sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Um rato?

Há cerca de um mês, mais ou menos, apareceu um rato na casa dos meus pais, na chamada "parte de baixo", (apesar da casa ser de um andar no nível da rua, há um andar que acompanha o desnível do terreno), que dá para o pátio dos fundos. E por uma semana o roedor deu um baile em meus estimados progenitores: não o encontravam, e não adiantava pôr ratoeira, isca, o que fosse, que o bicho não ia. Ponto alto, que até hoje deixa meu pai vermelho de indignação ao lembrar da historia, foi a vez que os dois desceram ver se o dito cujo tinha sido pego. Nada. Ao subirem de volta, qual não foi a surpresa ao verem rastros dele, que se aproveitara da porta aberta para subir ao andar de cima. No fim das contas, ele desceu, assustou minha mãe uma tarde, ao pular sobre ela, quando ela abriu uma gaveta, e desapareceu. Foi influenciado por essa história que meu irmão acordou hoje, pouco antes das seis da manhã. Ele dormia no quartinho que há no andar de baixo (período de visitas de parentes, sabe como é). Perto da referida hora, escutou barulhos vindos da sala de baixo, que fica ao  lado do quarto. "Putz, deve ser o rato". Pensou. Apurou um pouco os ouvidos, ainda muito sonado. Notou que o barulho devia ser na janela. "Deve estar tentando escalar a porta de vidro da sala pra sair da casa, e não esta conseguindo". Pôs os óculos, e foi ver o tal do rato. Por via das duvidas, saiu vagarosamente do quarto, parou na porta: viu que sua mochila, no sofá, próximo à porta, se mexia. "Credo! O rato esta arrastando minha mochila", raciocinou entre o perplexo, o alarmado e o sonado. Foi quando a mochila rolou e caiu. O que meu irmão viu, então, não foi um rato, mas o braço de um homem, que por um vidro quebrado mexia na bolsa. "Sai daqui agora", gritou a plenos pulmões, em impressionantes decibéis, que soaram bem mais altos pelo silêncio que fazia ao redor. Antes do segundo berro eu já tinha levantado da cama e me encaminhava para ajudar meu irmão, sei lá no que. As curucacas agitadas, a cachorra latindo ao longe (a mais que prudente distância da casa e do ladrão), meu pai tentando fazê-la calar, para não incomodar os vizinhos, e o berro do meu irmão foram o suficiente para eu saber que havia algo errado (meus pais levaram um tempo mais). Encontrei meu irmão na escada, "Chama a polícia", e explicou que um braço tentara roubar suas coisas, e que o homem - dono do tal braço - saíra correndo depois dos seus sonoros berros (inclusive instigando a covarde cachorra a pegá-lo). O ladrão fugiu, perseguido por um transeunte que passava e ouvira os chamados. Depois, esse homem - que lamentou não ter uma arma na hora -, me encontrou e contou sua versão dos fatos. A vizinha do lado também comentou que ouvira os gritos. Por todo o dia foi nosso grande assunto. Me lembrei de um conto do Mário de Andrade, e notei o quanto não há de evento social numa tentativa de roubo na madrugada. 

Pato Branco, 27 de dezembro de 2013.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Sob os mesmos tetos [memórias feitas de saudades]

Havíamos combinado de você morar comigo em agosto. Você tinha planos de sair da casa dos pais há um tempo. Essa mudança te gerava sentimentos ambíguos: queria e não queria. Um dos pontos era que temia que não desse certo e fosse necessário voltar para a casa antiga: não que imaginasse que teus pais não te aceitariam sem problemas: era uma questão sua consigo própria esse possível passo atrás. Outro ponto que atrapalhava eram as questões burocráticas para fechar um negócio. E no início do ano, quando buscava com mais afinco a casa, e achara algumas que interessavam e que a burocracia soava menos complicada, um conhecido que se dispusera a morar contigo e Djalma punha empecilhos aos imóveis encontrados. E era porque esse conhecido iria sair do apartamento em que eu morava que você entraria em agosto, para ficar um mês - menos talvez, a depender de quando eu me mudasse -, para testar na prática se o que te mobilizava era mesmo morar sozinha. Nos enrolamos em fechar o combinado, agosto chegou, e você continuou freqüentando minha casa sem morar nela (mas agora com as chaves e entrada livre, de qualquer modo, já que não havia outras pessoas para nos constranger na liberdade que tínhamos um com o outro). Em meados de agosto, combinávamos de você e seu pai pintarem meu apartamento para a devolução ao proprietário. Eu tinha pressa, nos enrolamos novamente, e você dizia que talvez fosse melhor eu procurar um pintor profissional. Para quarta-feira, dia vinte e oito, meus planos para a manhã eram depositar minha dissertação (seu nome era o primeiro dos agradecimentos, quando eu enunciava alguns amigos), e fazer uma cópia da chave da minha nova casa para você. Meu receio era se você seguiria me freqüentando com a mesma freqüência, diante do meu desejo de não permitir que se fumasse dentro de casa, nem na janela. Creio que continuaria a vir, sim. E creio também que logo eu abriria a exceção para que você fumasse no telhado - e você iria se divertir com esse novo lugar, se sentindo uma gata que observa São Paulo do alto. Você seguiria fazendo a piada de que não respeitaria minha regra de tirar os sapatos para entrar - "que isso já é frescura demais, Dalmoro", falaria, a cabeça meio inclinada para baixo, uma mão para o alto, como a repelir qualquer coisa, enquanto descançaria seu tênis sem se incomodar de fato. Novamente não aconteceu: nos enrolamos, porém desta vez nas tramas da vida, que nos põe na frente pessoas que parece que só chegamos a conhecer por milatre (a insustentável leveza do ser), que nos faz seguir rumos inimagináveis até nos pormos em marcha, e que, no fim, nos apresenta a única certeza da vida com atroz força e precipitação. Lembrei disso porque sonhei contigo novamente. Não lembro se te via ou não, mas você estava presente. Combinávamos de dividir apartamento, eu você e um conhecido da escola de teatro - e não por um mês, mas por tempo indefinido. Ao chegarmos ao apartamento novo (que parecia meu velho) com nossas malas (o que precisamos e temos de valioso cabe em uma mala ou duas e na companhia que está conosco, isso basta para preencher o apartamento nu), eu me dava conta de que não havíamos conversado sobre faxina, barulho, cigarro. Fiquei super preocupado: você aceitaria? Não fazia sentido pôr a amizade em risco dividindo apartamento, mas era tarde. Acordei nesse ponto do sonho, para fechar a porta a uma amiga que dormia em minha casa, na cama-sofá que você tantas vezes dormiu. Contei-lhe meu sonho e então me dei conta de que minha preocupação era exagerada: você já mora comigo há muito tempo e nossa amizade nunca correu perigo por isso.

Para Patrícia Misson. Moradora especial das minhas casas.

São Paulo, 19 de dezembro de 2013.

As complexas dialéticas das relações íntimas

Parece que este fim de ano é moda crise em relacionamentos. Na verdade, pensando um pouco, parece que foi a tônica de todo o segundo semestre – ao menos entre meus amigos e conhecidos. E eu mesmo ando nas minhas crises. Duas amigas que haviam começado namoros há alguns meses vieram ter comigo, esta semana, conversa breve sobre suas desavenças amorosas. Uma iria encontrar o namorado na troca de turno, depois de uma semana sem se falarem: de um lado, reclamações de sufocamento, do outro, falta de atenção. Apelar ao tempo é sempre uma alternativa nessas horas, porém o tempo parece desfazer as esperanças como se desfaz dos minutos que passam com os ponteiros – com minha amiga não foi diferente. A outra recém tinha encontrado a ex, com quem havia recém acabado: estavam juntos há poucos meses, e ela sentia resistência da companheira em trazê-la para dentro de sua vida: o golpe final foi um jantar organizada por ela com os amigos, para o qual não foi chamada, sob alegação de falta de espaço na casa. Na conversa tida há pouco, a companheira dizia que não era questão de excluir, mas de garantir alguns de seus espaços – acontece que nunca tenho espaço com os amigos dela, parece que tem vergonha de mim, comentou minha amiga. Uma frase dela me chamou a atenção (e me motivou nesta crônica): houve um momento em que reclamou que estava cansada de começar uma relação e se ver tendo que pedir pra pessoa mudar: achava que mudanças acontecidas por causa dela não seriam sinceras, eram só para agradá-la e acumulariam ressentimentos para o futuro: queria alguém já pronto, concluiu. Acha que já chegou perto de alguém assim, perguntei. Não, respondeu depois de pensar brevemente. E por que insistir nesse desejo impossível do Outro? Como se não me conhecesse, falou que eu não precisava levar tão a sério as palavras dela. O dia que achar alguém perfeito, desconfie: ou se trata de uma charlatã, que modula seus atos conforme as expectativas do outro, ou você não está observando a pessoa realmente, e sim suas projeções. Lembrei-a então que mudança é pressuposto básico da vida – e que até os mortos mudam. Ela mesma mudara desde que entrara nesse relacionamento: se mostrava mais madura, mais séria, mais ponderada – apesar de geralmente manter sua tônica de oscilações extremas, ou oito ou oitenta, como parecia ser o caso agora. A outra pessoa certamente devia ter mudado desde que começaram a namorar: creio ser impossível um contato íntimo com o Outro que não acarrete alguma dissensão consigo próprio: o Outro nessas horas se torna nosso ponto de estruturação e, ao mesmo tempo, de desestruturação. Uma dialética complicada, complexa, por isso tão rica e por isso sujeita a tantas dores. Por que seria falso uma mudança motivada por uma fala sua, questionei. Porque não foi espontânea, ela não mudaria porque quis, mas porque eu pedi. E acha que as mudanças espontâneas da outra pessoa não foram respondendo a expressões suas – corporais, faciais, sei lá quais mais? Ela deu de ombros: é diferente. Sugeri que ela tomasse um ar – dois dias, se tanto –, e chamasse novamente para uma conversa, aceitando que mudanças – pedidas implícita ou explicitamente – são sinceras, desde que não atinjam pontos muito estruturais da pessoa – parecia ser esse o caso da sua companheira. Ela falou que ia pensar, mas me alertou que havia algo que eu insistia em não saber: há momentos que os sentimentos não seguem meandros racionais.  

