segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mais amor, por favor: uma noite de domingo por São Paulo.

Prestes a completar um ano morando em São Paulo, descubro que há uma feira a três quadras da minha casa, aos domingos. Serviu como consolo da minha ida ao Carrefour, onde esperava preços menos abusivos que as antigas lojas do seu Abílio, o Pão de Açúcar e o Extra. Que nada! Os preços se equivalem. E como prêmio extra, pretendia comprar cerveja, mas me senti intimidado com a bela promoter da marca que geralmente compro. Mais barato mesmo parece ser na outra rede do grupo Carrefour, o Dia %, com um desconto em torno de cem por cento: vinte por cento nos preços, oitenta por cento na qualidade. Em um ano morando aqui ainda não consegui achar um lugar para comprar horti-fruti bom e barato: o Mercado Municipal tem preços do lugar de gente feliz, e a feira recém-descoberta pareceu ter bons produtos, mas não permite grandes economias.

À noite, cansado de tanto me cobrar que eu preciso estudar (até cheguei a estudar um pouco), e vendo que minhas reservas de psicotrópicos estavam no limite, saio dar um passeio pela República e Santa Ifigênia, comprar erva e comer um lanche. Não tinha grandes esperanças de que o restaurante árabe na avenida Rio Branco estivesse aberto em um domingo à noite. Arrisquei mesmo assim. Ao passar pela rua do Boticário e sua penca de nóias, aquele lembrete interno: estou entrando em região perigosa. Na Rio Branco, bares com hispanohablantes, puteiros decadentes, lan-houses. Um homem – creio que um nóia – fala qualquer coisa atrás de mim, tenho a impressão que é comigo, mas não me viro. O restaurante está fechado, sem outra alternativa, retorno. Nisso cruzo com quatro garotinhas de uns treze, quatorze anos, talvez voltando do cinema, conversando animadas como pré-adolescentes da sua idade fariam num shopping. Me pergunto se a região é mesmo tão perigosa – proibida para menores –, ou se eu quem me deixo influenciar por todo o discurso preconceituoso com a área: cracolândia, nóia, imigrantes andinos, caribenhos, africanos, moradores de rua, ocupações, violência violência violência. Talvez a maior violência esteja justo nesse discurso contra a região, que não deve deixar de reverberar em seus habitantes. Mais amor, por favor!, como diz o lambe-lambe espalhado pela cidade.

Compro as ervas que me propus: um quilo de ilex paraguariensis nacional, meio de argentina. Ao menos erva-mate eu descobri cedo onde achar (cafeína é psicotrópico, aos desavisados). Páro no Estadão, comer um xis, esse criador de obesidade, ao qual pareço imune. Subo pela Augusta. O Inferno está fechado, de luto pela tragédia de Santa Maria; o Studio SP manteve sua programação. Lembro dos comentários de fanáticos religiosos na internet, comemorando as mortes. Mais amor, por favor! Na esquina com a Antônia de Queiroz, o garçom e um cliente conversam: é uma vinte dois de cano curto. Mais amor, por favor!

Mal chego em casa, ainda me preparava para uma crônica sobre o nada acontecido nesse passeio pela cidade, e uma amiga que não vejo há meses me liga chamando para encontrá-la com o namorado, na Augusta. Lá vou eu de novo – não são nem onze da noite, e não imaginava que, aí sim, teria material para uma crônica.

