho minha camiseta do Mahler, lembro de pegar a caderneta pra qualquer anotação. Vou de metrô para chegar a tempo. Desço no metrô República. Um hippie toca violão elétrico e canta algo que não reconheço. Me surpreendo com uma fila em frente a um cinema pornô: que raios estará acontecendo? Terá reabrido de repente como cinema normal? Ao me aproximar, noto que a fila é para o fast food ao lado. Quase chegando à Olido, ouço uma moradora de rua contando a outro: “deu um tiro e saiu correndo”. Fico me perguntando se o tiro era de arma ou de pó. Chego em cima da hora para a apresentação: ingressos esgotados. Costumo chegar sempre com meia-hora de antecedência, raríssimas vezes presenciei a sala Paissandu lotada, mas eis que hoje...


Frustrado, decido dar um rolê pelas quebradas, olhar o movimento, quem sabe escrever uma crônica.

Vou até a Rio Branco, caminho um pouco por ela e entro em uma perpendicular que me parece um pouco mais movimentada, em direção à Consolação. É a região que os transeuntes me dão um pouco de medo, admito – mas nada que me faça fugir de lá. Nóias passam tranquilamente. Há lixo pelas ruas – muito lixo espalhado. Creio que houve época que isso era feito por cachorros. Pessoas bebem nos bares. Em frente a um inferninho, o porteiro com a camiseta do Corinthians joga algo no celular. Prostitutas passam, trans vão para seus pontos, uma moça que não sei se trans ou mulher me oferece seus serviços. Agradeço sem parar. Enquanto passo pelas vielas da cidade sujas de lixo, as calçadas congestionadas pelas mesas dos bares, me pergunto o quanto não circula de pó (cocaína, mármore, maisena) e DSTs por entre as veias de quem tem na rua mais do que um local de passeio – preconceito meu? Quantos sonhos frustrados não povoam aquela região da cidade – da população e da própria São Paulo –, e quantas pessoas ali nunca tiveram sequer a possibilidade, o direito de sonhar? Sonhar é de graça, mas tem horas que acho que é preciso ter pelo menos dinheiro para conseguir fazê-lo de forma que não se torne apenas outra frustração. Ouço o fim da frase de uma garota de programa, em frente a um inferninho, abraçada a um rapaz: “afinal, você é meu namorado, não é?” Os anseios por uma vida banal não faz distinção de classe.

Ao cruzar a São João o medo muda de figura: temo agora a polícia: se me pegarem, não sei se tenho dinheiro suficiente para salvar minha pele. Quem não deve não teme, dirão os cidadãos de bem, crentes de que se estou andando por Cracolândia e Boca do Lixo é porque suspeito sou. E a quem pensa assim, espero mesmo que tenha razão: não gostaria de ser o que esse tipo chama de pessoa de respeito.

Desta feita reparo um pouco nos prédios. Há prédios antigos, década de sessenta, setenta, bem conservados. Há um monstrengo que tem nos primeiros andares estacionamento: um prédio desses é um atentado a qualquer cidade. Passo por um dos primeiros prédios do Niemeyer. O Copan está ali perto: para São Paulo, cai bem, mas creio que se fosse em Barcelona, por exemplo, teria sido um atentado contra cidade, violento e feio como o prédio de estacionamentos – ou prédios de vidro verde. Reparo em um prédio novo, na beirada do Minhocão, com muitas placas de aluga-se e vende-se. Minhocão que, como comentou um amigo estudante de arquitetura, é um muro que protege os pobres das regiões degradadas do avanço da especulação imobiliária – ou seja, uma reserva de mercado de três quilômetros para as empreiteiras–, e protege os ricos da turba fedorenta que limpa latrinas e atende em lojas.