 São Paulo, 19 de dezembro de 2013.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Marginais, bárbaros, selvagens nos estádios: e nós?

O assunto é o da moda, e minha abordagem aqui, eu sei, não é nada original; mesmo assim escrevo sobre o evento entre atleticanos e vascaínos, na última rodada do campeonato nacional ludopédico. As imagens de brigões apanhando covardemente (porque não conseguiram bater covardemente) apenas coroou a face tida como aberração do esporte mais popular do planeta no país do futebol. Vale lembrar, contudo, que o conflito entre torcedores não é novidade no esporte, como não foi novidade neste campeonato. 

Teimando em tratar como excepcional o que é corriqueiro, em negar que isso é parte do esporte e reflexo da sociedade (o enorme contingente de policiais destacado para o estádio e arredores em dia de jogo apenas corrobora a violência inerente e não ritual do futebol-show), a imprensa arrota, verdadeiramente horrorizada e inconscientemente satisfeita (afinal, é notícia, é capa do jornal, é motivo fácil pra colunas), uma série de pretensos desqualificativos desse Outro, reflexo maldito de nós mesmos. De bandidos e marginais a bárbaros e selvagens, o espectro de adjetivos é amplo, mas me restrinjo a um breve comentário sobre esses quatro, muito utilizados.

Sobre bandidos, convém sempre lembrar que doentes e criminosos são crias da própria sociedade onde vivem – atiradores de escolas nos EUA, suicidas em universidades brasileiras de ponta, agressores sem motivos e policiais sádicos ao redor do mundo. Marginais, como o próprio nome diz, é porque há um núcleo do qual alguns – em geral muitos – foram excluídos. Àqueles que acusam o Outro de marginal sobra sempre auto-incriminações implícitas: ou crêem que os tais marginais se põem à margem por opção? Entre viagens pra Disney, baladas caras e carro importado, escolheram tráfico de drogas ou a vida medíocre em escritórios temperada com brigas em estádios.

É a mesma função de auto-comiseração, porém num plano mais ontológico e menos social, o uso do ajetivo bárbaro: vem da tradição greco-romana, quando os homens ainda não eram todos iguais, tratar o diferente não como um Outro, mas como uma sub-raça inferior. Se o Outro nos devolve nosso reflexo e nos obriga a repensar nossa condição no mundo, o bárbaro apenas serve para provar nossa superioridade narcísica frente sua ignorância e rudeza.

Por fim, o adjetivo selvagem, que tanto me agride: um pouco menos de etnocentrismo e positivismo nos cairia bem. Os selvagens, se guerreavam o faziam com fins mais nobres do que a violência gratuita que foi filmada em Joinville: a violência podia ser real, mas era também ritual, o adversário era um Outro digno de respeito – a tal ponto que o ritual de antropofagia significava incorporar as suas qualidades. O que se vê hoje em dia – nos estádios e fora deles, que o diga a internet – é o adversário como inimigo, um ser ignóbil (pelo elevado motivo de não concordar conosco) que merece ser destruído e aniquilado. Não é alguém que respeitamos e invejamos suas qualidades, é alguém que pequeno e que nos perturba por nos apresentar nossa pequenez. A violência gratuita dos estádios não é ritual nem auto-reflexiva, mas é um reflexo de nossa sociedade, em que as pessoas são reduzidas a um insignificante e facilmente substituível parafuso no sistema que tem por obrigação gerar lucro e crescimento econômico. Não é selvageria, é hiper-civilização.

E então abundam propostas de como conter tal violência: aumento do efetivo, fim das torcidas, prisão de torcedores, torcida única, jogo em estádio vazio. A cada proposta eu ouço a afirmação da falência de uma sociedade, de uma cultura em que um jogador de futebol mediano ganha mais do que um escritor ou um intelectual de ponta. E tudo isso é normal, porque violento são os outros.

São Paulo, 10 de dezembro de 2013.

domingo, 17 de novembro de 2013

Prisioneiros do próprio corpo

[livre interpretação de “Corpo sobre tela”, de Marcos Abranches]

No canto direito, ao fundo, um homem de camisa social e gravata. Está sentado, pega a garrafa de vinho que está sobre a mesa. O braço treme, entorna a garrafa antes da boca, o líquido cai sobre seu rosto, mancha sua roupa, se espalha pelo chão – pouco sobra para beber. Parece uma cena um tanto batida, porém há algo a mais ali. Não, não é aquele banho de vinho de celebração. Soa antes nossa incapacidade de relaxar, se divertir, celebrar verdadeiramente. O cenário é feito de sete painéis meio a la Pollock – a maioria deles com muito espaço em branco, como se se tratassem de obras inacabadas –, e luminárias também coloridas (a iluminação é de lâmpadas fluorescentes). Ele se levanta, os passos descompassados, os braços rebeldes, contorcidos, como se ele não tivesse controle do próprio corpo. Começa a tirar a roupa. A prisão de nossas máscaras sociais, penso. Fica apenas de ceroulas. O corpo segue seu movimento descompassado, teso e maleável. Lembro da companhia Taanteatro e sua “mandala de energia corporal”. Lembro de meu falecido avô, que teve um avc e por nove anos não se comunicou e não movimentava um dos lados do corpo. Lembro de Pessoa, “O dominó que vesti era errado./ Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./ Quando quis tirar a máscara,/ Estava pegada à cara./ Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido./ Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado”. Me dou conta o quanto somos prisioneiros dos nossos próprios corpos, o quanto aceitamos limitações e mutilações em nome de alguma pretensa normalidade, e depois o quanto precisamos lutar para conseguir nos livrar da prisão que adentramos contentes. Por que nunca nos avisam que o caminho da normalidade é a rota do abatedouro? Marcos Abranches se movimenta pelo palco. O corpo sempre tensionado e os movimentos descoordenados são acompanhados de uma música que reforça o clima de agonia (tanto na acepção de aflição quanto na de luta), gritos guturais e de falas distorcidas, às vezes difíceis de entender. Na frente, à esquerda, uma mulher toda de branco, traduz as falas e gritos para gestos, sinais (libras?). Tem uma aparência impressionantemente plácida e calma. É o contraponto de Abranches. Não consigo pensar o que seria toda aquela serenidade diante daquele corpo agônico: sei que também se destaca, também perturba. Ele vai até a frente do palco, onde um pote de tinta branca o espera. Se pinta todo de branco – a língua inclusive. Sobe numa caixa, faz uma pose que lembra cachorro: na sociedade do espetáculo e da imagem, em que todos posam o tempo todo (sorria, você está sendo filmado), os ideais gregos que tentamos mimetizar nos rebaixam a cães adestrados? Ou simplesmente nos impedem de viver? Lembro de Pirandello: “A gaveta está ceia de fotografias suas. Ela me mostrou várias, antigas e recentes. - Todas mortas – lhe disse (...). Posar é como se tornar estátua por um momento. A vida se move continuamente e nunca pode ver a si mesma (...). A senhora só pode reconhecer-se posando: estátua sem vida. Quando alguém vive, vive sem se ver (...). A senhora fica tanto tempo se olhando nesse espelho, em todos os espelhos, porque não vive”. Abranches volta para a frente do palco, começa a se pintar de azul. “Todos os dias, pela manhã, me pinto de branco para então descobrir novas cores”. Depois do azul, o vermelho. O corpo sempre tensionado sem muita coordenação (mais coordenado na hora de se jogar tinta), se atirando no chão sem muitos receios. Noto que meu corpo também está tenso, acompanhando o dançarino. Jogar sobre si todas as cores – o branco – para ir se desfazendo daquelas que não lhe cabe naquele dia? Ser tudo ao amanhecer para ir se moldando conforme o desenrolar do dia? Depois do vermelho, o amarelo, jogado primeiro na mulher, sobre a qual ele rola em cima. Minha gastrite chega a dar alguns sinais, tento relaxar. Action painting? Havia visto uma performance desse tipo em um Festival de Apartamento, em Campinas – sem originalidade e sem vida, absolutamente dispensável. Aqui é diferente. Abranches se joga então o verde, rola pelo chão, caminha um tanto mais. As cores vão perdendo o vivo que tinham logo ao encontrar seu corpo, se tornam uma massa escura informe. Começa a distensão – ainda que persista o corpo tenso e os movimentos sem jeito. Vai até o fundo e se enrola em um dos painéis, que solta e cai. Se debate sob o painel, e grita “uhul” quando se desvencilha. A tensão praticamente acaba. Ele ressurge, o corpo ainda tenso, mas menos, os movimentos desengonçados. Acho que o espetáculo perdeu o momento certo de acabar: a quebra da tensão ajuda a deglutir melhor o espetáculo, mesmo antes d'ele acabar e cada um seguir para sua casa. O dançarino retira do centro do palco uma tela, pintada durante sua performance – daí o título, “Corpo sobre tela”. Põe-na em um cavalete, dá um ajuste final com tinta branca. Não precisava desse final feliz, podia deixar o incômodo ao público – já faço minha ante-crítica –, ainda que esse fim não desabone o trabalho impressionante do artista. Ele se retira para trás dos painéis (todos pintados em suas apresentações, dezenove com aquela). Há ainda um longo momento de silêncio até começarem os aplausos – faço questão de aplaudir de pé. Abranches volta, o corpo já sem toda aquela tensão e... os mesmos movimentos descoordenados! Só então me dou conta de que ele não os representava! E não sendo só representação, deixo de interpretar o tal final feliz como uma mensagem de “é só tentar para conseguir”: esse final é a afirmação de uma pessoa em sua totalidade: uma mente-corpo que, à despeito de suas dificuldades por conta de uma paralisia cerebral, se afirma como totalidade; diferentemente do que se vê em muitos corpos famosos e invejados – modelos, atores, atrizes –, que não passam de corpos ocos. Descobrir que não era só uma representação faz com que a dança, que já me parecera fantástica, se transforme em dilacerante: Abranches transforma em potência o que é visto como uma fraqueza. Estaria relegado pela nossa sociedade a um peso inútil e incômodo e, ao invés disso, se supera e nos mostra que somos todos feitos do mesmo barro: eu, sem problemas de movimento, me identifiquei plenamente com sua atuação; ao mesmo tempo que joga na nossa cara que nossa pretensa liberdade e saúde oculta que temos nossos movimentos tolhidos e normatizados. Que ele desfruta de cores para colorir suas horas enquanto nós temos nosso olhar embotado para as luzes do dia-a-dia. E o que era aquela mulher tão serena no canto, traduzindo em gestos seus gritos? O recado de que aquela agonia era apenas luta e não aflição? Que dentro daquele corpo teso estava uma alma calma? Que, ao contrário do que eu imaginava, ele representava, sim: não suas dificuldades, mas as nossas limitações?
Olhei para o lado, para os amigos que me acompanhavam. Tínhamos nós, ao fim do espetáculo, dificuldade para articular a fala.