Estamos num bar na esquina com a Antônio Carlos. Pedintes páram para pedir esmola – devo estar com um aspecto realmente simpático, porque sempre se direcionam a mim. Foi mal, hoje não rola. Certo instante começa toda uma movimentação, as pessoas da mesa ao lado se levantam rápido, o garçom surge para ajudar, e quando consigo perceber o que está acontecendo já há cinco homens segurando um carro que, sem freio e sem motorista, com o alarme disparado, foi descendo calmamente a rua. Ficam um tempo ali, segurando e pensando no que fazer. O alarme parou de tocar mas o motorista não apareceu. Um deles faz um calço com uma caixa de papelão. Funcionou. Nos Estados Unidos a gente olharia, ficaria dando risada, ninguém ia se prontificar a ajudar alguém que sequer está presente, conta meu amigo. O brasileiro é cordial, principalmente com suas vacas sagradas – mesmo que não sejam os donos. Passa um pedinte balançando moedinhas num pote. Hoje não rola, desculpa. Pára o vendedor de rosas, sempre muito bom de lábia. A mim, nunca me convenceu, mas pela primeira vez sai da mesa em que estou sem conseguir dinheiro ou uma marmitex. Conversas sobre mestrados que não terminam nunca, doenças e movimentos negros, gays, feministas, sindicais. O garçom trás a conta: pela lei do psiu, do silêncio, da mordaça, sei lá, precisam fechar o bar, recém passou da meia-noite. Outros pedintes pedem um minuto da nossa atenção. Não dá pra tomar uma saideira? Desculpa, não. Passa novamente o pedinte das moedinhas no pote. Hoje não rola. 
 
Descemos a Augusta, em busca de outro bar. Paramos em um com mesas na rua: não, não estamos fechando. Um rapaz loiro, de óculos, magricelo, meio abobado e bem chapado pára em nossa mesa – chamemo-lo de mala, uma definição assaz apropriada. What's up? Ficamos os três olhando para ele. Minha amiga perplexa – São Paulo, de um modo geral, ainda a perplexifica –, meu amigo com cara entre a de pouco amigos e a de que bosta é essa?, e eu sei lá, creio que na minha natural cara de paisagem. Gimme five, e estica a mão. Meu amigo o cumprimenta e ele sobe um pouco, sem abandonar a área do bar. Não é americano: tem sotaque, comenta meu amigo. Na mesa ao lado se sentam dois rapazes, um estilo hardrock, outro de bigodinho. Passa o pedinte balançando o pote de moedas. Hoje não. O mala volta. Hey dude! Diante da nossa reação – ou falta de –, vai para a mesa de baixo. Não tarda muito, começa a briga: porra, você me queimou!, reclama o mala. Um copo é quebrado, e o rapaz do bigodinho o empurra desfere um chute quando já está caído. Mais amor, por favor!, e eu a segurar o brigão. O garçom chega: o que você está agitando? Ele me queimou com o cigarro! Você quem veio aqui encher o saco. O mala sobe até a porta do bar. Me vê mais uma cerveja. Não tem mais cerveja para você. O mala desce, pedindo pra que alguém compre cerveja pra ele. Pára na mesa ao lado – do rapaz do bigodinho e do hardrock. Dá uma nota – de cinqüenta ou vinte, não vi direito – ao hardrock: can you ask a beer for me? Peço. Se senta com os dois. O do bigodinho começa a chamá-lo de gay, pouco depois o hardrock se empolga também em ofendê-lo. O mala segue abobalhado. A conversa está baixando o nível, comenta minha amiga. E estragando nosso fim de noite, tenho vontade de completar. Passa uma vez mais o pedinte do pote de moedinhas. Não. O do bigodinho se levanta para nova rodada de agressão, mas na mesma hora pára um pedinte. Fica um clima estranho. I don't have money. Não estou entendendo, tem um trocado, só para eu completar... O mala o abraça: you're my fucking friend, but won't give you my money. O pedinte resolve passar logo, nem pára na nossa mesa. Os ânimos se arrefecem um pouco, sentam-se. As “ofensas” ao mala prosseguem. Até o bigodinho se levantar novamente e começar a esmurrá-lo: pára de encher, seu filho duma puta. Cabe a mim novamente, com todo meu porte, apartar o brigão – minha vontade era esmurrá-lo, mas não comecemos uma briga generalizada, mais amor, por favor! O mala vai para o meio da rua, quase se mete na frente do carro, sai correndo ao seu lado, tentando se pendurar na porta, desiste uns vinte metros acima. Volta. Se chegar vai ter garrafada, avisa o muy macho do bigodinho – contra um magricela e tendo um amigo na retaguarda é fácil ser valentão. Calma, tento conter o rapaz. Só quero meus óculos, pede o mala. Minha amiga ajuda a encontrá-lo, e pede pra ele sair. Ele ainda pede desculpa por qualquer coisa ao do bigodinho. Na esquina, vemos ele se confraternizando com um casal – eis um mala solitário, carente e chapado numa noite de domingo. Ao lado, os dois amigos trocam impressões. Porra, achei que fosse gringo. Eu também, eu gosto de conversar com gringo – comenta o do bigodinho. Me pergunto se o estopim para sua agressão não estaria na acusação de gay que fizeram ao mala – ou se seria apenas inabilidade para lidar com o Outro, saber sensatamente cortar papo com os chatos, ao invés de golpeá-los (para não deixar mal-entendidos: definitivamente, não foi o caso de uma agressão motivada por questão de opção sexual). Olha, o cara esqueceu um pino! Comenta o hardrock. Prepara duas carreiras, cada um cheira uma. Você devia conversar com o Ronaldo, virar segurança na boate dele, em Curitiba. Nós achamos que está de bom tamanho para a noite. Pagamos a conta e eu volto sob acusação de que busco – e se não busco, atraio – esse tipo de coisas para depois escrever crônicas. No caminho passo pelo pedinte do pote de moedinhas – balanço negativamente a cabeça.

