sábado, 22 de setembro de 2012

Da palavra ao ato, da margem ao palco: Cecília Meireles por Célia Gouvêa

Em setembro, na quinta Mostra Nômade de Dança, realizada na sede da Companhia Corpos Nômades, assisti a C-E-C-Í-L-I-A, belo espetáculo de Célia Gouvêa, veterana da dança brasileira. Em C-E-C-Í-L-I-A, Célia Gouvêa transporta o universo da escrita, o lirismo de Cecília Meireles, para o palco, para a dança. Eu, agora, tento fazer o caminho inverso, transportar a dança de Célia para a palavra. “Fazer o caminho inverso” não significa retornar, voltar ao ponto original. A linguagem, a arte, têm interstícios mil que fazem com que seus significados se desdobrem para além de uma mera positividade – representações prenhes de sentidos entre os meandros do que não foi dito. Daí que a visão que apresento pode ser diferente de outras, sem que isso implique em erro: não estamos no domínio da veridicção, mas da obra de arte aberta ao diálogo entre artista e público.

O desenrolar do grande rolo de papel em branco, com o que a coreografia começa, sinaliza esse espaço tenso de abertura, fechamento e permeabilidade: delimita-se um dentro e um à margem. Um limite do palco para a dançarina e um limite da dança com a escrita. Também, talvez, um limite à própria escrita. À margem o poema declamado, a palavra em relação com as demais na construção da tessitura do sentido. Dentro, a poesia dançada, a palavra em diálogo com o corpo, o corpo em diálogo com o espaço, e a palavra tendo extrapoladas eventuais sentidos imediatos.

A coreografia tem dois momentos bem distintos. O primeiro, mais breve, se faz à luz de Mulher ao espelho, e dança a não-permanência cantada por Cecília Meireles. 
 
Já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.” 
 
Se o poema tem um tom melancólico (“só não pude ser como quis”), Célia o reinterpreta de modo leve – com pouco chão e pouco ar –, nos remetendo a um estar no espaço sem a resistência inquebrantável do solo: a água ou o ar: liberdade para se movimentar em toda e qualquer direção, como um pássaro ou um peixe. Mais: liberdade de sermos quem quisermos, escolher nosso próprio nome e traçar nosso próprio destino. Nos convida, em suma, a um lugar para além do nosso dia-a-dia.
O segundo momento tem Confissão a dar-lhe o tom inicial.

Na quermesse da miséria,
fiz tudo o que não devia:
se os outros se riam, ficava séria;
se ficavam sérios, me ria.”

A leveza inicial desaparece: no chão, de joelhos, ou em pé, arqueada, é bem marcado o peso da existência – de si, como pessoa, e de deus, como grande inquisidor. Por um lado, a necessidade de Célia tocar-se seguidamente para se certificar da própria existência – o que é feito com movimentos agressivos, ásperos –, por outro, a exigência de reza e penitências compulsivas.

O palco com poucos elementos e a iluminação sem grandes efeitos produzem, em conjunto com a postura e os movimentos, uma sensação de aridez. Neste ponto, a transposição de Cecília por Célia parece passar por Clarice Lispector, em um clima ao mesmo tempo tenso e delicado, estrangeiro e familiar. Talvez sejam as contradições de uma época em que vínculos são perdidos e não se sabe como ocupar o espaço por eles deixado, em que as emoções surgem confusas e abruptas, e não se sabe qual momento exige delicadeza, qual agressividade, com os sentimentos se derramando em catarata.

E seja arqueada pelo peso de deus, seja arqueada pelo peso da própria existência, tratam-se de dois momentos do mesmo estar em terra estrangeira, independente de ser o solo pátrio: a retirante que hesita o passo, como se houvesse ao retirante a possibilidade da escolha fundamental entre o ficar e o partir.

Aos mudos de nascimento
fui perguntar minha sorte.
E dei minha vida, momento a momento,
por coisas da morte.”
O peso da existência sobre uma terra hostil é também representado no encadeamento de substantivos do Romanceiro da Inconfidência, atirados como pedras. Uma liberdade que ainda precisa de mártires, uma fala que não possui todos os elementos da língua. Existência e incompletude. “Alvarás. Decretos. Cartas.” A vida que se perde entre burocracias exigidas para se viver.

A dança poderia ser apresentada como uma alternativa à linguagem falada, a preencher aquilo que lhe falta, que não se completa no papel em branco. Contudo Célia não se mostra interessada em ser arauto de soluções simplistas, e o peso da coreografia antes ilustra esse vazio, reforça que ele vai além da língua, vai além de um fato pontual: é uma condição do estar contemporâneo.

A apresentação se encerra na ausência: em silêncio, enrolada no papel em branco, braços em cruz.

São Paulo, 22 de setembro de 2012.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Sala São Paulo – percepções e pensamentos aleatórios.