São Paulo, 17 de novembro de 2013.

sábado, 16 de novembro de 2013

Corpo em movimento

[livre leitura de “Onde o oposto faz a curva, de Patrícia Árabe]

A dançarina caminha em círculos pelo palco cercado pelo público. É curioso notar o monótono girar de cabeças de meus pares, necessário para acompanhar o caminhar sem sentido e sem pausas de Patrícia Árabe. Não me exige muito para estabelecer uma relação com o transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Mas essa primeira parte de “Onde o oposto faz a curva” me remete também a algumas teses de Paul Virilio e Ernst Jünger, sobre o imperativo de se estar em movimento: vivemos em uma sociedade que por mais que não esteja em guerra, é calcada nos princípios que a norteiam desde o século passado, principalmente após a segunda guerra: a guerra em permanente latência, toda a sociedade, todos os seus cidadãos preparados, armados “até a medula, até o mais fino nervo da vida”. Na guerra de movimentos, estar parado é ser um alvo fácil, daí que parar não é um opção aos viventes do século XXI. Esse corpo compulsivo, em movimentação sem fim, é substituído pelo corpo futilizado, banalizado: um corpo que aparentemente pára, aparentemente reflete: aparentemente. De fato é só um corpo subinvestido do pensar compulsivo, que anda em círculos sem sair do mesmo: um corpo que reflete idéias já postas, hegemônicas, e o faz como uma forma de aparecer – daí fazê-lo para o vídeo, gravar sua própria experiência de, parada, entregar seu peso ao chão, como dizem que é interessante.
Em movimento ou parado, o mesmo corpo capturado: há alternativas?
Patrícia Árabe indica que sim: o corpo em consciência. O corpo em movimento de auto-reflexão: corpo com marcas (não vistas num primeiro momento), que ao buscar a autoconsciência se move mas também pára, e consegue permanecer parado em e permanecer calado, enquanto observa – a si e ao seu entorno.

São Paulo, 16 de novembro de 2013.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Esperando o sinal abrir

São sete e quinze da noite. O sol se pôs no horizonte, tingindo de diversas cores as nuvens de um dia cálido. Ele não aparece mas sua claridade ainda está presente, forte o suficiente para que as luzes da cidade sigam apagadas. É aquela hora que, de alguma forma, por alguns instantes, compartilhamos o destino de Peter Schlemihl e estamos sem sombra – a diferença é que não a negociamos com o diabo. Por via das dúvidas, algumas pessoas se antecipam à noite iminente e desafiam deus e o diabo com os faróis de seus automóveis. Um deles está parado na esquina da Dona Antônia com a Consolação, esperando o sinal abrir. O motorista gesticula espaçosamente enquanto conversa com o passageiro. A conversa parece interessante, não sei se repara no pôr-do-sol ou no garoto moreno, mais baixo que o carro, que com o rosto tristonho faz malabarismo com três bolas sob a luz amarela que o carro emana. Ele se retira da frente do carro antes do sinal abrir, deixando o caminho livre para a cidade seguir seu fluxo rumo à noite.

São Paulo, 13 de novembro de 2013.

ps: foto de Julia Teles Baptista, 12 de novembro (dia da cena).

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O frescor do verão [memórias feitas de saudades]

Levo uma amiga para conhecer o restaurante árabe da Cracolândia que tanto gosto. Apesar de ser quase oito da noite, faz calor. Pedimos um sugog e um shawarma. A cerveja é preciso comprar no bar ao lado. Minha amiga se levanta e vai. Está com um vestido leve, que a cada passo deixa a expectativa de que suba, mostrando um pouco mais suas pernas (depois me explicaria que se trata, na verdade, de um shorts). “Ah, o frescor do verão”. Lembro da frase tantas vezes trocadas com você, pessoalmente ou por sms. Algumas lágrimas me sobrem aos olhos, são poucas, mas vêm com tamanha força que não consigo segurá-las. Foi algo parecido, só que mais intenso, quando você me abraçou por conta de um desentendimento com essa mesma amiga – havia vários motivos, fazia tempo que eu precisava chorar e não conseguia, até sentir seu toque. As lágrimas me fazem lembrar de trecho de sonho que tive no final de semana, em que eu tentava segurar o choro – por sua ausência – até não conseguir mais. Essa cena tem sido recorrente em minhas noites. Minha amiga volta com a bebida e dois copos. “Que foi? Por que está chorando?”. Conto da memória que me aflorou. Vocês invertem papéis, agora ela quem me consola. “Ela deve estar num lugar melhor, rindo de você – bobo – estar chorando assim”. Poderia ser, eu adoraria que você estivesse em qualquer esquina ali perto, invisível, apoiada em uma mesa, segurando um cigarro, uma Coca-Cola, um suco, uma copo de cerveja, uma água, comentando das garotas que se aproveitam do calor para o trazer às nossas vistas o frescor de seus vestidos sobre a pele convidativa. Você olharia para mim, um sorriso nos lábios, suspiraria e diria “ah, o frescor do verão”, antes de cairmos na gargalhada.

São Paulo, 12 de novembro de 2013.

[para Patrícia Misson e nossos comentários sobre o frescor do verão]

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Olivia V. (retratos feitos de memórias)

Fora assessora de juiz por cinco anos. Concursada em cargo de terceiro grau, comissionada – o desejo de tantos nos dias de hoje. Não consegui saber se tinha sido o desejo dela também, ou apenas estava lá por desejo e pressão do pai, e para seguir o “fluxo normal da vida” pelo melhor caminho – presume-se. Diz que se sentia mal naquele cargo, se dando conta a cada dia mais de que o sistema judiciário servia principalmente para ferrar quem já estava ferrado – ela atuava como homologadora do nosso absurdo status quo. Aproveitou a transferência do companheiro (e seu apoio) para largar tudo e estudar atuação – estava perto dos trinta anos quando fez isso. “Tinha dias que chegava, via aquela pilha de processos e chorava. Eu me perguntava o que estava fazendo da minha vida”. Olhando para ela era difícil acreditar ela em tal situação: hoje parecia uma pessoa tão alegre, tão leve. Quando falava sério, ora tinha um olhar penetrante sem ser duro, ora olhava como se mirasse no tempo, e não no espaço. Quando sorria, seus olhos eram tão expressivos quanto seu sorriso – ela toda encantadora nessas horas. Sua beleza era feita também desse transpirar leveza. Imaginei ela em roupa social, trancada num escritório, uma peça na burocracia judiciária, a comparei encenando a gata da cena que montamos. Mesmo que não consiga ser atriz de sucesso, não consiga chegar perto do salário que teria se seguisse como funcionária do judiciário, sinto que fazia mesmo sentido ela chorar aquela época.

São Paulo, 28 de outubro de 2013.

São Paulo, 25 de outubro, 19h

Há quem ache que muitos policiais na rua é sinônimo de segurança. Para quem conhece a cidade além da televisão e do preconceito aprendido com seus âncoras – os pitbulls policiarescos ou os pseudo-sérios que falam também de economia –, era possível sentir, nesta sexta, a tensão nos grupos de cinco, seis, sete policiais parados em cada esquina do centro de São Paulo. São sete horas da noite, ouvi no rádio, pela manhã, que o Movimento Passe Livre organizava um ato no centro de São Paulo – depois de uma série de protestos na periferia. Partidários das táticas black blocs, é claro, eram esperados. Estou no cruzamento da Ipiranga com a Barão de Rio Branco, o sinal para pedestres pisca. Resolvo esperar. Um homem termina de atravessar a primeira metade da avenida Ipiranga. Xinga, discute com um motorista que havia parado em cima da faixa. É um homem moreno, claramente de classe baixa – não dá tanta impressão de morador de rua (ou de calçada, como alguns preferem ser chamados), mas não surpreenderia se fosse. O sinal para carros novamente fecha, o para pedestres abre. Um último apressado fura o sinal com seu Nissan novo, quase atropela o homem, que xinga o condutor não sei em quais termos – bem provável que se referia à mãe do motorista, que pela sua pressa, ele estava indo buscar em alguma casa de má fama para as famílias de bem. O carro é freado bruscamente, a luz de ré se acende, e o motorista parte para cima do homem na faixa, que se desvia do automóvel. Há um grupo de seis policiais na esquina para a qual se dirige o homem. Dois saem em direção à rua. Penso com certa alegria que a polícia fará sua parte e o ogro ao volante, no mínimo, escutará qualquer coisa. O carro foge, mas nem precisava. Os policiais se aproximam do pedestre, um deles dedo em riste. “Está querendo arrumar encrenca, é?”, “O cara tentou me atropelar”, “Você já vinha arrumando confusão desde a outra faixa, que nós vimos”. Me afastei, a discussão continuou. A polícia fazia seu papel, cumpria sua tarefa: mantinha a ordem: reforçava o comportamento do motorista, fazia o cidadão respeitar a vaca sagrada brasileira, e ainda mostrava a ele que errado no Brasil é atentar contra o patrimônio, não contra a pessoa. Porque assim como quebrar banco (no sentido de umas vidraças de empresas que lucram bilhões, e não no de causar prejuízos aos cofres públicos por fraudes ou má-gestão) é coisa de bandido, o que autoriza a polícia a atirar (que sejam balas pretensamente não-letais, na verdade, apenas menos letais), usar o carro como arma para tentar ferir alguém não é problema: crime no Brasil é ser pobre e ainda querer atrapalhar o tráfego.

