quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Aqui e ali (atti kotti)

Desço na estação República. Logo na porta, jabuticabas substituídas por lichias nos carrinhos de mão dos ambulantes. Aranhas feitas artesanalmente e dvds piratas são vendidos logo à frente. Atti kotti. Cenas urbanas. Dança. Mate. Na avenida São João, próximo à galeria Olido, um grande número de pessoas reunidas – imantadas, para usar o termo feliz de Lygia Pape (só não mais feliz que sua obra). Passo próximo, tentando observar o que está pegando ali. Numa mesa improvisada, vendem algo ou jogam, não consigo distinguir; uma pessoa examina uma calça, outra chama um homem próximo para ver a revista pornô que tem em mãos. Pego meu ingresso para o espetáculo de dança e vou comer um xis com um mate. Ao sair da lanchonete, presencio uma grande confusão. Tudo muito rápido, pessoas correndo, pessoas caindo. Briga generalizada? Bem parecia briga entre torcidas. Seria alguma disputa entre facções? É o rapa?, um rapaz pergunta a outro próximo a mim. Não, a polícia mesmo. A polícia militar, cuja função primeira não é proteger ninguém, não é garantir a integridade das pessoas, não é proporcionar segurança, mas preservar a ordem – que ordem?, é de se questionar. E ela garante, a ferro e fogo, se for preciso. Garante. Provocando tumulto e arruaça, se for preciso. Batendo, espancando, matando, se for preciso. Garante. Que ordem? A polícia em vez de prender graúdo vem avacalhar com a nossa feira, que só tem coitado, fala, indignado, um homem. A apresentação a que assisto pouco entendo mas gosto muito. Tem momentos de uma leve tensão irônica, é algo divertida – me fazem lembrar da “moça da dança”, que deve ter traumatizado minha ex-terapeuta, com um ano de um assunto sem fim e sem desenvolvimento. A mulher atrás de mim na fila veste blusa de oncinha, tem as unhas num tom estranho de azul e o dedo mínimo meio torto. Começo a perceber algumas figurinhas carimbadas da Olido – estarei eu me transformando em uma também? E a oriental de tatuagem na testa? Nunca mais a vi. São dezessete pessoas na platéia, quatro no palco, duas na produção – dentre elas a diretora Alice K, uma oriental. O oriente parece que me persegue. E a recíproca parece ser verdadeira. Taomolo, Fei Shuang, we are accidents waiting waiting to happen (em que Gigante vale por três), as coisas aconteciam com alguma explicação, o lunático em Murakami e Subaru de segunda mão; a Luanda de Lobo Antunes, antes em guerra, agora canteiro de obras dos chineses. O que seria de nós, não é, se fôssemos, de facto, felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados, mirando ansiosamente em volta em busca de uma desgraça reconfortadora, como as crianças procuram os sorrisos da família numa festa de colégio? Um comprimido de antiácido pelo xis e pelo mate e pelo litro de chimarrão durante o dia. A feira se refez, reimantou pessoas. Lembro do homem no trem, na volta da faculdade. Falava em AK-47 e gesticulava muito. Se as frases se encerravam com palavras terminadas em e ou o, parecia balir. Mas nunca matei ninguém, importante é o amor. O homem recém sentado ao seu lado, interpelado, concorda: amor, saúde e trabalho é o importante. Isso mesmo-o-o-o-o. Porém logo o homem que balia se retifica: eu vou admitir pra você-ê-ê-ê-ê-ê, eu não gosto de trabalhar. Eu também não. Bukowski, que me acompanhou nas viagens da semana passada, tampouco parecia empolgado com a labuta. Dentre as diferenças, Bukowski era escritor. Quando me perguntam de onde sou, digo que sou do mundo-o-o-o-o. Resposta errada, creio: no Brasil, para a polícia, cidadão do mundo, só os com três idiomas e carimbos no passaporte. Zé Ninguém filho de Zé Ninguém tem que vir de algum lugar e ir pra algum lugar, ou então é bandido – e se estiver vindo da periferia, da terra dos Zé Ninguéns, é tão bandido quanto, só vai passar porque (se) não acharam motivo pra pará-lo por ali. Mudo de lugar, para poder ler o livro sobre dança que tenho em mãos. Você sabe porque Gabriela não fala mais comigo?, leio no celular da moça ao lado-o-o-o-o-o-o. Ouço o balir de tempo em tempo. De uns dias pra cá, os pedintes na rua sempre hesitam e me cumprimentam antes de pedir dinheiro – acho estranho. E nunca tenho – desde que um deles reclamou que lhe menos de um real. E ao bom dia de uma senhora respondo com um automático não – ela carregava um monte de revistas religiosas e achei que iria me oferecer uma. Na Augusta, vejo um homem parado de quatro sobre um papelão. Poderia ser uma performance. Não é. Passo por ele, fede. Mas poderia. Olho para trás, não parece estar ansiando, passando mal, bêbado, nada, apenas parado, de quatro, na Augusta. Me pergunto qual a diferença entre uma performance e aquela cena? A atitude consciente de perturbar o banal do quotidiano? A atitude consciente de nos fazer ter olhos também para o banal do quotidiano? A possibilidade de tudo acabar quando o performer decidir que é hora? Creio eu que só tenho olhos para aquela cena graças às muitas apresentações de artes e antiartes que vi – As dos Festivais de Apartamento, que me parecem sem sentido, dentre elas. Imantados, pessoas de quatro, a feira dos humilhados do parque com os seus jornais, parangolé (grafitti), atti kotti. Disse certa feita que toda escrita começa pelo olhar: me vejo um analfabeto em enxergar o mundo.