No coro, atrás da orquestra, um homem reflete a luz com seu enorme relógio quadrado. A taxa de administração do site de venda de ingressos é de vinte por cento – quero ver aplicação mais rentável. "Adágio para cordas", do Barber, me traz recordações: foi executada na primeiro e no último concerto da Sinfônica de Ribeirão que fui. Ok, nenhuma como a da OSESP, mas evito comparações. Minczuc e seus pulinhos. Reparo que o funcionário na porta do banheiro usa lápis de olho. Na sala de espetáculo, um moço com um alargador de orelhas mais ou menos do diâmetro de um copo americano. Escondido atrás do alargador, uma tatuagem "xxx". Não entendo como não se incomoda com os cochichos sibilinos logo ao seu ouvido. Por sinal, a terceira idade está perdida. Conversa, sacode os acessórios barulhentos, usa o celular durante a apresentação (não para conversar – pelo menos isso! –, mas é avisado antes que a luz do aparelho pode atrapalhar os outros), chupa bala. Não que chupar bala seja um problema, o problema é todo o caminho da bala desde a bolsa ou o bolso até boca, com seu estridente papel ou sua ecoante caixinha. Acho que dava uma boa pesquisa empírica: por que tantas pessoas têm essa necessidade súbita, repentina e impreterível de chupar bala assim que começa a apresentação? Por que não o fizeram trinta segundos antes, no intervalo entre as músicas, entre os movimentos: por que esperar a música começar pra lembrar da maldita bala? Será influência do cinema de entretenimento e suas pipocas fedorentas, a estúpida associação vendida como natural entre cinema e pipoca? Quando vai assistir a algo, por que comer? Por falar em comer, seis reais num salgado merreca de pequeno. Pelo mesmo valor compro um pote de arroz com carne e tranqueiras num fast-food oriental, com a certeza de que terei matado a fome, e não só provocado meu estômago, fingindo que iria satisfazer suas necessidades. Penso que da próxima vez posso levar uma lancheira – quem sabe a do Snoopy, que eu usava na pré-escola e no ginásio, e ainda tenho na casa do meus pais. Lembro de notícia compartilhada no Facebook: esse salgado custa mais do que um dia de salário africano – e os africanos desejam trabalhar e receber essa soma aviltante, segundo a milionária Gina Rinehart. No dos outros é refresco, como diz o ditado. E eu que poderia sobreviver trabalhando dois dias por semana. Parece que as elites não conhecem limites para seus preconceitos – mas ainda acho que a tupiniquim, por desconhecer os limites do próprio território, na ânsia de parecer cosmopolita, consegue ser um pouco pior. No intervalo, sem ter o que fazer (tenho um livro em mãos, mas estou no clima pra estudar), ligo pra dar um oi pro meu irmão, com quem não falo há uma semana – e que imagino estará ocupado no feriado. Nisso vejo uma conhecida, que sai do meu campo de visão ao passar atrás de uma senhora que me parece familiar... sim! Uma professora da Unicamp que me secou pornograficamente de alto a baixo três vezes quando fui apresentado a ela. Sem ter pra onde correr, sigo a conversa com meu irmão, de costas para a professora – mesmo sabendo que isso pode me custar outras secadas ardentes. A Sala São Paulo tem uma acústica realmente fantástica! Menos no coro, onde a música chega troncha e ainda corre-se o risco de levantar uma parede de metais que te impede de ouvir as coras (como em Ginastera) – e o pior: mais de quarenta reais o lugar lá (mais vinte por cento do site). Enfim, a Sala São Paulo, apesar da sua acústica, não é um lugar em que me sinto em casa. Nem digo que é por conta do público, que já freqüentei lugares com público bem mais tosco – digo, de refinamento mais sui generis. Acho um tanto infeliz a associação das colunas coríntias com aqueles balcões que lembram as cadeiras Favela e Célia, dos irmãos Campana – eu dispensava as colunas. Associação entre esse clássico da nossa velha burguesia do café e moderno que gosto é a do Theatro Pedro II, em Ribeirão: o teto feito pela Tomie Ohtake quando na sua reconstrução casa bem com o estilo, sem deixar de ser moderno. Música eletroacústica, John Cage e seu piano preparado, a orquestração sem surpresas de Rachmaninov, alaúde e música renascentista, Buxtehude: épocas e estilos bem variados em dez dias. Ainda não comprei o ingresso pra apresentação da São Paulo Companhia de Dança. A senhora ao meu lado reclama da incompetência da OSESP em não dar flores – uma rosa, ao menos, que fosse! – para a solista Hilary Hahn, que executou o “Corcerto nº 1 para violino em ré maior”, do Prokofiev. Não lembro se era do saber ou das rosas, mas falou que em alguma dessas casas não se cometeria tamanha gafe. O ônibus que devo tomar na sexta sai da Barra Funda ou do Tietê? Um vídeo com críticas internacionais favoráveis à OSESP e à maestrina Alsop é apresentado. Lembro das polêmicas com Neschling, do arranca rabo da semana entre Dilma e FHC, temo Russomano-Serra, e me pergunto por que há tantos lugares vagos, sendo que na hora de comprar meu ingresso a sala estava praticamente lotada. Na saída, volto para casa pelo mesmo trajeto que fui: via Estação Julio Prestes. Um amigo disse que era de boa ir pela Luz, mesmo às oito da noite. Recordo da recomendação de outro amigo, assim como do apuro que passei a vez que resolvi dar um passeio pela região depois de uma apresentação da OSESP [j.mp/cG26512] – e eram sete da noite. Decido que não quero emoções fortes desse naipe. Na praça, pessoas jogam bola. E me certifico que, apesar de mais de uma centena de concertos nas costas e quase cinco anos de piano, sou um analfabeto musical.


São Paulo, 07 de setembro de 2012.