São Paulo, 25-28 de outubro de 2013.

domingo, 27 de outubro de 2013

Não te peço respostas [memórias feitas de saudades]

Páro em frente a casa número 128: havia me arrastado até lá desde a estação de metrô, querendo desistir, voltar, seguir vendo coincidências e sonhando o sonho impossível de te encontrar de novo – apenas esse e poder voar como um pássaro são meus sonhos impossíveis. Eu sabia que ali encontraria apenas a não-presença – como ela se apresentaria? Observo a garagem vazia de carro e cheia de plantas (São Paulo seria uma cidade melhor se mais casas fossem assim): as plantas estão bem cuidadas. Lembro dos grandes sacos de lixos que se acumulavam ali nos dias seguintes às não-festas (elogios ao tédio?). Eu trago um pacote do café que gosto na mochila e lágrimas nos olhos. Fico ali parado um tempo, me falta coragem: tenho medo do que sei que não encontrarei. Passa um carro que me tira desse torpor, olho para o céu cinzento (aqueles dias foram de sol), respiro fundo. Havia lembrado no dia anterior das suas férias, em abril, passadas em minha casa boa parte dela, já que nem a viagem para Buenos Aires nem a para Pato Branco aconteceram – esta por causa da minha busca por alguém pro apartamento. Seria legal, seria bom, mas não precisávamos ter tanta pressa: não fosse agora poderia ser num feriado, no fim de ano, em algum fim de semana, nas suas próximas férias. Tenho vontade de me perguntar e se... Me calo – não há futuro do pretérito. Há o presente, e preciso aceitá-lo – com suas dores e suas perdas. Toco a campainha. Adentro sua casa, uma sensação estranha, sei que você não chegará logo mais, porque “saiu para ir ao mercado” (e o ingênuo aqui acreditou nessa história). Sinto o presente bastante presente, fico aliviado com essa sensação. Há a recordação, há a dor (a dor de todos é a mesma), há as formas de tentar contorná-la, há a vida para levar (cada um com a sua). Seu irmão está acompanhado da namoradinha dele (o diminutivo pelo tipo físico dela). Seu pai e os jogos da tarde, do São Paulo e do Porto. Sua mãe conta dos pequenos planos para os dias seguintes – o banal, mas que nessas horas é de grande valor. Sua irmã não está: é dia de Enem. Djalma chegaria mais tarde. E você? E você? No “QGinho”, diferente mas ainda com sua marca, reparo na sua biblioteca. Uma bela biblioteca, cheia de títulos interessantes. Me dou conta, surpreso, de que nunca havia prestado muito atenção nela: sua companhia era sempre muito mais interessante. Encontro os dois livros que havia te emprestado. Um deles, Retratos japoneses, do Ronald Richie, tem sua assinatura na contracapa e a data da leitura: agosto de 2013. Deve ter sido último livro que você leu. Novas lágrimas, me seguro. Há, num canto, um monte de cadernos e papéis. Sigo com meu plano de lançar um livro seu – havíamos conversado sobre isso algumas vezes, lembra? Sabia que você escrevia bem, não imaginava que escrevesse tanto – há ainda os arquivos no computador, emails enviados. As cartas foram queimadas. Sua mãe me mostra um livrinho que você escreveu quando tinha oito ou nove anos. Aqui em casa tenho um outro livrinho, de quando você tinha uns quatorze. Somos parecidos em nossos cadernos: anotações de aulas trechos de livros escritos autorais tudo misturado e desorganizado. Leio um poema que me agrada muito, será mesmo seu? Nunca me mostrou verso algum. “Olírico”, título de um texto que enviou para a segunda Casuística (foi por causa da revista que nos conhecemos, em 2009), é recorrente em suas anotações. Cartas escritas e não enviadas também. Há muitas para mim. Como seus emails, não sei bem o que responder. Seus emails você dizia que eu só devia responder se sentisse à vontade ou necessidade – eu seguiria sendo seu interlocutor. Em geral eu preferia comentá-los pessoalmente. Vejo que faço o mesmo contigo com estas minhas crônicas: bem gostaria, mas não te peço resposta – você segue sendo minha interlocutora assim mesmo. Não apenas minha. Sim, você faz falta, porém ainda é presente, e somos muitos os que seguimos dialogando com você – mesmo sem respostas.

São Paulo, 27 de outubro de 2013.

para Patrícia Misson, de quem não peço respostas (por mais que gostaria).

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Na fila do mercado, numa madrugada de domingo

Oxe, nunca tinha visto, me respondeu a caixa quando perguntei se era comum aquele tipo de cena. Esses esqueitistas, resmungava um homem na fila, no alto de sua sabedoria preconceituosa e senso comum, ignorando que não havia ninguém com prancha ali. Foi a conversa de momento pelos cinco, talvez dez minutos que me demorei ali. Pouco antes havia saído um rapaz, puxado – finalmente – pela sua namorada, aos berros: covardes, dois contra um! Vem só um! Vem só um! Se fazia vítima agora, o macho alfa, que instantes atrás chamava os dois pra briga. Eu entrara na fila de pequenas compras – até vinte itens. Na minha frente um rapaz de uns vinte anos, um saco de pão e uma bandeja de frios. Aparentemente, tudo normal, cada um pensativo com sua compra e na semana por vir. Foi quando o rapaz na sua frente se vira e pergunta que ele está querendo arranjar confusão. Estou aqui na boa, quieto. O da frente insiste, mostrando toda sua testosterona, ignorando os apelos da namorada para que parasse: cadê teu amiguinho? Pouco depois chega o amigo, alargador na orelha, várias tatuagens (como o macho alfa): que foi, ainda enchendo o nosso saco? Nenhum bombado, todos com seus um metro e setenta. Algumas trocas de adjetivos e o de alargador manda calar a boca: vem fazer eu calar. Desafia o macho enquanto empurra o primeiro rapaz, que já havia avisado pra não ralar nele. O de alargador aceita o convite e os dois se abraçam aos gritos de pára da namorada. O primeiro rapaz vê uma garrafa de vodca, pensa rápido e não titubeia: logo voava pelo ar o líquido amarelado ao som de vidro quebrado. Algumas pessoas aparecem para separar: não tem segurança aqui? O segurança chega depois, quando o macho alfa já havia saído com a namorada, se fazendo de vítima. No chão, junto com a vodca, sangue. O primeiro rapaz comenta, indignado, com o segurança: eu tava de boa, ele veio encher, e olha o que ele fez eu fazer com meu brother: reparo no rosto do rapaz de alargador, o sangue jorra do supercílio aberto pela garrafada do amigo

Morais da história: se chamar dois pra briga não os acuse de covarde porque aceitaram o convite; e quando for brigar, só use armas se souber usá-las: você pode acertar seu amiguinho.

São Paulo, 14 de outubro de 2013.

sábado, 28 de setembro de 2013

De sonhos e coincidências (memórias feitas de saudades)

No dia em que se completava um mês da sua perda, estava tristonho e resolvi ir caminhando para a aula. Passava pelo Brás e vi um ambulante vendendo uma camiseta do Pica-Pau com o nome da sua irmã – você iria dar risada s'eu ta presenteasse (como me chamaria de acadêmico agora, por usar “ta”). À noite havia sonhado de novo com sua ausência. Diferentemente da outra vez que tive sonho assim, neste não havia pessoas ou locais familiares, não havia alguma alusão cinematográfica. Havia um quotidiano qualquer pelo qual eu circulava tentando segurar o choro (nem sempre conseguindo), por não ter mais a sua alegria, não ter mais você para compartilhar as pequenas banalidades, coisas que passariam batidas, muito provavelmente, não fosse você ter me ajudado a me aprimorar o olhar para esses tipos de miudezas. Foi um sonho também diferente do último que tive contigo, há dez dias, no qual você estava presente: subíamos a Augusta pelo seu lado preferido (o direito), nos aproximávamos da esquina com a Antônio Carlos – a qual seguidamente parávamos para bebericar uma cerveja (e você fumar) e olharmos o movimento –, eu te abraçava e dizia: “Puxa, Misson, como sinto sua falta”. Você não respondeu nada, porque antes meu celular tocou, com a mensagem de uma amiga, que perguntava de algo relacionado a você. Apenas outra de uma série de coincidências que nesse último mês abalaram minhas (des)crenças. Contra meu ceticismo, queria crer que há um além, que poderíamos ainda ter algum contato, e que essas coincidências fossem um sinal da sua presença. Mais certo, porém, que seja apenas minha dor tentando aliviar o vazio no meu dia-a-dia deixado pela sua partida. É tarefa diária reafirmar a mim mesmo a aceitação e o conformismo com sua perda (há algo mais para fazer?), ainda assim, no fim do dia, me custa a acreditar: você se foi mesmo? Se eu te mandar um sms contando da moça de gorro no Folias, você não vai responder? Ao abrir meus emails não terá um seu lá, com grandes questões existências em meios a pequenos eventos quotidianos na sua escrita gostosa de ler? No fim deste dia, no mercado, enquanto ensaiava esta crônica e me dava conta de que era capaz de lembrar em detalhes o dia vinte e oito de agosto, começa a tocar Ira!, “Vida Passageira” – outra coincidência. Queria contá-la para você, para que tirasse sarro da minha breguice.
Pouco antes, quando eu subia a Augusta, ao passar pela esquina do sonho, fiz como tenho feito sempre que passo por ali: cruzo os braços contra o corpo num abraço imaginário e digo em silêncio: “puxa, Misson, como você faz falta”.