São Paulo, 29 de novembro de 2012.
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sábado, 24 de novembro de 2012

Fora ladrão que já está fora?

Num país em que considerável parte da população do Estado mais rico da federação, em arroubo de bairrismo antiquado e proto-fascista, se orgulha de ser a “locomotiva do Brasil”, a levar o país nos trilhos corretos da história rumo à verdadeira civilização – algo pouco além de uma maria-fumaça da inovação –; em que cargos burocráticos de alto escalão dão abrigo à vanguarda do nosso atraso, um mandarinato acadêmico que tem nojinho de povo e se ressente quando lhes revelam que as grandes novidades que o deslumbra foram questionados no século XIX – como o conceito de universidade, por exemplo –; não é de se espantar que a mentalidade política – tanto da chamada esquerda quanto da chamada direita – não seja lá o supra-sumo progressista.

Há muito critico a chamada esquerda tupiniquim de ter se perdido em algum ponto entre 1848 e 1917 (mesmo a não marxista), seja nas análises, nas quais que ainda espera (enxerga, às vezes) o crescimento do proletariado e ignora o aumento da classe média/pequena burguesia, seja no plano de ação, de apoiar a burguesia a fazer a revolução burguesa, para então preparar o terreno para a grande noite da mudança social.

A chamada direita, por seu turno, conseguiu passar os anos noventa sob um figurino mais modernex. Claro, havia as exceções, como Denis Lerrer Rosenfield, paranóico um tanto atrasado nas últimas notícias, que ainda teme Cuba, vê comunista nas esquinas e crê que, por conta do PT, logo terá que dividir seu carro com os pobres (porque o comunismo, sabe como é). Via de regra, contudo, a direita, graças ao papagaiar passivo de fórmulas da metrópole passava por up-to-date e, sem ter que se preocupar com o pensar, se dava ao luxo de criar frases jocosas com todo o tempo livre de que dispunha: chamou de jurássicos seus opositores, fracassomaníacos e neobobos os que insistiam em criticar as idéias que ela comprava nos USA, Petrossauro e Petrobrax à estatal de petróleo do país.