São Paulo, 28 de janeiro de 2013.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Praça Roosevelt, skatistas, GCM e nosso déficit democrático

O vídeo que circulou na internet no início do mês mostrando a ação da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo contra skatistas na Praça Roosevelt [http://j.mp/ZIZmZi], no centro da cidade, acaba sendo uma pequena amostra de tensões latentes (ou nem tão latentes assim) da sociedade brasileira atual, tendo como foco agonístico a questão da convivência com o diferente (e a cidade como palco), com conseqüências para a discussão sobre segurança pública, dos direitos humanos e usos da cidade (que passa de palco para personagem do drama político).

O vídeo é uma prova do que poderia ser tido por despreparo da GCM, mas parece antes ser fruto do seu preparo precário, mesmo. Para piorar, esse preparo não é substancialmente diferente da polícia militar – ainda que a GCM não guarde o nível de letalidade da PM (estimulada e ovacionada pelo governador Geraldo Alckmin, assim como por apresentadores raivosos na TV). Quando se recorda que o fortalecimento das Guardas Civis no governo Lula, que almejava a ascensão de uma força civil de segurança pública que paulatinamente suplantasse a militar (bem ao estilo do seu governo de comer pelas bordas e evitar o conflito aberto), se deu sob o pressuposto de respeito aos direitos humanos – condições para buscar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU –, é de se questionar seriamente o papel das forças de segurança no país. Podemos retomar, quase trinta anos depois, o refrão de Tony Belloto, agora sob a forma de pergunta: Polícia para quem precisa? Quem precisa de polícia? Que fique claro: não se trata de repetir um bordão não de todo incomum em considerável parte da nossa intelectualidade acadêmica preguiçosa, que prega o fim da polícia no mundo (para pôr o que no lugar? civis com balaclavas, como no Fórum Social Mundial?, ou liberarmos um estado de natureza hobbesiano, cada um por si e uma arma na mão?), ou acha que é levando porrada que se aprende (até ser ele ou seu filho quem apanha, aí descobre que pau-de-arara não é do bem, como certo dramaturgo durante a ditadura civil-militar): o ponto é adentrar esse que parece ser um dos núcleos do gládio político atual, tanto na política-quotidiana, como na esfera político-institucional – há tempos acuso como ponto de divergência essencial entre os dois principais partidos do país, o PSDB sob a égide paulista e o PT, a questão dos direitos humanos.

Passemos o vídeo em revista. Temos seis atores em cena: a GCM, o que chamarei aqui de leão-de-chácara da GCM (ou só leão-de-chácara), os skatistas, a praça Roosevelt, e, escondidos, a prefeitura e os moradores do entorno da praça.