São Paulo, 28 de setembro de 2013.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Te conto o sonho de sua ausência (memórias feitas de saudades)

Hoje sonhei com você. Minto. Sonhei com sua ausência. Eu sentia sua falta também no sonho. E chorava, chorava muito. Chorava todas as lágrimas seguradas nestes últimos dez dias, porque me resta a vida por levar – ainda embotada nas suas alegrias, manca da sua poesia, carente da sua interlocução. No sonho eu me encontraria em breve com uma guria que estava a fim (oriental, por mero acaso), mas não conseguia lembrar o nome dela – não me vinha nome algum. Pensava em te pedir ajuda, mandar um sms perguntando o que fazer, para que você me avisasse para o óbvio, para o simples, para o terreno. Sorria. Não tenha medo do ridículo. O não você já tem. Eram algumas das singelezas que você me dizia quando pedia seu auxílio nesses assuntos – mas você mesma admitia que essas coisas não eram assim tão fáceis, tanto que sempre recorria a mim para te dizer basicamente o mesmo, só que do meu jeito mais barroco. Ou repetir exatamente as suas palavras, para você me responder: meu deus, o que eu fiz?, criei um monstro! No meu sonho você estava ausente. Aquela ausência presente, sentida, indefectível. A mesma ausência que vivo quando acordado. O sonho tinha cortes espaciais sem explicações (lembra quando te contei do sonho em que eu, depois de te chamar para irmos a um castelo, te deixava sozinha pra ficar com Camila, e você aproveitou então para me falar do código de honra do grupo de amigos que fiz graças ao seu jeito agregador: se tiver mulher na parada, toda ausência é justificada?). Eu estava em um shopping. Um não-lugar (livro que você havia pego emprestado, depois que te mandara o trecho sobre o sentir-se em casa, e que você interromperia a leitura a meio caminho – para ir pra onde?), um lugar qualquer que não freqüentávamos, porque nosso lugar, fora de nossas casas, era a rua: era a Paulista, a Augusta, a República, a Sé, a Zona Leste. Eu estava nesse shopping e queria voltar para casa, precisava pegar um ônibus, mas não sabia como fazê-lo. Era noite e foi a gota d'água para que eu chorasse sua falta (a única vez que pegamos ônibus juntos, para ir a Cotia, era noite e conheci sua amiga Híndira). Em outro momento do sonho eu estava na despedida de Lagares. Na verdade devia ser Joaquim – eu sempre tive dificuldade com os nomes do seu quotidiano. Ele saía em definitivo do metrô, ia aproveitar sua aposentadoria. Nos encontramos na saída do vestiário, ele (que tinha a cara de Ian) me cumprimentava alegre, Prazer! Eu chorava porque sabia que era a última vez que o veria, que teria notícias dele – como da engenheira do metrô, da professora de inglês, de Eliza, de Carlos, de Ezgi, de Marcelo, de Nilson da granola, da Elefoa Gay, do moço que comprava bilhetes todos os dias e ficava te encarando, dos moradores de calçada, dos jovens cidadãos, das cédulas em que você escrevia Cuidado com o vão entre o trem e a palavra, entregava no troco e lamentava que não prestassem atenção, e tantos outros personagens e situações que eram quase meu quotidiano também. Lagares se encaminhava para sua partida. Era como uma sala da SP Escola de Teatro – você iria fazer cenografia e figurino lá ano que vem, lembra?, seríamos parceiros de experimento, você voltaria a mexer com teatro e arte, coisas que te faziam falta –, era também como o cenário do Show de Truman. Lagares subia por uma escada rumo a um céu com o sol contra, e acenava para todos que estavam abaixo, que estavam contentes e emocionados e acenavam de volta. Do outro lado da sala, sentado em outra escada, num escuro de platéia, eu chorava. A luz foi tomando conta dele, como no Pequeno Príncipe. Ele estava feliz, radiante – como aquele fim de tarde, que eu não sabia se era real ou era cenário.
Acordei como tantas vezes você me acordara, com o barulho de mensagem no celular. Era quase onze da manhã (e não seis, sete, como quando você me escrevia). A mensagem não falava de alguma discussão com usuário que tentara furar a fila dos preferenciais, de uma crise existencial, de alguma quotidianidade sua, de uma idéia de algo para fazermos juntos na sua folga de três. Falava de coincidências. Era de uma amiga que, por coincidência, na sua última mensagem, você perguntava sobre ela. Ela vai bem. Nos encontramos semana passada, conheceu minha mãe, devemos nos encontrar de novo esta semana. Queria que você a conhecesse também – acho que vão se dar bem.

São Paulo, 09 de setembro de 2013.

[para Patrícia Misson, que gostava de me contar seus sonhos literariamente por email]

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Patrícia M. (memórias feitas de saudades)

"Sempre acreditei que a vida fosse absurdo, limite. Foi essa idéia que não suportei mais". Me mandou esse sms no dia 19 de julho, quase sete da noite, e avisava: "Uma das toalhas terminou". Na verdade, ela terminara de bordar uma das toalhas que se propusera – mas nela sujeito e objeto, sujeito e predicado se confundiam em Vida. Nas últimas quarenta e oito horas fiz tanta coisa que não queria ter feito, mas não havia alternativa - tem horas que não nos cabe qualquer poder de escolha. Não queria ter tomado o primeiro trem para fazer o seu caminho inverso. Não queria ter que perguntar "verdade" duas vezes para começar a acreditar. Não queria abraços de amigos para me apoiar – assim como eu a eles –, a perna a tremer, as costas a doer, a respiração a faltar. Não queria ter ajudado ninguém nem pedido ajuda – no máximo queria sua opinião se o azul escuro ia ficar bom na parede da sala. Não queria a carona, a terra e as flores. Queria que fosse um sonho ultra-realista e absurdo, como a vida – irreal e sem sentido. Queria você empoleirada no sofá para fumar na janela a dizer, diante da história anedótica do meu enésimo fracasso com mulheres, "Pô, Dalmoro!, assim não!, assim não! Eu e Djalma vamos ter que te ensinar uns negócios”. Queria sms sobre usuários do metrô, às seis da manhã; paqueras ao meio-dia; toalhas bordadas às seis da tarde; piadas de seriados que nunca ouvi falar à meia-noite. Queria acordar com mensagens absurdas no meu celular, no meio da madrugada, me chamando de Fanoruti e avisando que logo chegaria na minha casa, que tinha a chave e não queria me acordar. Queria acordar às quatro da manhã como todos os dias, para ir ao banheiro, para comer uma castanha ou massa de pão que a máquina já começara a bater, porque a coberta caiu; não por causa de uma ligação do seu celular do qual falava uma voz diferente. Queria mandar um sms da conversa sem noção que ouvi no trem. Queria te contar de alguma paixonite e receber de volta notícias de Marcelo ou Ezgi. Queria você me anunciando uma moça pela qual eu iria me interessar e eu fazendo o mesmo. Mas a vida é absurdo. O tempo enlouquecera a partir da madrugada do dia vinte e oito: ele estancou às três e cinqüenta e oito, ao mesmo tempo em que as horas passavam rápidas enquanto eu estava na sua casa, esperando pela sua volta que eu sabia que não ocorreria. Passavam rápidas enquanto aguardava notícias suas e da burocracia. Passavam rápidas quando estive na sua presença. Sua aparência tão serena, você que andava seguidamente com a testa franzida – está em um texto seu do seu blog secreto –, até quando dormia – que eu também reparava. Nós e nossos blogs secretos e nossos emails e nossos sms e nossas mensagens no Facebook. A dor no peito, os exames que não apontavam nada. The panic, the vomit. Vinte e três de julho, a primeira vez, você reclamou que perdeu o dia. E teve um sonho apocalíptico depois. E se não acontecesse, os exames da manhã te salvariam? Como um cacto, que absorve as energias negativas e tenta neutralizá-la. Como uma irmã – mais que isso. Mas não tinha espinhos, não conseguia se proteger. Como minha primeira peça. Como meu último conto. O futuro do pretérito que não consola nem conforta. E se? Uma tatuagem do Pica-Pau incompleto no antebraço, como a nos apresentar nossa incompletude e a angústia desse estado – era um desenho animado, mas trazia o esculacho dos seus questionamentos radicais e sutis sobre a existência. Hoje eu sou essa tatuagem. A vida é absurdo, limite. A iminência da morte – e a morte materializada na ausência. A dor. Vinte dias antes você dizia: “Essas pessoas nunca saberão que me dão uma grande esperança, que me fazem suportar tantas coisas que não entendo, tanto concreto e alumínio. Essas pessoas me prendem naquele lugar e, tendo de repensar muitas de minhas relações mais antigas e profundas, não sei avaliar em que medida são a prova de que não sei caminhar sozinha. Eu preciso sempre de algo que esteja comigo, como se as pessoas, os lugares, as ruas fossem uma espécie de escapulário que carrego no pescoço. Não sei estar só. E é um desejo muito antigo”. Você sabia que me enxia de esperanças na Vida e me prendia como ninguém neste lugar. Com você eu também desaprendi a estar só.

