segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Aquele que vê, aquele que domina.

Esteve em cartaz na Galeria Olido, e entra agora no Teatro Alfredo Mesquita (31 de agosto a 16 de setembro), "Experimentos cenográficos", do Balé da Cidade de São Paulo, com a direção artística de Lara Pinheiro. São quatro coreografias que, conforme o programa, visam “proporcionar uma perspectiva futura para jovens talentos e alimentar o mercado de dança com novos coreógrafos”. Fazem parte do programa “No' toque”, de Henrique Lima, “Papilon”, de Igor Vieira, “Aquele que vê”, de Liliane de Grammont e “Tempo”, de Fernanda Bueno. As quatro coreografias muito bonitas, as três primeiras tendo em comum uma tensão muito grande – ainda que por motivos diferentes.

“No' toques” parece ter uma tensão mais bruta: corpo em diálogo com os sons, sem apontar para uma harmonia – ainda que tensa –, como em “Papilon”, que chama a atenção pelo seu quê de onírico, e um duo mais que erótico, sensual.

Me detenho aqui em “Aquele que vê”.

A descrição – que começa com uma frase de Lacan, “o Outro é aquele que me vê” – comenta: “O que eu seleciono com o meu olhar, revela quem sou. Recorto a realidade e a reinvento. O outro, é uma abstração. Vejo e sou, sou visto e existo para o outro.”

Um das coisas que logo me chamou a atenção nesta obra não foi a questão da posição de quem vê, mas de quem é visto, aquele que é selecionado e recortado por esse olhar do Outro, e que só tem existência por causa dessa visão que faz emergir dadas figuras do que até então era fundo.

Há uma divisão bem delimitada entre o masculino e o feminino, e uma forte fragrância de machismo nessa divisão: os homens, vestidos de calça e camisa azuis, estão sentados nas margens do palco, enquanto as mulheres, em trajes pequenos, ocupam o centro ou circulam também pela margem. A diferença nos trajes deixa uma forte impressão de vulnerabilidade das mulheres. A diferença nas localizações reforça a posição de senhor do homem – se pensarmos numa dialética hegelo-marxista –, com as mulheres, apesar da sua vulnerabilidade, ocupando o centro do palco, da ação. Ademais, se o olhar do outro seleciona o que terá existência – e aqui o como o Outro se apresenta é importante para entrar no recorte –, aquele que pode ser olhado é cativo de um olhar que não o reconhece necessariamente, e por isso é obrigado a se sujeitar a estar nesse centro, vigiado de todos os lados, tendo que agradar, chamar a atenção, atrair.

O fato da coreógrafa ser mulher não deve ser desprezado. Entretanto, é curioso notar que a vulnerabilidade das mulheres em seus mini-trajes existiria igualmente se ao seu redor estivessem mulheres vestidas de calça e camisa azuis: antes de apontar para um culpado, um bode expiatório – os homens, o machismo –, a coreografia abre para a questão da relação entre seres genéricos, a relação entre papéis sociais – encarnados por homens e mulheres, mas que não são naturalmente de um ou de outro. Em suma, complexifica a questão de gênero a partir do que um dia foi seu símbolo mais imediato – o vestuário –, e o faz sem inverter essa simbologia.

Se as posições no palco, no início e em boa parte da apresentação, cheiram a dominação masculina, a dominação de quem, na verdade, está à margem, as várias coreografias têm um toque feminino, mesmo as com os homens – uma proposta de “feminilização” e não de “masculinização” como resolução dessa dominação? Nos duos (um no início, outro no final), uma tensão erótica muito grande – e sempre com a impressão de dominação masculina, então finalmente em ação de comando. No duo final, mais do que tensão, violência, com a bailarina, cercada inicialmente por dois homens, ainda mais exposta ao ter sua roupa arrancada. A violência logo se transmuta em tensão erótica, deixando no ar a dúvida se haveria sexo asséptico e politicamente correto – um contrato entre duas pessoas para usufruto das faculdades sexuais do outro, mais ou menos como disse Kant sobre o casamento, em fins do século XVIII – ou se as dissimetrias, desde que tidas seus devidos espaços e momentos, não são parte da sexualidade humana contemporânea.

A coreografia termina ao som de criança rindo, como a indicar uma grande inocência em tudo aquilo, no sentido de desfrute do presente e não em engessamentos do futuro em promessas românticas de felizes para sempre. Claro, antes disso houve uma série de momentos de dominação, de recorte do Outro, de violência, que não podem ser esquecidos – resta saber se cabem serem carregados como máculas que impedem o desabrochar pleno do presente.


São Paulo, 27 de agosto de 2012.

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