domingo, 30 de junho de 2013

Lupicínio, dança, Paulista e polícia – embalos de um início de sábado à noite.

Adentro o chuvoso domingo em SP assistindo ao muito expressivo e performático Arrigo Barnabé interpretando Lupicínio Rodrigues. Uma apresentação deliciosa para encerrar minha agradável noitada cultural, que começara naquele mesmo endereço algumas horas antes, com a Cisne Negro Companhia de Dança apresentando as coreografias “Revoada”, de Gigi Caciuleanu, e “Sra. Margareth”, do israelo-americano Barak Marshall. Nesta, a música cigana que algumas vezes é executada para embalar a dança dos doze serviçais da Sra. Margareth faz uma crítica sutil mas muito precisa da, vamos chamar, hierarquia dos povos na divisão internacional de trabalho. Entre as duas apresentações, com uma hora livre, ignoro a chuva e resolvo ir até a Paulista, dar uma olhada no movimento do sábado à noite. Ainda antes de chegar na avenida Brigadeiro Luís Antônio, dois catadores de latinhas: não sei se disputam os sacos de lixo ou se trabalham colaborativamente. Na Brigadeiro, uma agência bancária com uma porta de madeira provisoriamente no lugar da de vidro. Paredes gritam que R$ 3,20 é um roubo. Eu digo que R$ 3,00 também é – mas o momento não autoriza novas manifestações no curto prazo pelo Movimento Passe Livre, infelizmente. Dois mendigos dormem protegidos da chuva sob uma marquise. Passa outro por eles, e com a mão simula vários tiros nos que dormem. Pouco antes, outro morador de rua ajeitava a cueca. Na Paulista, o movimento é razoável – ainda não são onze da noite. Passo por um grupo de seis adolescentes, discretamente animados com a noite que começa. Em frente ao prédio da Gazeta, pessoas se amontoam no pedaço de marquise disponível (as escadas estão barradas por grades). Vou até o prédio da Fiesp, onde o ex-socialista resolveu pôr uma iluminação nacionalista, e resolvo voltar. No caminho, o grupo de adolescente está contra a parede, debaixo da chuva. Os que usavam bonés, os têm na mão. Reparo nos garotos. Dezoito anos, se tanto. Parecem bastante ingênuos. São ou morenos ou negros, e trazem no estilo a marca escancarada de serem da periferia. Dois policiais – um deles negro – se preparam para uma geral. Lembro de um amigo que conta que dificilmente quando vai pra noitada passa sem uma revista da polícia militar – ele não tem estilo de periferia, mas é negro –, a ponto de quase nem se incomodar mais – Pavlov talvez explique. Lembro também dos manifestantes na Paulista, dia 20 de junho, tirando foto com essa mesma polícia militar, naquele clima de comunhão nacional, quando, dizem, o gigante acordou. Certamente não eram esses garotos ou seus amigos e vizinhos quem tiravam tais fotos. Sigo meu trajeto rumo ao teatro Sérgio Cardoso. Ficam para trás os seis garotos da periferia, os dois policiais, e o prédio da Fiesp iluminado com a bandeira do Brasil, ostentando que, condizente com nossa história nacional de exclusão, a Paulista não é para todos.


São Paulo, 30 de junho de 2013.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A rua – local político

São sete e meia da noite de uma terça-feira qualquer. Não chove mais, faz frio. Na Paulista, em direção ao seu início, umas vinte pessoas ocupam uma pista da avenida com um protesto pelo “Padrão Fifa na educação”. Entendo o motivo da manifestação: educação, não resta dúvida, é importante – e não apenas porque agora viveríamos numa pretensa sociedade do conhecimento, como apregoam na mídia. Entendo também o slogan do “padrão Fifa”. Desconfio, contudo, que a profundidade dos manifestantes sobre o assunto seja a mesma do slogan: o que seria o tal padrão Fifa? Aulas iguais para todos os alunos de todo o território nacional, seguindo os parâmetros curriculares da Suíça? Uma educação pasteurizada, sem qualquer identidade, destruidora de identidades, mas com alguns recursos a mais? Os alunos ficarem mais tempo na escola, como não fazem na Finlândia? É preciso uma discussão ampla sobre o papel e os objetivos da educação, para então discutir os métodos. Claro, começar com um aumento nos investimentos, principalmente no salário dos professores, é um imprescindível começo. Porém, mais sensato seria defender o “padrão Felipão” de salário para professores da rede pública de ensino básico. Contudo, como cartaz divulgado: “os protestos não são contra a seleção, são contra a corrupção”. E seleção brasileira, CBD, toda nossa cartolagem, com Marins, Teixeiras, Petraglias, Sánchez, são exemplos notórios de pessoas ilibadas.