São Paulo, 29 de agosto de 2013.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A presença-ausente do Outro em “Desarticulações”

“Tentar entender este estar/não estar de uma pessoa que se desarticula diante de meus olhos”. Para onde fugir quando o outro que nos ancora se desfaz em um presente perpétuo, um presente que não é feito de presença, porque não possui em si a duração?

“Desarticulações”, peça inspirada na obra da argentina radicada nos EUA Sylvia Molloy, é o relato fragmentado e angustiado de uma mulher que visita uma pessoa íntima sua – Maria Luisa –, que está perdendo a memória – tanto a recente quanto a antiga. A peça levanta a questão da necessidade do Outro enquanto condição de formação de lembranças, de afetos e da própria identidade.

A protagonista nos conta sobre Maria Luisa, que ora se lembra apenas de coisas muito antigas – como se fossem ainda presentes –, ora apenas de coisas recentes, ora não se lembra sequer de ler. Há momentos que esquece até as palavras, e não só não consegue articular frases, como sua fala se reduz a sons. Diante dessa perda de conexão entre o ontem e o hoje e entre cada instante, desse desfazer-se, dessa desarticulação entre uma pessoa e um corpo, a protagonista se vê também desarticulada, ao não conseguir compartilhar as experiências vividas com Maria Luisa, se ver obrigada a contar suas memórias como se fossem novidades a alguém que há um certo tempo tinha o poder de balizá-las, confirmá-las, complementá-las. Sem esse retorno do Outro sobre o que a protagonista conta sobre si, sobre ambas, ela se vê numa situação quase tão precária quanto aquela que se desfaz. Tanto que assim como Maria Luisa aparece como sombra (projetada durante a peça), a protagonista, sem se tornar ainda sombra, se torna espectro, nas projeções em branco e preto no chão.

Num espaço branco, com luzes brancas, a protagonista veste o peso do luto: o Outro, cuja presença serve para fazer sombra e nos fazer recordar, antes de mais nada, da precariedade de nosso estar no mundo e da necessidade da contraposição do Outro como sujeito – para não nos tornarmos espectros do que um dia fomos.

São Paulo, 22 de agosto de 2013.


PS: Outro ponto que a peça me provocou: curiosamente, apesar das dos problemas de memória, Maria Luisa não se esquece de regras de etiqueta, de estratagemas de convívio social, as formas de agradar e se mostrar interessada e solícita, incorporadas como uma segunda natureza. Se apresentar bem, ser agradável, não se lembrar de nada – talvez o anúncio do que querem para nós?

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Mariana H. [Retratos feitos de memórias]

Era uma garota toda miúda: um metro e cinquenta e seis de altura, pouco mais de quarenta quilos, calçava trinta e três. Hiper-ativa, estava em mil projetos, confabulava infindas idéias, prestava atenção em tudo. Comunicativa, puxava conversa na rua com uma facilidade que me impressionava, e como uma criança curiosa queria saber onde morava, de onde vinha, o que fazia da vida. Para o futuro, pretendia arrumar um emprego tão logo terminasse a faculdade de arquitetura – no fim do ano –, e começar o curso de audiovisual: queria ser uma artista, uma videomaker. Já ensaiara alguns vídeos e eu me admirava do seu olhar. Ela criticava o excesso de rigor técnico e a falta de poesia dos estudantes de cinema e afins. Um amigo compositor certa vez tentou alertá-la: sem técnica não adiantava inspiração, as idéias não se traduziriam em poesia. Eu sei, mas... e insistiu na sua tese, como uma criança birrenta. Em uma oportunidade questionei como pretendia ser artista e ter muito dinheiro (como dizia ser sua ambição). Trabalho para ganhar dinheiro, faço arte no outro horário. E não teme acabar fazendo vídeos publicitários, sem tempo para se dedicar à sua arte. Será, se questionou, e depois, agoniada: não quero isso, preciso fazer minha arte também! Vou achar um jeito de conciliar. Como disse, eu gostava do seu olhar, dos seus vídeos mais próximos do chão, recortes de detalhes mais ou menos definidos que insinuavam o contexto. Porém temia quão longe chegaria – ou se logo capitularia sua arte – com sua postura imatura frente o mundo. Com um quarto de século e uma pele adolescente (só que sem espinhas), falava reiteradamente em pôr botox quando velha. Eu, de minha parte, torço para que muito antes disso ela aceite as linhas da idade e as marcas do tempo, e consiga conciliar seu sonho de ser artista com a aspereza do mundo.   

São Paulo, 19 de agosto de 2013.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Paula O. (retratos feitos de memórias)

Foi na segunda vez que nos encontramos. Depois de jantar em um árabe na chamada cracolândia – indicação minha –, havíamos ido assistir a uma apresentação de dança – ela já havia feito dança contemporânea, até se apresentara, uns dois anos atrás; eu, um mero espectador ávido, talvez tímido demais para me arriscar nas artes do corpo. Passávamos pelo Anhangabaú, em direção à rua Augusta, quando ela titubeou uma pergunta, se perdendo nos termos. “O que você se imagina fazendo?”, “quando?”, “ah, mais pra frente”, “mais pra frente... quando eu crescer?”. Ela riu: duas pessoas com mais de trinta anos se perguntando o que querem ser quando crescer. “Não sei, e não penso muito sobre isso”, respondi, “e você?”. Ela também não sabia, só sabia que não queria seguir para sempre no mesmo emprego (é engenheira, trabalha na área), por mais que não pudesse se queixar de salário ou condições de trabalho. Me perguntei se seríamos os retardatários ou a vanguarda, ao ainda nos pormos esse tipo de questão de modo tão leve. A conversa prosseguiu por assuntos vários, enquanto caminhávamos em um presente prenhe de futuros, por mais que o mundo tente nos desautorizar de experimentar nossos sonhos e viver nossas angústias.

São Paulo, 14 de agosto de 2013.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Além da faixa amarela

Estação da Sé, sete da noite de uma terça-feira com alguns problemas no metrô (nada comparado ao dia anterior, quatro da tarde, na Barra Funda). Estou com uma amiga espremidos na baia, esperando pelo próximo carro. Chega um, já lotado. Somos arrastados até próximo do embarque, pessoas se socam lá dentro. O trem parte, ficamos esperando pelo próximo. A tal faixa amarela – que, segundo o metrô, “é para a sua segurança” – há muito foi desrespeitada por um sem número de pessoas. Enquanto compartilhamos do calor dos corpos alheios, resolvo contar a minha colega de aperto histórias ouvidas de uma outra amiga, metroviária, sobre casos de pessoas que não respeitaram a tal faixa. O caso que mais me impressiona é o de uma pessoa que, ao que tudo indica, espirrou justo na hora em que o trem passava. Resultado: o trem bateu em sua cabeça e ela morreu. Comentei de um vídeo do metrô em Praga, em que uma mulher passa mal, desmaia e cai no meio dos trilhos na hora que o trem se aproximava. “E aí”, pergunta minha amiga. Se encolheu e o trem não a pegou. “Que sorte”. Sim, sorte, mesmo, porque quando desce pra via, há o risco de morrer eletrocutado pelo chamado terceiro trilho – ou seja, não é só o trem o perigo. “Onde fica esse terceiro trilho”, ela pergunta espichando o pescoço. Também não sei e, claro, não consigo mostrar. Enquanto comento esses casos, vejo duas mulheres – depois da faixa amarela – me observando, checando qual a credibilidade do rapaz que comenta histórias escabrosas de mortes no metrô. Reparo que devem ter me dado por alguém sério, tentam dar um impossível passinho para trás. Seguro o riso e conto um caso mais. O trem chega e, independente da nossa vontade, somos assardinhados para nossa viagem.

São Paulo, 07 de agosto de 2013.