Uma festa infantil acontece no primeiro andar de um prédio, em frente travestis fazem ponto. Passo por um bar chamado “Canela de prata” e, a la Francoy, me vem à mente futebol paraolímpico. Passo por uma travesti com quantidade industrial de silicone nos seios – a impressão que dá é que vão estourar a qualquer momento. É domingo, início da noite, o movimento, salvo nos bares de uma avenida, é tranqüilo. Uma hora escuto um estrondo do outro lado da rua, me abaixo me protegendo (se é que se abaixar protege de algo) do que pode ser que tenha estourado. Alarmes de carro disparam. Meu ouvido zune. Um homem parado na frente de um prédio, um pouco a minha frente comenta com outro: “putaqueopariu, que cagaço!”, “mas você não viu o cara do estacionamento pondo a bomba?”, “vi porra nenhuma”. Não entendo o porquê de estourar a tal bomba em frente ao próprio estacionamento. Sinto um cansaço gigantesco: a descarga de adrenalina foi forte. Mais do que cansaço, meu corpo dói do susto. Decido que é mais do que hora de voltar pra casa.

Em frente a uma igreja presbiteriana, o vendedor de pipocas espera sua hora (de ganhar dinheiro) ouvindo o jogo do Santos. Já na Augusta, cruzo com um cadeirante fazendo rali – imagino se fosse pro caminho da casa da minha amiga na Penha: estaria impedido de circular. No inferninho do Garcia, mentor espiritual do meu amigo [j.mp/cG25712], novidade: está uma mulher de maître, vestida de social e tudo o mais. Os bares estão pouco movimentados – só no início da Augusta, uma balada parece mais agitada. Ao passar pelo Cine Sesc, reparo no inferninho que fica logo ao lado – inferninho de luxo: até nisso o Sesc soa ascéptico. Mais ou menos defronte o cinema, do outro lado da rua, uma moradora de rua tira algo da roupa – não sei se bolinhas da blusa de lã ou insetos. Na revenda de carros próxima de casa noto que mais um Porsche foi vendido.


São Paulo, 05 de agosto de 2012.

sábado, 4 de agosto de 2012

Uma mocinha bonita e um amigo repentinamente atraente

Havia estipulado como regra em texto antigo – quando ainda buscava uma nova Ruth – que para uma guria constar como personagem de crônica, eu deveria cruzar com ela três vezes – claro, quando acontecesse uma noitada um pouco mais fora do comum [j.mp/cG25712], não precisaria seguir tal regra. Descobri que há algumas pessoas realmente desocupadas e que me lêem com certa assiduidade – e não são meus pais! Essas já notaram, certamente, que desrespeitei tal regra várias vezes – se bobear comecei na crônica em que a estipulava.

Quebro novamente a regra. Não por ter tido uma boa noitada, como eu bem gostaria – até porque as melhores eu não lembro de transformá-las em crônicas, mais ocupado fico com outras coisas. A questão foi mais singela: uma mocinha bonita e um amigo repentinamente atraente.

Fui com meu amigo assistir ao show da curitibana Copacabana Club, na Augusta, e me deparo com uma guria muito bonita – até aí, há muitas. Reparando um pouco mais, me pareceu uma personagem saída de um romance do Murakami, o que me deixou absolutamente encantado por ela. Se tratava de um pequena japinha (menos de um metro e sessenta, certamente), magra, miudinha, cabelo curto, delicada, muito bonita, como já disse, e que passou o show todo dando a impressão de que brincava de esconde-esconde com o amigo mal humorado que a acompanhava – um jeito meio de “moleca” e muito alheia ao que acontecia. Pelo tamanho, poderia ser Yuki, de Dance dance dance, pelo alheamento e ter mais de dezoito anos, Sumire, de Minha querida Sputnik.