O vídeo começa com um guarda à paisana e sem identificação – o leão-de-chácara da GCM – dando uma gravata em um rapaz. Não é possível saber o que motivou a ação – conforme a imprensa, a GCM acusa os skatistas de estarem em área proibida, por mais que não haja área proibida na praça. Independente disso, não há dúvidas de que o golpe é exagerado: uma gravata serve mais do que para imobilizar, serve para matar alguém. Imobilização pode ser feita com uma chave-de-braço, algo que o leão-de-chácara deu mostras de não saber fazer, em outro vídeo, esse vinculado por reportagem do SBT: apelando para a força, ao invés da técnica, mais do que imobilizar, ele acaba por machucar o cidadão agredido-imobilizado [http://j.mp/TLOkP9].

Depois que ele solta o rapaz, a pequena multidão, que estava em cima, se dispersa um pouco. Ficam em volta, vendo o desenrolar da ação da GCM, sem a mesma pressão até então, mas sem se comportarem como boas ovelhas. A GCM resolve, então, dispersar de verdade o pessoal, e faz uso de spray de pimenta. Nenhuma novidade nesse abuso, coisa que se aprende com a PM:

O uso desse expediente, por mais que seja comum, mostra o despreparo da GCM: não há risco de tumulto, não há ameaça contra os “mantedores da ordem”, nada que justifique o uso do spray, a não ser a tentativa de mostrar quem manda ali.

Logo a seguir, uma guarda discute com o skatista. Isso pode ser tanto mostra de falta de justificativa para a ação quanto de desmoralização da força de segurança: se se está correto, por que discutir, ainda mais assim, dando de dedo? Se se está correto, via de regra, não é preciso levantar a voz – até porque o skatista não estava exaltado a ponto de precisar gritar a ele que se calasse. Creio eu que seja os dois.

Diante da aproximação de um grupo dos dois que discutem, aparece um guarda empunhando um cassetete. A cena é patética, e se olhada com certo distanciamento, quase dá dó: o guarda sabe da sua desmoralização, da sua impotência: não pode dar porrada como o leão-de-chácara (não tem o mesmo porte e, ademais, está fardado), e não consegue impor respeito pela sua farda. Resta-lhe apelar ao falo da ordem, como substituto das suas frustrações.

Depois do breve relato do cinegrafista, é possível ver o leão-de-chácara, junto com outros três guardas, protegidos por um surreal sem-número de outros mais, intimando o skatista. O leão-de-chácara, então, se aproxima – escoltado por outro GCM, lo muy valente do cinegrafista e passa a ofendê-lo e agredi-lo verbalmente (desejava uma reação do rapaz, para ter “justificativa” para poder dar porrada?): “agita, seu arrombado” “seu pau no cu” “cala essa porra dessa boca, quem tá errado aqui é você, seu bosta, não serve para porra nenhuma” “seu merda do caralho” “taca pedra, seu pau no cu” “você não trabalha porra nenhuma, você é vagabundo, que fica aqui andando de skate, seu arrombado”. E depois tenta intimidá-lo: “pode filmar, seu lixo, tem filmagem de você tacando pedra” (a reportagem do Estadão perguntou pela tal filmagem e não foi respondida).

A ação do leão-de-chácara, particularmente (mas a da GCM não está muito aquém), não apenas não corresponde ao que se espera de um agente de segurança pública, como ele age mais como um pit-boy, desses macho-alfa que arranjam brigas em boates, espancam homossexuais, e que parece que a única possibilidade de ressocialização é via castração química. Seu amadorismo é tão grande que dá vontade de duvidar que seja da corporação, parece antes um desses homens de bem que, iluminados e estimulados por âncoras fascistóides como Datena, resolvem fazer uso do que possuem de bom (a força) para ajudar a guarda civil contra os “lixos sociais”. Seu discurso é do fascistismo presente na Grande Imprensa brasileira: a negação do Outro, acusado de lixo (e o que se faz com lixo? joga-se fora ou queima-se) e mandado que se cale; a lógica do ser humano ter que ser útil: “não serve para porra nenhuma (...), não trabalha porra nenhuma”; o agir em nome da defesa da ordem. Arbeit macht frei era também um slogan de defesa da ordem, de uma ética do trabalho, de uma limpeza social.