Quando a esquerda, via PT, assumiu o poder federal, além de roubar o grosso das políticas macro-econômicas da dita direita, ainda teve a audácia de diminuir a oferta de domésticas nas cidades, levar luz elétrica para desdentados dos sertões e pôr pobre em universidade da elite. Com isso a direita perdeu aquela sua aura tão bem envernizada: não podia atacar a esquerda por fazer o que ela fazia, nem tinha propostas para se contrapôr; na ânsia de conseguir fazer alguma crítica, evidenciou sua precariedade e seu atraso: não foi capaz de criticar a partir dos pressupostos que ela dizia se embasar, e tudo o que conseguiu foi manifestar preconceitos, que alguns até tentaram travestir de crítica séria: pobre em aeroporto, preto em universidade, nordestino em supermercado, favelado com casa e carro, e por aí vai (um bom show de stand-up comedy a la Marcelo Tas deve dar um panorama razoável desse pensamento, com os adendos nos costumes).

Ontem, ao sair de casa, noto que colaram um adesivo na lixeira em frente ao prédio – se não foi esta noite, foi esta semana. Nele o sinal de proibido sobre uma mão sem o dedo mínimo, em baixo a frase “Fora Ladrão”. Na hora penso, para além do seu mau-gosto preconceituoso evidente: a chamada direita é retrógrada não somente nas suas idéias, mas suas informações. Assim como alguém precisa informar o Rosenfield que a União Soviética acabou, que Mao morreu (McCarthy também), e que o “deixe a esquerda livre” nas escadas rolantes do metrô não são propaganda subliminar dos comunistas, precisam avisar os militantes da nossa direita que o governo Dilma já vai pra sua metade do seu governo como presidente da república – ou seja, o tal ladrão já está fora, e eles estão gastando dinheiro à toa.


São Paulo 24 de novembro de 2012.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A violência “sob controle” do sr. Alckmin

Quando o governador Geraldo Alckmin diz que a violência em São Paulo está "sob controle", ou ele está por demais alienado da realidade do estado que comanda, ou é conivente com assassinatos e todo tipo de truculência que a PM sob suas ordens tem sido acusada.

É normal que ele veja a PM paulista como "bem preparada" e dotada de "alta tecnologia" – afinal, um governador que assume falhas, por mais evidentes que sejam, é visto como incompetente na nossa sociedade da hipocrisia –, entretanto, daí para tentar desqualificar a série de denúncias contra abusos cometidos pela polícia já vai contra o que seria de se esperar de um político sério e afim à democracia – o que não surpreende em Alckmin, portanto –, mas agrada a uma boa parcela da população de São Paulo, obscenamente conservadora.

Independente se ignorância ou má-fé do governador, o que de fato está sendo transmitido em seu discurso é um aval às ações truculentas, violadoras dos direitos humanos e do Estado democrático de direito, por parte da polícia. Entra no rol da assustadora “quem não reagiu está vivo”. Pois a impressão que se tem é de que o único controle da violência que o Estado possui – e bem duvidoso, para qualquer um minimante crítico – é de o número de mortos. Ou então a violência “sob controle” a que o governador alude é sinal de que a série de assassinatos que vêm acontecendo há tempos são ações sabidas, respaldadas e legitimadas pelo governo. 

Achar que policiais serem mortos nas horas de folga, ou vinte e cinco civis assassinatos em um fim de semana, ou um publicitário não parar em uma blitze ser autorização para assassiná-lo, é sinal de uma situação sob controle é temerário. Ofende qualquer cidadão que preze pelos direitos humanos – o pessoal de Veja e muitos de seus leitores, que babam ao lê-la pela manhã, não se encaixam neste grupo. Um homem que aparece morto depois de ter sido filmado sob os cuidados da PM não pode estar em conflito, como alegaram os policiais. Não se trata de um caso “lamentável”, como lamentaram as autoridades, é contra a lei, é crime, é inaceitável – ou deveria sê-lo, só não ao defensores da Ordem e do Progresso –, afinal, é a polícia fazendo aquilo que teoricamente ela devia evitar, é o Estado agindo igual ao PCC. E já comentei alhures: escolher entre quem mata menos é uma falsa escolha.

Num Estado em que um partido teoricamente progressista dá abrigo a um jagunço fardado, e que a população o elege para a câmara da capital, os seguidos endossos que o governador dá à violência apenas indicam a continuidade da guerra urbana há muito vivenciada – em especial pelos moradores da periferias pobres. Se trancar em casa, em shoppings super-vigiados, em condomínios fechados, em carros blindados pode parecer uma alternativa razoável – àqueles que podem pagar por esses paliativos, é claro – para fugir dessa guerra que tememos mas não fazemos nada para minimizar, porém apenas estreitam nossa rotina e nossos horizontes, e afirmam num grito mudo que não temos mais esperanças.