Enquanto eu me hipnotizava pela personagem do Murakami, que só me notou no final da balada e passou por mim com uma graciosa falta de jeito e timidez, sem dar qualquer abertura – o que foi bom por um lado, pois evitou que o sem jeito fosse eu, de modo a me fazer voltar para casa frustrado por não ter aproveitado a oportunidade –, meu amigo ficava parado e as pessoas davam em cima dele. Não sei se foi porque a moda o alcançou – ele usa barba e óculos –, se foi o poder sedutor da sua aliança – ele é casado –, sei que quase me sobrou uma garota e um bombadinho – naquele esquema: “estou a fim do casado barbudo de óculos, não quer ficar com o amigo dele enquanto isso?”. Como meu amigo não queria nada, também não me sobrou nada. Além dessas duas pessoas, outras duas mulheres e outro cara se esfregaram nele ou lançaram olhares lascivos. Ele seguia parado, fazendo observação antropológica, como o próprio definiu seu aspecto de tédio. Ok, nenhuma era a japinha do Murakami – ou o amigo dele –, mas não deixei de me sentir um tanto rejeitado – fosse ele um sex symbol, até compreenderia. Talvez ele tenha apenas agido como um cara cool, como Calvin uma vez fizera, e eu usava algum "sombrero existencial":



No fim, voltamos para casa conforme o esperado: um acompanhando o outro. A diferença é que d'ele isso era esperado porque não faria nada além; já de mim, porque não conseguiria nada. Tentei retomar Quadrilha, do Drummond: João desdenhava Teresa que desdenhava Raimundo/ que desdenhava Maria que desdenhava Joaquim que desdenhava Lili/ que não desdenhava (quase) ninguém. Se apareceu algum J. Pinto Fernandes na história, não fiquei sabendo, pois já estava em casa, escrevendo esta crônica besta.

São Paulo, 04 de agosto de 2012.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Pássaros eletroacústicos, músicas esvoaçantes

Aconteceu neste domingo, 29 de julho, no Parque Água Branca, em São Paulo, mais um concerto do pessoal de música experimental do Nova Música Eletroacústica (NME). Foram dois concertos, um de improvisação, feito ao ar livre – com direito a crítica no jornal O Estado de São Paulo [j.mp/OFZDqG] –, outro com sete peças, na sala do Tattersal. Assisti apenas ao segundo. Antes de comentar o concerto (atenção! é comentário e não crítica, como a do João Marcos Coelho), falo um pouco do NME e da minha relação com ele.

O NME é capitaneado pelo músico Tiago de Mello e foi formado em agosto de 2011. Segundo a página do projeto [www.nmelindo.com], até antes do concerto de domingo, haviam sido "realizados 18 concertos entre as cidades de São Paulo e Campinas, e um concerto especial em Rio Claro. Nesses concertos, foram apresentadas 51 obras, de 34 artistas diferentes, entre músicos, videoastas, artistas plásticos e bailarinos. Músicas acusmáticas de diferentes formatos, bem como acompanhadas de vídeo, e até vídeo sem acompanhamento de música: a variabilidade técnica proposto pelo NME é também parte de uma variabilidade estética, onde não se procura privilegiar 'escolas', abrindo espaço para que compositores jovens ou experientes possam trocar".

Conheci o projeto no final de 2011, quando fui a uma apresentação na Unicamp, para prestigiar uma amiga, Julia Telles. Até então, além de alguma coisa de Stockhausen, sabia de música eletroacústica apenas de ouvir falar – pela própria Julia. Para quem gosta de Sonic Youth, Mogwai, Sigur Rós e pós-rock em geral, além da chamada "música contemporânea", não tive nenhum choque que alguém eventualmente limitado ao repertório da Orquestra Sinfônica de Campinas teria, não me perguntei: "isso é música?" Desde então, sempre que posso, vou aos concertos, não mais simplesmente para prestigiar amigos, mas pela música, mesmo.

O concerto de domingo era temático: "NME pássaro – pássaros eletroacústicos, músicas esvoaçantes". Faço meu comentário pensando não em cada obra em particular, mas cada uma das sete em relação ao conjunto – depois, conversando com um dos compositores, Felipe Merker, ele havia comentado que, provavelmente por ser temático, sentira qualquer semelhanças entre peças, talvez um a mais nos agudos. Além disso, me senti avalizado para meu comentário de leigo, quando Felipe também comentou que julga interessante e importante o retorno de quem não é da área – não que os comentários técnicos não sejam importantes, mas vê valor de diálogo nas interpretações mais "poéticas", mais livres das obras. Algo semelhante já me havia dito o ator e diretor Alexandre Caetano, alguns anos atrás.