Mas seria ingenuidade minha acreditar que as forças de segurança do país – não falo aqui da chamada banda podre – não estejam imbuídas, da cúpula à base, dessa mentalidade de inspiração fascista, estimulada por toda uma parcela da população e pelos donos do poder – afinal, para estes, o discurso do medo é altamente lucrativo. Se parte da população critica os “excessos”, é porque ela não vê problema nos motivos da ação: apadrinham a dispersão de vagabundos, a prisão de baderneiros, o “rigor” da polícia contra o crime – sendo que rigor, aqui, não raro, é extrapolação da lei. Está aí para provar a votação enorme do jagunço da PM, que se orgulha de, dentre as suas 36 mortes, não ter matado nenhum “inocente” [http://j.mp/RUtYDP]. Apadrinham, como os moradores do entorno da Roosevelt, a limpeza das praças dos elementos indesejados – só falta alegarem motivo de saúde pública.

A ocupação ou esvaziamento da praça Roosevelt (neste caso, mas não apenas), as formas de ocupação dos espaços públicos, isso está aberto a discussões. Um acordo sobre essas questões deve ser buscado pelo debate, ainda que dificilmente a decisão tomada não desagrade um lado, por mais que se discuta – isso não exime, contudo, de ser discutida. A GCM entra no meio dessa discussão, fazendo o trabalho sujo para a prefeitura – que encampa interesses econômicos na região – e para os cidadãos de bem que vivem no entorno na praça – esses que trabalham com amor e orgulho, não usam drogas e, logo, têm o direito a classificar quem presta quem não. Por isso a guarda não apenas obriga que se cumpra a ordem, mas precisa discutir: a ordem não está tão bem estabelecida para que seja simplesmente cumprida, de forma que a ação da GCM está aberta à disputa política.

Como estão abertas à disputa as funções e as ações da polícia e demais forças de segurança. Assim, cabe a pergunta: quem precisa de polícia? Dessa polícia, não são os moradores das periferias, ao certo; não é a parte mais carente e mais marginal da população – e se pensassem um pouco, tampouco seria a classe média e os moradores do centro e dos bairros nobres. Se a Grande Imprensa evita esse debate, ou tenta desqualificar todos que o põem, é porque seus interesses e dos seus patrocinadores estão sendo atendidos com essa polícia/política. E tais interesses não têm nenhuma afinidade com a democracia – a não ser que formos pensar numa democracia hayekiana, mas não é essa que está em nossa Carta Magna.

Se Gilberto Freire conseguiu construir o mito da democracia racial, a partir da proximidade da casa grande e da senzala, nosso republicanismo sempre agiu na direção contrária, de separar o máximo a casa grande da senzala: da reforma urbana no Rio de Janeiro, no início do século, ao plano posto em prática em Palmas, no Tocantins; a delimitação de bairros para ricos e para pobres, de áreas permitidas para ricos e para pobres. Casa grande e senzala só voltam a se juntar nos espaços privados de uso público, shopping centers e condominíos fechados, em que todos têm seu papel muito bem delimitado e vigilância constante – garantidora de que todos estão cumprindo seu script adequadamente.

A revitalização da praça Roosevelt é uma mostra de que a ordem é uma ordem a serviço de um grupo bem específico – não é em favor da cidade, nem da grande massa dos seus moradores. A se acreditar na versão oficial, a praça passou por um processo de decadência nas décadas de 1980, 1990, e teve uma revivescência com a instalação de diversos grupos teatrais. Aproveitando que a praça já estava sendo novamente ocupada, prefeitura interveio para “revitalizá-la”. O resultado é sabido: a especulação imobiliária tem expulsado muitos desses grupos que foram responsáveis pela reversão da decadência da praça. Não houve, por parte do poder público, tentativa substancial de evitar que isso acontecesse, para manter a praça como um dos centros de cultura da cidade.

Esqueceram, contudo, de combinar com os russos. Uma praça de cimento e escadas no centro de uma cidade carente de espaços públicos é um convite aos skatistas – que vem de todas as partes da cidade, quer seja das áreas ricas, quer das pobres. Ou seja, a senzala invade a casa grande, numa situação sem o controle dos shopping centers e clubes de bacanas. A princípio, não seria nenhum problema: no máximo regulando um pouco seu uso, ao reservar áreas para o skate, áreas para os cachorrinhos (para os pedestres, esses fracassados sociais, não houve sequer direito a calçadas no entorno da praça), e a convivência poderia se dar de maneira pacífica – o que não quer dizer que não haja problemas e conflitos. Mas ao tentar impedir a prática de skate justificando o barulho causado pelas pranchas, os moradores do entorno mostram que seu interesse não é o conviver com o outro, não é o do aprendizado com a prática da alteridade: é o de fazer da praça um versão a céu aberto da sua vida classe média uniforme e precária.