São Paulo, 14 de novembro de 2012.

domingo, 11 de novembro de 2012

Os lentos cantos do destino no oriente.

Gestos vagarosos, em harmonia com o lento desenrolar da coreografia. Assistir ao Chants de la destinée, da companhia taiwandesa Legend Lin Dance Theatre foi – não apenas, mas primeiramente – uma experiência de estranhamento – para mim, recém saído da leitura de O império dos signos, de Roland Barthes, também de auto-reflexão sobre o Ocidente. Como pouco sei da cultura de Taiwan ou do extremo oriente como um todo, os muitos elementos – aparentemente alegorias com forte simbolismo – me soaram impenetráveis, de forma que não tentei compreendê-los e acabei atentando para aspectos talvez menores da coreografia.

Lin Lee-Chen, a coreógrafa da companhia, retomou suas atividades, após breve pausa para cuidar da família, com o intuito de revitalizar e reafirmar a identidade da cultura taiwandesa, que ela via ameaçada pela invasão das formas ocidentais. Se ela cede algo ao ocidente, é muito tenuemente.

O espetáculo começa em ritmo muito lento – dá até a impressão de que parado –, num vagaroso progredir para a frente do palco. Apesar de lento, esse ritmo não deixa de trazer certa tensão, e acaba por gerar ansiedade a um espectador ocidental típico (eu, por exemplo): que horas vai vir a grande explosão com a qual se iniciará a dança, finalmente? Passados mais de vinte minutos, desconfia-se que aquilo não é um prólogo para a coreografia, mas ela em seu desenvolvimento. O exercício é aceitar aquela tensão quase estática como permanente durante a apresentação.

O estranhamento vem não apenas do tempo e do ritmo, como da gramática gestual utilizada: diferentemente das danças ocidentais, o movimento dos bailarinos é principalmente o de assumir posições no palco e lentamente se moverem por ele, com gestos largos, nem leve nem pesados – a impressão é de ausência de peso –, até saírem pela coxia. Soa ritualístico em boa parte da apresentação. Em apenas dois duos os bailarinos fogem dessa relação, em que quase parecem elementos de cena, para uma interação mais direta – em apenas um deles há toque (essa falta do toque me fez lembrar um pouco do filme do japonês Kore-Eda, O que eu mais desejo).

Próximo ao fim, mudança de ritmo, e tambores deixam bem marcada a tensão – os bailarinos, por duas vezes, chegam até a correr! Porém, como na parte lenta, não há o desenvolvimento da música – ela uma hora simplesmente vai diminuindo até cessar –, e a dança segue a mesma lentidão. Beira o monótono – para alguns ultrapassa a barreira, como atestavam, desde o início, pessoas saindo, gente conferindo as horas nos seus celulares, ou conversas na saída, “que coisa mais chata!”, “deu sono”.

Beira também o choque: o desconforto de estar diante de algo que não conhecemos e não temos repertório para traduzir, nossa ânsia de que “coisas aconteçam”, a dificuldade em se centrar nos pequenos gestos (eu estava na última fileira, e pareceu que perdi bastante por conta disso), nos detalhes: queremos o maior número de eventos no menor espaço-tempo. Chants de la destinée oferece a nós, ocidentais, uma outra estética do tempo, e a oportunidade de por duas horas sair da nossa zona de conforto – em que até o incômodo tem, em alguma medida, uma forma familiar e previsível.

São Paulo, 11 de novembro de 2012.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Andança pelo Brás numa tarde de novembro

Costumo fazer minhas andanças pelo centro de São Paulo – noturnas ou diurnas – pela região da República, Santa Ifigênia, Liberdade. Esta semana, em busca de preços mais camaradas em frutas secas, castanhas e afins, fui pro lado de lá do centro, as quebradas do Brás, que nunca tinha ido antes. Apesar de ter um local específico para chegar e ter visto no mapa antes, claro que me perdi.