Uma das coisas que mais chamou a atenção foi que (para mim!), apesar do tema – pássaros –, nenhuma obra caiu no bucolismo, numa apologia da natureza virginal e bela apenas enquanto intacta – um discurso fácil (de produzir e de ser aceito) nestes tempos de ânimos verdejantemente acirrados. O que senti nas obras foi desde uma tentativa de convivência entre cidade e pássaros até o afugentar destes por aquela, chegando a pássaros artificiais em um céu poluído de ondas de eletrostáticas – esse céu poluído para mim bem marcado em “E por isso hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que não o olho mas sinto”, de Adriano Monteiro. Em nenhuma obra, de qualquer forma, vi (ouvi, na verdade) tentativa de propôr uma convivência harmônica: antes, a proposta de uma convivência em tensão – a relação entre homem e natureza como iminentemente política, por mais que pássaros sejam animais desprovidos de capacidade política. Nessa tensão, tecnologia, cidade, natureza, obras de arte “clássicas” se misturam, ora com um aspecto se sobrepondo, ora outro, ora conseguindo alguma sincronia, ora em completo diacronismo: não é por isso que deixam de conviver, que precisam da aniquilação do Outro. Ao fazer esta referência última, penso principalmente nas obras "Do Francisco e do Tiago para Schubert e os passarinhos", de Franciso de Oliveira e Tiago de Mello, e "Chromasia", de Ricardo Lira. Em menor grau – mostrando uma tensão mais violenta entre homem, arte e pássaros, com piano sendo tocado ao fundo, sons de pássaro e de gaiolas sendo fechadas (ou seriam abertas?) com estardalhaço –, "Gamayun", de Henrique Chiurciu.

Em "Pássarosino", de Gabriel Hidalgo, sinos fazem as vezes de pássaros, que sem serem fúnebres, não deixam de passar certa estranheza: onde estão os pássaros diante desses sons tão tipicamente urbanos?

Já "Pequena coleção de esboços", de Felipe Merker Castellani e "Das trevas, sabiá", de Rodolfo Valente, me fizeram lembrar – principalmente o início da primeira obra – algo do futurismo, numa toada mais Sol e aço, de Yukio Mishima, que possui uma verve menos panfletária, explosiva. As gravações de áudio de pássaros, presentes nas obras anteriores, são substituídos por sons eletrônicos que reproduzem o trinar de aves – no início da obra de Merker de maneira que soa bastante positiva, que no meio inverte a curva apologética desses pássaros metálicos, criando uma paisagem mais sinistra, desenvolvida com mais ênfase nessa direção por Rodolfo Valente.

O fato de sair do circuito universitário – algo que vem sendo feito desde o início do ano, ao menos em São Paulo – foi interessante, parece alcançar um público mais diverso, além da questão de passar a tarde num parque e depois assistir a um concerto é mais convidativo que ir a alguma universidade fazer o mesmo – até porque, as universidades brasileiras cada vez mais se reafirmam como grandes colegiões de terceiro grau, reservado só para os VIPs. O tema pássaros para um concerto no Parque também foi muito feliz, e o som externo que adentrava o anfiteatro casava bem com as músicas.

Talvez por estar me mais habituado à música eletroacústica, ou talvez ao estilo de cada compositor, talvez pelo concerto ter tido uma coerência que não teve nos demais, achei ele mais acessível – até mais do que o primeiro a que assisti, em que boa parte das músicas eram acompanhadas de vídeos. Acredito que entre as cerca de cem pessoas que foram à sala do Tattersal, no Parque Água Branca, devia haver aquelas que não conheciam música eletroacústica: tiveram uma ótima iniciação (certamente houve quem se decepcionou, como duas senhoras que entraram achando que seria um show de sertanejo e saíram na segunda música).


São Paulo, 01 de agosto de 2012.

ps: em comemoração ao aniversário do NME, além de concerto temático, o NME pretende também lançar um box com cedê, devedê, textos e outros etecéteras. Se alguém quiser contribuir com o projeto, pode fazê-lo pelo site: catarse.me/pt/projects/838-nmeaniversario.