Vamos ver como age o novo governo. Via de regra o PT é mais sensível aos direitos humanos, às demandas sociais e disposto ao diálogo (ainda que isso, muitas vezes, sirva para encobrir a ausência de políticas efetivas para que se atenda as reivindicações dos mais pobres). Tem agora um exemplo prático de consertar no quotidiano da cidade o que seu partido institui no plano federal, tanto nos excessos da GCM como na sua própria ação ordinária, e mostrar que lado Haddad está disposto a agradar e a desagradar no curto prazo. A praça Roosevelt pode se tornar um caso emblemático em favor de uma mentalidade mais democrática em São Paulo. Ou se tornar outro caso em que o governo age em favor dos interesses de quem tem mais.

São Paulo, 24 de janeiro de 2013.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Moço, me salva.

Sem conseguir me concentrar nos estudos, aproveito o clima agradável e saio tomar a fresca da noite. Um passeio no meu habitual ritmo de marcha atlética por São Paulo, que, passado uma hora, dava a impressão que seria apenas isso: um passeio, sem nada mais a declarar. Augusta com gente, muitas pessoas falando em inglês, Roosevelt com skatistas e bares tocando samba. Na boca do lixo, uma travesti, do outro lado da rua, mexe comigo: lindo. No Largo do Arouche, páro no mercado para comprar algo pra comer e beber. Dou uma volta na praça – o que nunca havia feito até então. A parte central está ocupada por muita gente. Muitos casais, principalmente de homens, alguns de mulheres – na rápida olhada, não noto casais heteros. O posto da polícia é um polo repelente. Mas logo no outro lado da rua o bar está bem movimentado. Descubro, finalmente o tal restaurante francês em frente ao mercado das flores que Criolo canta – na frente do restaurante, uma Mercedes e outros dois carrões. Decido não contornar a praça e nisso me sinto consideravelmente deslocado. Tenho a impressão de que seguir reto darei no Minhocão, mas não vejo o monstrengo urbanístico. Sigo reto: de qualquer forma. em algum lugar darei. Acabo mesmo no Minhocão. Do lado de lá – Santa Cecília, se estiver correto nos meus precários conhecimentos da geografia paulistana –, tenho a impressão de um morador de rua amassar latinhas. Ao me aproximar, noto que os gestos estão agressivos demais: por segurança, atravesso a rua. Ele taca pedras contra alguma coisa. Joga com raiva a tal coisa no chão e a atira, depois, no bueiro. Passo prestando atenção se não sobra nada sendo atirado contra mim – não houve. Ele agora quebra outra coisa com igual raiva. Caminho por uma paralela da Amaral Gurgel, e sem muito no que reparar, volto para as quebradas da República. Estou caminhando há quase duas horas, as pernas começam a cansar, e resolvo fazer uma pausa na Praça da República. Sento em frente ao prédio principal da praça. Atrás de mim um casal de jovens (uns trinta anos) namora. Ao seu lado, um homem segura a cabeça entre as mãos – dá a impressão de que dorme. À minha direita, um casal de pessoas um pouco mais experientes também namora. À esquerda, um homem muito calmamente termina sua refeição. Tem junto de si uma garrafa – parece litrão de cerveja – e uma sacola plástica. Tem também um guarda-chuva grande. Findo seu sanduíche, pega da sacola um caderno com as páginas muito gastas e um lápis, passa a fazer anotações. Penso que se eu estivesse com minha caderneta e uma caneta, estaria a fazer o mesmo, esboçando esta crônica. Não estou, fico observado a movimentação na praça. Pessoas caminham em direção ao metrô. Da praça, escura e erma, saem dois garotos com três anos, no máximo. Um deles tem tênis com luzinhas, que piscam tanto na frente quanto atrás. O tênis me remete à minha infância – sexta série, doze anos, talvez – no meu tempo, as luzinhas do tênis eram só atrás. Lembrei uma vez que vi um colega correndo com um, no corredor de baixo do Colégio das Irmãs. Eu tinha um igual mas não tinha como ver como era ele piscando de longe – e só vira até então na propaganda. Pouco atrás das crianças, surgem duas mulheres, uma delas empurrando um carrinho de bebê. Ainda pouco íntimo da cidade, tenho receios de atravessar a praça pelo meio – e parece ser besteira da minha parte. Entre mim e o senhor do caderno gasto senta-se um homem, acende um cigarro. Pessoas passam. As crianças brincam. O tênis pisca. Eu penso esta crônica, com base no homem e seu caderno. Me levanto: hora de voltar pra casa. Passo por um grupo de três garotas – bem bonitinhas, diga-se de passagem. Uma delas, sentada no meio, me chama: moço, me salva. Eu olho, não sei se páro, se continuo, se finjo que não foi comigo. Me ajuda, moço, minhas amigas estão só me sacaneando aqui. Elas riem. Eu fico ali parado, meio sem jeito na minha timidez. Tento entender a abordagem, acompanhada do riso das amigas. Será que estão tirando sarro da minha cara? Penso, quase igual como pensaria quando mais jovem, com a idade das garotas, uns dezoito anos. A diferença é que agora me questiono e não afirmo. Liga, não moço, ela faz cênicas e é ótima atriz. Faço, não, sou uma completa leiga no assunto. Desculpa interromper a conversa de vocês, mas que prédio é esse? Uma morena (bonita também, por sinal) com um celular no ouvido interrompe nossa “conversa”. É parte da cena?, me pergunto. Sei lá. Parece uma igreja. É o prédio da República. Diz que é do lado da saída metrô, que fica ali, é facinho. Obrigada – e se retira. Conversamos um pouco – ou elas tagarelam, na verdade, para um cara parado na frente delas, sem graça e sem saber o que falar – até que que a moça do meio esticou a mão: ajuda moço. Ajudei a se levantar, caminhamos uns vinte passos, em que ela perguntou meu nome, eu o dela – Stephany (a grafia fica por minha conta) – e ela pediu desculpas pela interpelação – falou que trabalhava com venda de assinaturas de revistas, então tinha essa facilidade para falar com pessoas. Nos despedimos com um aperto de mão, ela voltou com as amigas, eu segui meu caminho, sem entender muita coisa, achando que poderia ser diferente – ou não. Na Augusta, os bares cheios, como convida a sexta-feira. Duas garotas de programa conversam encostadas em um carro, enquanto esperam a abordagem de algum possível cliente. Uma delas bebe todinho de caixinha. Em frente a um empreendimento imobiliário estacas de madeira preservam a grama e reservam espaço mínimo para pedestres. Mas Las Jegas, só pelo nome. Imagino do que trata a conversa do grupo de rapazes que passa por mim – e concordo, Las Jegas é nome que dá todas as interpretações dúbias possíveis a um inferninho. Na esquina com a rua Fernando Costa, descubro que estou com os reflexos bons, ao me desviar de um cruzado desferido por um rapaz, que explicava ao seu amigo que fica para lá – o que eu não sei, mas era na direção do meu queixo. Ainda mais pessoas falando em inglês. Encontro dois amigos. A amiga me cumprimenta passando a mão em meu cabelo: só te conhecia cabeludo, todas tuas fotos são com cabelo, você fica estranho assim. Penso em minha mãe: deve ter se sentido vingada das vezes que fiz esse tipo de agrado nela. Um deles está procurando casa – e isso pode significar que eu procure novo morador para minha república em breve. Um morador de rua muito bêbado me aconselha: ó!, ó!, juízo! Nem precisava, tem horas que acho que juízo tenho demais. Em casa, mais relaxado após a caminhada (quase três horas), me vejo restabelecido para estudar. Opto por escrever esta crônica.

São Paulo, 18 de janeiro de 2013.