Desço no metrô da Sé, passo pelo Páteo do Colégio e não acho a rua que devia. Quando consigo virar à direita, viro, e sei lá onde estou. Desconfio que as abóbodas que vejo ao longe devem ser o mercado municipal, assim como um prédio xis deve ser a tal zona cerealista que me recomendaram. Não peço informações, um tanto para poder flanar pela região, outro tanto porque não gosto de pedir informações. Vou (mais ou menos) em direção ao prédio xis.

Na passarela entre os terminais Dom Pedro II e Mercado cruzo com um rapaz, e me viro para olhar para trás quando passa: deve ser a pessoa mais alta que já vi na vida – a constituição parecida com a minha, o que acentuava a altura –, me senti pequeno com meu modesto um metro e noventa.

Caminho um tanto e chego finalmente ao tal prédio. Não é a zona cerealista, mas o Centro Cultural Catavento. Caminho um pouco mais e me rendo: peço informações a um vendedor de água mineral. “É só atravessar aqui, é aquela rua”, e aponta a direção da zona cerealista – que não tinha nada a ver com o que eu imaginava.

Faço as compras que desejava e vou até mercado municipal – esse eu tinha acertado. Bem haviam me dito que era um local turístico e não para fazer compras. E aqui preciso dar o braço a torcer: o mercado de Campinas pode ser mais feio mas é bem mais interessante: serve para fazer compras do dia-a-dia, essas ordinárias e necessárias. Salvo os queijos (me falaram também dos peixes), os preços de frutas e frutas secas rivalizam – ou mesmo ganham – do Pão de Açúcar. Trinta reais o quilo da jabuticaba (pago quinze), dez a caixa de pêssego (paguei cinco no vendedor que fica na esquina de casa, que já não é muito barato). Saio do mercado municipal, espero um SUV da Audi estacionar minhas impressões, e me dirijo para a Sé. A igreja e o pedaço do cento vistos daquele ângulo são muito bonitos – talvez só percam para a visão no viaduto sobre a avenida Prestes Maia, na Luz.

Descubro, veja só!, a rua vinte e cinco de março. Gentes, muitas gentes – e ainda não deve ser o fervo do natal. Camisas de marcas a partir de dez reais. Estátuas vivas brancas contrastam com o colorido da rua. Um artista de rua faz malabarismos com bola de futebol, bola de golfe, bola-de-gude. Está no meio da sua apresentação quando um policial pára. Dá para ver que o artista hesita, sobra certa tensão no ar. Ele está mostrando a bolita (aqui conhecida como bola-de-gude) com que vai fazer embaixadinhas. Mostra pro PM também, este abre um sorriso e todo o público ri, aliviando a tensão. Faz as embaixadinhas, domina no peito, na nuca. Pede aplausos antes do último número, em que vai levantar um ovo. O policial segue. Assim como a apresentação. Vejo a última acrobacia, dou umas moedas e sigo também. DVDs, programas, séries, jogos para PC, Play dois. Enfeites de natal à venda. Churrasquinho grego e suco por dois e cinqüenta. Flores de plástico me fazem voltar ao século passado, a um dos meus professores de biologia, que tinha substituído as naturais por artificiais no seu jardim. Na vitrine de uma loja de calçados um tênis tem como chamativo “Apareceu na RGTV” (o RGTV é por minha conta), como se isso fosse qualquer prova de qualidade. O PF parece tabelado em toda a cidade: nove reais o mais barato. Passo em frente a um treco – uma estátua? – coberto por um pano vermelho. Desconfio o que é, e minha desconfiança é logo confirmada pela conversa de dois ambulantes: tão dizendo que o Kassab vai vir inaugurar o papai noel, eu vou dar garrafada se ele aparecer, diz o vendedor de água mineral. Fico me questionando se o PT tivesse conseguido o apoio do Kassab para a eleição municipal, como seria o discurso? Vai uma camisa Hollister, amigo? Acredito que venceria o Serra de qualquer forma – outro nome do PSDB eu teria dúvidas se seria tão fácil. E certamente o apoio do Kassab a propaganda não traria uma vírgula a mais de política na propaganda do PT – nem a menos, porque isso era praticamente impossível. Sabonetes Haddad. Olha a água mineral, um real, água mineral gelada. Uma loja de produtos indianos faz com que me lembre de um amiga, professora de ioga, que ficara de vir para São Paulo em outubro e não tocou mais no assunto. Ao lado, uma sinfonia de músicas (“músicas”) de luzinhas de natal tornam insalubre a loja para os clientes – e prefiro nem pensar nos pobres vendedores. Depositar uma moeda e pegar um salgado exposto – não lembro dessas pros outros cantos da região central. Aleijados expõe suas chagas em troca de moedas e misericórdia. No início da vinte e cinco, duas praças cercadas garantem a grama verde e limpa – e eu me pergunto para que serve uma praça com grades. As grades servem para moradores de rua estenderem roupas e armarem precários barracos. Olha o pen-drive de trinta e dois giga. Me admiro que neste trecho da vinte e cinco e na general Carneiro os anúncios vêm como que ensaiados, combinados a hora de cada um entrar, pois as vozes não se sobrepõem.

