segunda-feira, 1 de abril de 2013

Quando recordar é morrer.

Meus pais não me ensinaram que homem não chora, de modo que não vejo nisso uma falha – evito fazê-lo em público antes para preservar meus sentimentos da admiração pública. Já chorei (ou fiquei com os olhos cheios de lágrimas) vendo filme (ok, eu estava à flor da pele aquele dia), já chorei lendo livro (Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do Mia Couto, e Primeiras estórias, do Guimarães Rosa, e não foi só ficar com olhos marejados), mas não me lembro de ter chorado vendo peça de teatro. Isso até sexta, quando uma amiga me chamou para assistir a Translunar Paradise, da companhia inglesa Theatre ad Infinitum. É uma peça que aborda um tema banal e delicado, e o trata com uma sensível delicadeza. Tanto que, apesar das emoções despertadas, não foi uma peça que me arrebatou – ela soube cativar sutilmente.

Sem qualquer palavra, fazendo uso de máscaras para contrapôr presente e passado, a vida que acontece e a lembrança do que aconteceu, Translunar Paradise é a história de uma senhora que, depois de morta, revisita seu companheiro, para ajudá-lo a superar a perda, fechar o passado e seguir a vida.

Após a morte da companheira, William se vê solitário, em companhia apenas do tic-tac do relógio – desse barulho monótono que se repete, que parece não passar, enquanto a vida segue como sempre, fora do compasso preciso das horas. Ele recusa a perda: insiste em pôr duas xícaras na mesa, em servir café para si e para a cadeira vazia ao seu lado. Diante de uma mala com objetos queridos, fica a lembrar de momentos diversos do casal: o emprego da mulher, a gravidez, o aborto (natural), a ida para a guerra, os traumas dessa experiência, o primeiro encontro, os desencontros. São cenas banais (apenas a guerra não é tão banal assim), retratadas com banalidade e uma estética de filme mudo dos primórdios do cinema – quase coreografias de uma vida qualquer. Difícil não se pôr – ou não imaginar pessoas queridas – em situações semelhantes. No presente, as máscaras com as marcas da idade (a expressão corporal dos atores é tamanha que eles conseguem fazer com que as máscaras incorporem uma série de expressões!), os sulcos de tudo o que se viveu.

William está em meio a essas recordações, dessa fuga para trás de um agora de dor, quando Rosa ressurge. Não é a história de amor após a morte – não esse amor cinematográfico. Nada de beijos entre o homem e o espectro da mulher – o contato (físico) entre os dois é impossível. O retorno da mulher morta é para livrar seu amado do peso que ele não quer largar e que o impede de encarar o presente que há. Ela o revisita para guardar sua xícara no armário, para pedir seus objetos antigos de volta, para fechar aquela mala contendo o passado e poder seguir para a morte – e deixá-lo que prossiga com sua vida.

Minha descrição parece dar uma boa medida da banalidade das cenas, a grandeza do espetáculo está na sua poética. Na forma como apresenta o amor: o desejo de Rosa não de esquecimento, mas de ser posta num segundo plano, porque ela sabe que somos feitos de presenças e ausências, e que quando estas adquirem excessivo peso impedem o movimento da vida. Recordar é viver, dizem, mas pode ser também não-viver (penso que se trata da maioria das vezes).

Deixar o outro partir, aceitar a própria morte, arriscar ser esquecido: duas provas de desapego e amor pelo outro que poucos conseguem pôr em prática – eu sigo tentando aprender.


São Paulo, 01 de abril de 2013.

ps: a peça fica em cartaz uma semana mais no CCBB de São Paulo.
ps2: não consegui pôr o vídeo aqui, há uma pequena mostra de uma cena em http://vimeo.com/37026590

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