sexta-feira, 12 de julho de 2013

Cálamo e a cidade ao fundo

Cinco pessoas – três homens e duas mulheres – paradas na entrada principal do edifício Domingos Fernandes Alonso, de frente para a avenida São João. Uma luz forte ilumina eles e parte da calçada – imagino que o transeunte poderia ter a impressão de algo como uma vitrine, apesar de faltar o vidro que distancia o espectador da rua do que é apresentado, e apesar da luz vir de trás e não da frente. Chamam a atenção de quem passa. Algumas pessoas param para ver do que se trata – ficam um tempo e seguem seu rumo. Vinte metros longe, dentro do edifício, sentados nas escadas que levam ao Cine Olido, os espectadores que foram para ver “Cálamo: novos experimentos”, da iN SAiO Cia de Arte. Os quatro dançarinos (uma dos integrantes da apresentação é guitarrista, e fica no meio do caminho, tocando guitarra junto ao amplificador) circulam pelo saguão, sobem as escadas, descem-nas se arrastando, abrindo espaço por entre o público acomodado, trombam com pessoas que se dirigem aos caixas eletrônicos que há no caminho, saem do edifício, dançam na sua entrada – ou próximo dela –, onde se dá boa parte da apresentação, distante do público específico – no início ela ainda se focou um pouco mais nas escadas. A rua ao fundo ganha ares de cenário, numa apresentação com fortes características de performance, de muito chão e pouco ar, muitas quedas e poucos saltos. A cidade e seu ritmo ao fundo compõe com os corpos que caem, com as pessoas que remexem a roupa compulsivamente, que se jogam e ficam estáticas. No reflexo do vidro vejo o sinal para pedestres alternar vermelho-verde-vermelho. Dois policiais passam bem debaixo da luz, com a impressão de estranhamento. Estranhamento é a impressão de muitos dos que param para assistir. Um carroceiro passa indiferente. Ônibus e carros seguem seu trajeto na avenida. Um grupo de quatro garotas pára para ver, se assustam quando uma dançarina se joga aos seus pés – tomam distância, ficam um tempo mais assistindo à apresentação, e seguem. Os dançarinos puxam da rua algumas pessoas que estavam assistindo – ao que tudo indica, pelas roupas e desenvoltura, pessoas que estavam ensaiando em uma das salas da Galeria até pouco tempo atrás –, se tocam, se enroscam, se confundem. Quando estão próximos do “público”, nas escadas, uma senhora moradora de rua resolve entrar no saguão e dançar também. Foge quando um dos bailarinos se aproxima. O público ri. Duas pessoas circulam por entre os dançarinos, encarregadas de documentar a apresentação, como se fosse possível ter idéia dela por meio de foto ou vídeo. Perto da metade, já quebrado meu deslumbre inicial do recorte da cidade como parte da apresentação, começo a ficar incomodado com o fato d'ela acontecer tão longe. Decido inverter minha perspectiva. Atravesso o saguão em meio a um rapaz que rola no chão e uma garota que interage com duas crianças de cinco anos, se tanto. Na rua não tenho mais o cenário urbano, mas também não há mais coxia: a apresentação que temporariamente se encerrava com a saída dos dançarinos do saguão continua na calçada. O público espectador, passivo, ao fundo, longe dos bailarinos, não causa a mesma impressão como possível cenário: uma massa amorfa e, em certo sentido, desprezível – reagirão no final, se os dançarinos quiserem saber das suas reações. Fora do prédio, próximo do espaço onde os dançarinos desenvolvem por mais tempo a “coreografia”, encostado num orelhão, sei que então faço parte do cenário. Quando, por duas vezes me vejo cara a cara com um dos dançarinos, descubro ser cenário mais do que cenário: por mais que guarde alguma distância da entrada, não estou distante: sou parte da cena – mesmo que eu esteja só assistindo, segurando o queixo com cara de entendido. Corro o risco de ser levado pro centro do “palco”, ou de ser alvo de intervenção mesmo distante – assim como eles correm o risco de eu intervir na sua apresentação. Eles encerram “Cálamo” na entrada, distante do público espectador. Agradecem, agradecem quem aplaude da rua. Ali, próximos, a impressão de estarem numa vitrine continua: a questão é que a vitrine não é para a rua, mas para o público passivo distante.

São Paulo, 12 de julho de 2013.

domingo, 30 de junho de 2013

Lupicínio, dança, Paulista e polícia – embalos de um início de sábado à noite.

Adentro o chuvoso domingo em SP assistindo ao muito expressivo e performático Arrigo Barnabé interpretando Lupicínio Rodrigues. Uma apresentação deliciosa para encerrar minha agradável noitada cultural, que começara naquele mesmo endereço algumas horas antes, com a Cisne Negro Companhia de Dança apresentando as coreografias “Revoada”, de Gigi Caciuleanu, e “Sra. Margareth”, do israelo-americano Barak Marshall. Nesta, a música cigana que algumas vezes é executada para embalar a dança dos doze serviçais da Sra. Margareth faz uma crítica sutil mas muito precisa da, vamos chamar, hierarquia dos povos na divisão internacional de trabalho. Entre as duas apresentações, com uma hora livre, ignoro a chuva e resolvo ir até a Paulista, dar uma olhada no movimento do sábado à noite. Ainda antes de chegar na avenida Brigadeiro Luís Antônio, dois catadores de latinhas: não sei se disputam os sacos de lixo ou se trabalham colaborativamente. Na Brigadeiro, uma agência bancária com uma porta de madeira provisoriamente no lugar da de vidro. Paredes gritam que R$ 3,20 é um roubo. Eu digo que R$ 3,00 também é – mas o momento não autoriza novas manifestações no curto prazo pelo Movimento Passe Livre, infelizmente. Dois mendigos dormem protegidos da chuva sob uma marquise. Passa outro por eles, e com a mão simula vários tiros nos que dormem. Pouco antes, outro morador de rua ajeitava a cueca. Na Paulista, o movimento é razoável – ainda não são onze da noite. Passo por um grupo de seis adolescentes, discretamente animados com a noite que começa. Em frente ao prédio da Gazeta, pessoas se amontoam no pedaço de marquise disponível (as escadas estão barradas por grades). Vou até o prédio da Fiesp, onde o ex-socialista resolveu pôr uma iluminação nacionalista, e resolvo voltar. No caminho, o grupo de adolescente está contra a parede, debaixo da chuva. Os que usavam bonés, os têm na mão. Reparo nos garotos. Dezoito anos, se tanto. Parecem bastante ingênuos. São ou morenos ou negros, e trazem no estilo a marca escancarada de serem da periferia. Dois policiais – um deles negro – se preparam para uma geral. Lembro de um amigo que conta que dificilmente quando vai pra noitada passa sem uma revista da polícia militar – ele não tem estilo de periferia, mas é negro –, a ponto de quase nem se incomodar mais – Pavlov talvez explique. Lembro também dos manifestantes na Paulista, dia 20 de junho, tirando foto com essa mesma polícia militar, naquele clima de comunhão nacional, quando, dizem, o gigante acordou. Certamente não eram esses garotos ou seus amigos e vizinhos quem tiravam tais fotos. Sigo meu trajeto rumo ao teatro Sérgio Cardoso. Ficam para trás os seis garotos da periferia, os dois policiais, e o prédio da Fiesp iluminado com a bandeira do Brasil, ostentando que, condizente com nossa história nacional de exclusão, a Paulista não é para todos.


São Paulo, 30 de junho de 2013.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A rua – local político

São sete e meia da noite de uma terça-feira qualquer. Não chove mais, faz frio. Na Paulista, em direção ao seu início, umas vinte pessoas ocupam uma pista da avenida com um protesto pelo “Padrão Fifa na educação”. Entendo o motivo da manifestação: educação, não resta dúvida, é importante – e não apenas porque agora viveríamos numa pretensa sociedade do conhecimento, como apregoam na mídia. Entendo também o slogan do “padrão Fifa”. Desconfio, contudo, que a profundidade dos manifestantes sobre o assunto seja a mesma do slogan: o que seria o tal padrão Fifa? Aulas iguais para todos os alunos de todo o território nacional, seguindo os parâmetros curriculares da Suíça? Uma educação pasteurizada, sem qualquer identidade, destruidora de identidades, mas com alguns recursos a mais? Os alunos ficarem mais tempo na escola, como não fazem na Finlândia? É preciso uma discussão ampla sobre o papel e os objetivos da educação, para então discutir os métodos. Claro, começar com um aumento nos investimentos, principalmente no salário dos professores, é um imprescindível começo. Porém, mais sensato seria defender o “padrão Felipão” de salário para professores da rede pública de ensino básico. Contudo, como cartaz divulgado: “os protestos não são contra a seleção, são contra a corrupção”. E seleção brasileira, CBD, toda nossa cartolagem, com Marins, Teixeiras, Petraglias, Sánchez, são exemplos notórios de pessoas ilibadas.

Na mesma hora, na mesma avenida, mas na direção contrária, um grupo um pouco maior – uma sessenta pessoas? – atravanca a avenida e o obriga o trânsito a ser desviado. De início o protesto é contra o pastor Feliciano. Talvez por não estar angariando o apoio esperado, resolvem mudar o grito para “Vem para a rua, vem, contra o governo”. A nova jabuticaba tupiniquim, os “sem-partido com partido”, que prega a união nacional sem fissuras e sem divergências. Recém havia trocado mensagens com uma amiga, sobre a manifestação de sexta contra o político do PSC, e meu receio (na verdade, escaldo) em participar dela era ir para uma manifestação e acabar engrossando outra, diferente, quando não de bandeiras opostas às que defendo ou simpatizo.

No vão do MASP, outra manifestação: não caminha, tem mais vulto, tem discurso. Se bem entendo, é dos movimentos sociais – não sei se diretamente ligados, mas o discurso pegava carona nos protestos feitos pela manhã, em três locais da periferia de São Paulo. A moça que tem a palavra fala do descaso da mídia para com as manifestações organizadas das pessoas marginalizadas – mesmo depois do abraço da Grande Imprensa ao protestos da semana passada. Tenho a impressão de que conheço a moça, do DCE-Unicamp-Psol e eleições campineiras. Mesmo que não seja, me bate uma tristeza ver que estou quase defendendo uma turma abertamente corrupta (frauda eleições estudantis para manter um naco ridículo de poder, por exemplo [http://j.mp/137E1uP]), por sentir necessidade de me opor ao movimento fascistóide que tomou a Paulista, dia 20.

Por falar em corrupção, se a direita soube se aproveitar da movimentação levantada pela esquerda, essa não soube pôr suas bandeiras nas vagas indignações daquela: sejamos todos contra a corrupção: além de prisão para os corruptos, por que não expropriação das empresas corruptoras em favor dos seus empregados? Um ano e o Brasil se tornava uma república proletária como nunca visto antes no mundo.

“Essa meia dúzia de gato pingado dava pra ter feito o protesto na Santos, não precisava ser na Paulista”, ouço dois transeuntes conversando. Um mês atrás aposto que essa frase seria sensivelmente diferente. Até agora, me parece que o principal legado dos atos agitados pelo Movimento Passe Livre em São Paulo tenha sido o de quebrar com a noção de ordem que prevalecia na opinião geral, muito próxima da ordem ditatorial: trancar rua e atrapalhar trânsito com protesto era coisa de baderneiros, caso de polícia e porrada; agora, apesar de incomodar, é aceito como legítimo, não merece mais esse tipo de desqualificação e tratamento. A rua – em São Paulo, a avenida Paulista – passou a ser aceita como um espaço de disputa política. Mais: a política passou a ser aceita – talvez mostrando esgotamento não do Lulismo, antes da tecnocracia posta pelo tucanato, seguida pelo petismo, defendida pela Grande Mídia. Se manifestar no mundo real, fora do Fakebook, passou a ser aceito como parte do jogo político – seja para se opor ou para defender a ordem, ainda que os gritos sejam sempre de “contra”. Claro, há quem se oponha ao diferente, mas eles são minoria (ainda que muito bem organizados).