Na praça da Sé, alguns homens compram ouro, dois repentistas juntam um pequeno grupo ao seu redor – e me lembro da genial obra da Lygia Pape, Espaço Imantado. Compro ouro. Em um quadrado delimitado, dois homens pregam para um pequeno grupo de excluídos do baile. Porque Jesus me deu um apartamento, aleluia, diz um deles, sem fazer menção em repartir o pão com os moradores de rua que o ouvem. Os humilhados do parque com os seus jornais. Compro cabelo. Outro pequeno grupo se junta atrás de um câmera filmadora – não trazia símbolo de emissora alguma, mas já imantava gente.

Ao esperar para atravessar a rua atrás da catedral da Sé, dois homens se reencontram. Rapaz, quanto tempo! Pois é, nunca mais te vi! Está morando no lugar de sempre? De sempre? Faz quase um ano e meio que estou aqui perto. Um ano e meio?! Quanto tempo faz que a gente não se encontra? Olha, desde que você comprou o carro não nos vimos mais. É capaz de levarem outro ano e meio, penso. Vencer distâncias sem cansar, superar encontros, andar a velocidade média de galinhas. Bons motivos para não comprar um carro.

Na banca, a capa de uma revista diz que o Brasil lidera o consumo de substâncias banidas. Não é Veja, então não estão falando de drogas (que fazem mal, afinal), mas de agrotóxicos, nosso benfazejo tempero de cada dia. No restaurante próximo de casa um prato de salada – vi no cardápio, dia desses – sai na faixa de quarenta e oito reais. Nem verduras orgânicas justificam um preço desses – e gente pagar esse preço, prefiro não me alongar em possíveis explicações agora.

Resolvo não voltar caminhando e pego o metrô na estação Liberdade. Quando terminar O império dos signos talvez me anime em ler Tokyogaqui. Ainda que movimentada, como é tranqüila a região, se comparada ao final de semana! No metrô, a teletela anuncia que é sem intermediário, sem atravessador. Empréstimo? Não, vaga na Uninove a preços reduzidos – daqui a pouco os preços alcançam a qualidade, será? Na minha frente, uma garota – dezoito anos, por aí – guarda o celular no sutiã. No trajeto entre duas estações, tira-o três vezes para ver qualquer coisa, e a cada vez que tira e guarda, um baita trabalho. Larissa Riquelme fazendo escola, ainda que a mocinha aqui fosse miudinha, proporcional – e só podia mesmo com o celular, enquanto a Riquelme, se quisesse, guardava até um notebook. Penso que se a guria tivesse guardado o celular no tênis seria mais fácil de pegá-lo – mas seriam menores as chances de tiozões ficarem reparando.

Tenho muita coisa pra estudar e sei que ao chegar em casa vou escrever esta crônica, ficar cansado, me convencer que a soneca que tirarei é de apenas dez minutos, e dormir a tarde toda. Faz calor. É novembro mas o clima segue consideravelmente seco. Bem que um amigo português tem me perguntado: e o clima tropical, onde está?


