domingo, 5 de maio de 2013

No último trem ao voltar de Campinas

São Paulo, mon amour, pensei quando o ônibus chegou no terminal Tietê. Acho que já me declarei à cidade em crônica anterior. Essa sensação aumenta ainda mais ao voltar de Campinas – cidade que sinto como uma prisão, e que por dez anos abstrai para suportá-la. Como toda prisão – desconfio –, fiz meus amigos de cela, e este sábado na “Princesa do Oeste” revi duas das pessoas mais queridas que tenho na cidade. Os lugares não se encontram, constroem-se, disse Mia Couto. Concordo em partes: os lugares são construídos do nada, mas de uma configuração prévia que autoriza certas construções e limita outras. Para mim, Campinas se construiu como Ercília, do livro de Ítalo Calvino. Os fios das relações construindo as ruas pelas quais eu transitava e as paredes da casa que me abrigava. Porém, conforme muitos dos meus amigos foram levantando acampamento de lá, ela foi ficando mais limitada do que já era – minha Ercília exigia reconstrução diária dos seus laços. No breve trajeto pelo Cambuí e centro, até chegar na rodoviária, onze horas da noite, uma cidade que se nega a si como tal. É sábado mesmo? Um milhão de habitantes? Pato Branco, no seu interiorano hábito das pessoas irem para a avenida principal curtir a noite sem opções, se concentrando nos postos de gasolina, ainda lembra que é uma cidade, quase (quase!) dá para fazer um paralelo com a rua Augusta, em São Paulo. E Campinas? Pode ser desconhecimento meu, mas não sei de rua parecida. Na praça do Centro de Convivência Cultural, jovens de classe média se rebelam conformísticamente bebendo em trajes darks sob a vigilância de câmeras de segurança e da base da PM – podiam chamar aquela de base infanto-juvenil da PM. Na sua ânsia de progresso, Campinas deixou o que era para não se tornar nada – e nisso Pato Branco, deitando abaixo construções com alguma história para construção de torres classe média, acompanha a cidade paulista. Uma pena. Se tivesse se mantido como cidade-museu, estilo as cidades histórias de Minas, creio que hoje Campinas seria uma cidade mais interessante, quem sabe até convidativa – certamente mais bonita. (Pato Branco não chegaria a isso). Talvez minhas reclamações sobre Campinas e Pato Branco (na primeira vivi dez, na segunda, dezessete anos) sejam as mesmas que moradores antigos dirigem contra São Paulo, que diante das possibilidades abertas parece ter sempre optado pela pior (o site “Quando a cidade era mais gentil” dá uma boa mostra disso [j.mp/16cKaah]), até se tornar no mostrengo cosmopolita atual – que graças a skatistas, putas, alguma classe-média com boa vontade, e alguns poucos outros, resiste em ser um deserto de asfalto e concreto. É quase a mesma amargura de Trevisan com sua Curitiba perdida. No meio da tarde, enquanto esperava por um dos amigos, na praça do Centro de Convivência, um casal na minha frente namorava como se vivesse em cidade pequena, como se estivesse nas férias: calmamente, sem afobação, carícias entrecortadas de silêncio e olhares. Campinas merecia isso e não ruas em que carros passam apressados enquanto tiozões desfilam Ferraris (que eu imaginei de início ser um Miura; semana passada a confusão se deu com um Porshe placa preta na Augusta). Mas ela optou por ser um local de passagem, que demarca sua forte segregação social com avenidas túneis e rodovias. Chego em São Paulo a tempo de pegar o último metrô. É sábado, não está vazio, mas está silencioso. Num canto um homem parece voltar do trabalho, cabeça baixa, parece cansado. Ao seu lado, um casal gay tira fotos: um negro, outro branco e loiro, cada um com seu moicano. Um homem já começando a ficar grisalho, cabelo e barbas compridos, camisa verde-musgo, meio estilo hippie-limpo, tem o olhar perdido – fosse Campinas e seria o estereótipo de quem mora na Vila São João e toca numa banda de músicas folclóricas. Um rapaz com dois brincos (e provavelmente alguma tatuagem que não enxergo) mexe no celular. Um homem gordo e calvo tem um livro na mão e mexe no celular. Também mexe no celular uma moça com uma grande tatuagem no braço, que não consigo identificar. Uma mulher de vestido colorido em tom pastel – branco preto vermelho –, óculos, grandes orelhas e forte estrabismo olha irriquieta para os lados, mais ou menos como deve estar fazendo o branquelo alto magricelo que emana cheiro de café – além dos amigos, há um café e o preço da paçoquinha diet que considero pontos positivos de Campinas – e que faz anotações sobre as pessoas do vagão em um caderno. Embaixo da teletela do metrô, que a essa hora passa propaganda institucional, um outro rapaz gordo dorme esparramado – ele usa bermuda jeans. Perto dele, um casal descolado, uma bela morena (que mexe no celular) e um rapaz que me lembra quase um “Sérgio Malando cool” pelo estilo do boné – talvez eu esteja influenciado pela tenebrosa propaganda de refrigerante com o referido artista nas paredes do trem. Atrás desse casal, um outro – ao menos um par –, ele com roupa mais justa, ela, com roupa super curta. Dois homens conversam, tem-se a impressão que a noite caminha para o final para ambos, apenas esperando chegar em casa – diferentemente de quatro amigas, prontas para a balada. Trechos de Arcade Fire, François Breut e Interpol se revezam em minha mente. Me dou conta que a festa que fui em Campinas não tinha música – e não fez falta. Por um mês não quero sushi. Travestis fazem ponto perto do circuito de rua do Anhembi. Lembro com saudades dos bons tempos da categoria, em meados dos anos 90, Gugelmin, Moreno, Gil de Ferran, Zanardi, Montoya, Vasser – pois é, eu gosto de automobilismo. Sinto mais receio de andar à noite por Campinas do que no centro de São Paulo – nesta me sinto em casa e não tem porque temê-la, apesar de saber que sempre há riscos. Por falar em casa, ao chegar, vejo na internet que em Fukuoka faz sol.

São Paulo, 05 de maio de 2013.

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