Ponto positivo nas ocupações deste dia vinte e cinco: contrariamente ao ato do dia 20, as diversas manifestações que presenciei se organizaram por conta (não pegaram carona em uma maior), gritavam suas reivindicações e não tentavam calar as demais. Havia, portanto, espírito democrático nelas. Ao mesmo tempo, me ponho a questão: quanto tempo vão durar essas manifestações etéreas, organizadas e com a participação de pessoas que não tinham o hábito da rua como local político – e, creio eu, nem da política em local algum, fora da cabine de votação, no máximo dos comentários em blogues? E, principalmente, me pergunto quanto tempo vai durar essa percepção de manifestações de rua como legítimas em uma democracia. Se perdurar tal visão, será um passo importante para, quem sabe um dia, deixemos de ser uma mera democracia pro-forma, tal qual hoje.

São Paulo, 26 de junho de 2013.



sexta-feira, 21 de junho de 2013

A internet ocupou a Paulista.

Pouco depois das 21h do dia 13 de junho de 2013, após subir por uma Augusta cheia de lixo e restos de alguns focos de incêndio, eu chegava ao cruzamento com a Paulista. Havia uma névoa das bombas de gás lacrimogêneo no ar. O choque estava a uma quadra de distância e vinha em direção à Consolação, distribuindo balas de borracha e bombas democraticamente, sem distinção de cor, gênero, opção sexual, renda. Manifestantes, curiosos e moradores de rua eram obrigados a correr. Dois partidos ali estavam bem representados: os contestadores e os defensores da ordem.

Dia 20 de junho de 2013, chego na Paulista com a Augusta pouco depois das 21h, após percorrer a avenida mais importante de São Paulo desde seu início. Há fumaça de churrasquinhos. Ambulantes também vendem cerveja. Na Hadock Lobo, dois carros de cachorro-quente. A polícia está ali, sem nada para fazer com aquele excesso de contingente. Dois partidos? Nada: integração! O povo é um só! O clima, comparado ao da quinta-feira anterior, é outro, é certo, mas está longe de ser a festa unânime que tenta aparentar.

Uma semana depois do excesso de excessos da polícia militar, dois dias depois da omissão da mesma polícia militar no início da manifestação e de truculência no seu final – pouca gente viu ou soube, há algum registro no twitcasting do pos_tv [http://twitcasting.tv/pos_tv] –, vejo manifestantes tirando foto ao lado de policiais militares, a poucos metros dos integrantes do Movimento Passe Livre. De duas uma: ou há uma revolução, ou há uma farsa.

Passo uma primeira vez pela manifestação, logo em seu início – temporal e espacial. Vejo uma faixa de “Fora Alckmin”, bandeira de “Todos contra a corrupção”, muitas pessoas com caras pintadas e enroladas em bandeiras do Brasil. A estas últimas, dou um desconto: como li comentário de amiga no Fakebook: há gente que só conhece manifestação de dia de jogo na Copa e a única referência que tem de protesto político é o “Fora Collor”. As outras duas, algo me diz que não estão no seu devido lugar – ou, como passarei a achar depois: eu não estou no meu devido lugar.

Na República e Cracolândia, onde vou bater um rango com uma amiga, a vida segue normal. O garçom comenta a goleada da Espanha, a feirinha dos barrados do baile acontece na São João, como sempre. Há mais policiais militares do que de costume, mas não vejo carros da Rota, diferentemente da quinta passada. O clima é bem mais leve – e não só porque a manifestação começou longe dali: quinta retrasada, no primeiro ato do Movimento Passe Livre, o clima já era tenso na República.

Volto com minha amiga pra Paulista. Ela acha positivo as pessoas na rua, mesmo que estejam ali por motivos aleatórios, mesmo que tenham ido mais pra ver como é que é. Tenderia a concordar com ela: pessoas na rua, em contato umas com as outras, é oportunidade de diálogo e de convivência com o diferente. Contudo, algo me enrosca essa noite.

A primeira impressão é de que está parecendo a parada gay sem trios elétricos, com blocos no lugar. Vemos alguns vários. Há o bloco dos “Fora Dilma”. Há o dos “Pela democracia – Fora PT”. Há os “Contra a ditadura” (que gritam, “quem não pula quer PT”). Há um contra o Lula (querem tirar ele do New York Times, será isso?). Há os contra a corrupção (e quem é a favor para precisar de um ato?). Há os “Fora Renan”. O grito, não é de se surpreender, é um só: “Vem pra rua, vem, contra o governo”. Sem qualquer organização, munidos de toscos cartazes de cartolina – os acima possuíam faixas feitas em gráficas com ótima qualidade de impressão –, passávamos por vários manifestantes contra Feliciano e a cura gay. Amigo meu depois disse que havia ainda um bloco de anarquistas. O “Fora Alckmin” que vi no início, não viria mais, nem na ida, nem na volta da Paulista. Em compensação depararia com cartazes “Pela vida, contra o aborto”. Leio na internet que, logo no início, havia também um bloco das esquerdas – escorraçadas por portarem bandeiras de partidos, afinal, o povo é um só. Vejo, no fim da Paulista, que há também, como já disse, o bloco do Movimento Passe Livre, praticamente insignificante no ato que ele próprio chamou. Ah, sim! Havia também uma grande faixa que indiretamente se punha contra o passe livre, ao pregar o fim dos impostos.

Em casa ficaria sabendo das agressões contra aqueles que manifestavam positivamente sua preferência política. “O movimento é apolítico”, justificavam – porque manifestar negativamente contra o PT não é partidarismo. Expulsaram aqueles que estavam desde o primeiro ato reivindicando: haviam apanhado da polícia militar, agora apanhavam de civis. A idéia era construir um povo só, unido e unânime, e para isso se valiam de truculência maior do que a do Choque: porque a tropa de Choque reagia com bombas, mas não calava vozes; a PM teve suas ações (fardadas) documentadas e expostas àqueles que achavam que vândalos eram os manifestantes. Ali, no meio da multidão, os grupos anti-esquerda, muito bem organizados, se sobrepunham a qualquer voz dissonante – com fogos de artifício, se preciso. Com agressões e fogo nas bandeiras, se ainda insistissem. O clima era para ser de comunhão: cante com todos ou caia fora. Preferi sair – o quanto antes. Mesma sensação teve o amigo que mora comigo, que chegou logo depois. Tudo me cheirou a golpismo – e eu espero ser uma impressão muito equivocada, causada pela emoção da noite.
Afinal, como diz um dos cartazes desse Gigante que acordou: não é contra a seleção, é contra a corrupção

Supondo que o cheiro de golpe seja delírio meu e de meio milhar de amigos meus, não resta dúvida que o ato deste dia vinte de junho foi uma grande derrota. A começar que a massa de pessoas – que nas primeiras quatro manifestações do passe livre se guiava por São Paulo, enfrentando a polícia militar, o Estado, os políticos, o trânsito, a nossa vida quotidiana de pequenas frustrações – se tornou uma massa de manobra: eram bois que passeavam pela Paulista e reprimiam quem não mugisse como eles – adestrados nos comentários raivosos de internet, regurgitando preconceitos, babando agressividade gratuita (que não era vandalismo, porque pessoas não podem ser vandalizadas, conforme a Grande Imprensa).

Isso por si já seria uma derrota acachapante. Havia mais: a esquerda calada, o movimento passe livre marginalizado, ambos acuados.

Não apenas isso: aquela sensação de insatisfação difusa contra as condições de vida – a vida pobre de viver para trabalhar, a vida precária de cada um em sua bolha, a vida insuficiente que tenta se bastar pelo consumo – rebaixada a uma disputa entre partidos, e a política, novamente, reduzida a uma parte dela, a institucional-partidária – a parte mais precária (e mais visível) da política quotidiana. Fora Alckmin, fora Dilma, fora Lula. Fora Feliciano, fora Fifa. Alckmin pode ir. Para pôr o que no lugar? Palocci? Skaf e a bandeira brasileira projetada na Fiesp? Fora Dilma para entrar quem? Temer? Serra? Fora Feliciano? Feliciano é mosca na sopa: tem Bolsonaro (que elogiou as manifestações do dia 20, não por acaso), tem Garotinho, tem Marina Silva, tem uma série de políticos de conservadorismo extremo para ocupar seu lugar. “Vem pra rua, contra o governo”, não contra o Estado: tudo pode continuar como está, desde que mude o nome de quem manda. Debate sobre mobilidade urbana? Sobre contratos entre poder público e poder privado? (Amigo meu disse que as vaias do passe livre em frente à Fiesp foram duramente combatidas). Debate sobre direito à cidade? Sobre uso da rua, dos espaços públicos? Debate sobre prioridades dos governos? Discussão sobre a extinção da polícia militar? Contestação da forma de democracia representativa? Todos esses pontos, que em alguma hora foram levantados nas últimas duas semanas, morreram na alegria ufanista (proto-fascista) que não tolerava diferenças – desconfio seriamente que a marcha para Jesus deva ser mais democrática do que se tornou a manifestação de hoje.

Contrariamente a uma semana atrás, hoje, quando passei no cruzamento da Paulista com a Augusta, não havia dois partidos se expressando na rua – e a polícia militar estava ostensivamente presente.

São Paulo, 20 de junho de 2013.

ps: o ato era tão contestador que não só a Fiesp ajudou com seu prédio verde-amarelo, como também o banco Safra, ao liberar seu sinal wi-fi ao manifestantes.

ps2: conveniente pro momento:

ps: conveniente para este momento:

"Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem.
Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.
Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais.
A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País."