São Paulo, 06 de novembro de 2012.

domingo, 4 de novembro de 2012

A publicidade e a relação com o Outro (ou onde encontrar a felicidade?)

Comentei em crônica passada que dia desses me dei o desprazer de ir comer um lanche em fast-food, mais especificamente no Bob's. Como não pedi um refrigerante para ajudar a engolir o sanduíche, terminei a iguaria com a boca meio dolorida e a garganta bem irritada. Entretanto, o que mais me chocou foi o papel que forrava a bandeja. Mais do que tosco, machista, feio, contra-eficiente, como disseram uns amigos a quem mostrei o tal papel, achei ele sintomático.

"Boas desculpas não faltam para você não ter que compartilhar o seu milk shake do Bob's", é a chamada, seguida de nove dessas "boas desculpas". Uma bela mostra do fracasso da sociedade do fracasso – essa em que self-made men vendem livros de auto-ajuda mostrando (cientifica e empiricamente) à massa que basta agir racionalmente com vistas a um fim e não ser incompetente para ser um vencedor, como se fosse uma mera questão de querer e agir, independente de questões sociais e históricas, e como se fosse possível haver vencedor sem perdedores.

A propaganda do Bob's causa certa estranheza por ir na contramão da tônica das propagandas atuais, que pregam "divida seus melhores momentos", sendo esses melhores momentos o consumo de qualquer coisa – de lenço de papel a viagem à Jerusalém. Em tais propagandas o exclusivismo é em relação ao outro distante, não ao outro próximo: em família, entre amigos, com seu amor, os serviços VIP; aos demais, que não conheço (nem pretendo ou preciso), a entrada de serviço, o transporte público, a comida sem sabor, as férias sem fotografias maravilhosas.

No fundo, a referida propaganda apenas leva ao extremo o que a sociedade do espetáculo tanto apregoa: a felicidade prometida como conseqüência do consumo e não da troca com o Outro.

Se na publicidade em geral essa troca se faz por intermédio de mercadorias, do consumo, a do Bob's desmascara que o Outro nada mais é que acessório supérfluo da mercadoria da pseudo-felicidade – nela, o Outro não é sequer apresentado como polo oposto o qual se nega para se afirmar. É esse o ciclo da busca da felicidade que nos vendem e que compramos – a começar com a idéia da felicidade como algo pronto e dado e não construído –, que não cumprem seu prometido e nos deixam apenas um vazio que prometem preencher com alguma outra mercadoria, essa, sim, a que trará a felicidade desde sempre adiada para a próxima compra.

Aristóteles já definia o homem como animal social, o zoon politikon – entendamos político aqui como o interessado pelos assuntos da pólis, da vida em sociedade, e não restrito à política representativa de hoje em dia –, e se Sartre dizia que “o inferno são os outros”, esquecia de pôr, logo em seguida, a outra face da moeda: a felicidade também está no Outro. Não que a outra pessoa seja a portadora da nossa felicidade. Contudo, são nos relacionamentos, nas relações de alteridade, no perder-se de si para se encontrar no Outro que podemos alcançar um existência mais ampla – ampla o suficiente para que a felicidade caiba em nós.

Assim como os shopping-centers substituíram os banhos da antiguidade, lipoaspirações e produtos zero fazem as vezes do vomitorium das construções romanas. Estamos aptos para seguir com nossa busca da felicidade individual pelo consumo racional do que for: na estreiteza de nosso egoísmo, exasperado em 500mL de um milk-shake vagabundo, orgulhosos do sucesso em um trabalho que nos dilapida, vaidosos com o exclusivismo da bolha metálica ordinária que nos protege do calor no congestionamento e dos encontros na cidade, ostentando roupas que nos simplificam e nos confinam, podemos nos sentir saciados, nunca satisfeitos. E não compreendemos porque não conseguimos ser felizes em nossa solidão – nem mesmo na solidão a dois –, porque não percebemos que quem é consumido, no fim, somos nós próprios.


São Paulo, 04 de novembro de 2012.

ps: texto afim: Excesso zero (23 de dezembro de 2007).