Na mesma hora, na mesma avenida, mas na direção contrária, um grupo um pouco maior – uma sessenta pessoas? – atravanca a avenida e o obriga o trânsito a ser desviado. De início o protesto é contra o pastor Feliciano. Talvez por não estar angariando o apoio esperado, resolvem mudar o grito para “Vem para a rua, vem, contra o governo”. A nova jabuticaba tupiniquim, os “sem-partido com partido”, que prega a união nacional sem fissuras e sem divergências. Recém havia trocado mensagens com uma amiga, sobre a manifestação de sexta contra o político do PSC, e meu receio (na verdade, escaldo) em participar dela era ir para uma manifestação e acabar engrossando outra, diferente, quando não de bandeiras opostas às que defendo ou simpatizo.

No vão do MASP, outra manifestação: não caminha, tem mais vulto, tem discurso. Se bem entendo, é dos movimentos sociais – não sei se diretamente ligados, mas o discurso pegava carona nos protestos feitos pela manhã, em três locais da periferia de São Paulo. A moça que tem a palavra fala do descaso da mídia para com as manifestações organizadas das pessoas marginalizadas – mesmo depois do abraço da Grande Imprensa ao protestos da semana passada. Tenho a impressão de que conheço a moça, do DCE-Unicamp-Psol e eleições campineiras. Mesmo que não seja, me bate uma tristeza ver que estou quase defendendo uma turma abertamente corrupta (frauda eleições estudantis para manter um naco ridículo de poder, por exemplo [http://j.mp/137E1uP]), por sentir necessidade de me opor ao movimento fascistóide que tomou a Paulista, dia 20.

Por falar em corrupção, se a direita soube se aproveitar da movimentação levantada pela esquerda, essa não soube pôr suas bandeiras nas vagas indignações daquela: sejamos todos contra a corrupção: além de prisão para os corruptos, por que não expropriação das empresas corruptoras em favor dos seus empregados? Um ano e o Brasil se tornava uma república proletária como nunca visto antes no mundo.

“Essa meia dúzia de gato pingado dava pra ter feito o protesto na Santos, não precisava ser na Paulista”, ouço dois transeuntes conversando. Um mês atrás aposto que essa frase seria sensivelmente diferente. Até agora, me parece que o principal legado dos atos agitados pelo Movimento Passe Livre em São Paulo tenha sido o de quebrar com a noção de ordem que prevalecia na opinião geral, muito próxima da ordem ditatorial: trancar rua e atrapalhar trânsito com protesto era coisa de baderneiros, caso de polícia e porrada; agora, apesar de incomodar, é aceito como legítimo, não merece mais esse tipo de desqualificação e tratamento. A rua – em São Paulo, a avenida Paulista – passou a ser aceita como um espaço de disputa política. Mais: a política passou a ser aceita – talvez mostrando esgotamento não do Lulismo, antes da tecnocracia posta pelo tucanato, seguida pelo petismo, defendida pela Grande Mídia. Se manifestar no mundo real, fora do Fakebook, passou a ser aceito como parte do jogo político – seja para se opor ou para defender a ordem, ainda que os gritos sejam sempre de “contra”. Claro, há quem se oponha ao diferente, mas eles são minoria (ainda que muito bem organizados).

Ponto positivo nas ocupações deste dia vinte e cinco: contrariamente ao ato do dia 20, as diversas manifestações que presenciei se organizaram por conta (não pegaram carona em uma maior), gritavam suas reivindicações e não tentavam calar as demais. Havia, portanto, espírito democrático nelas. Ao mesmo tempo, me ponho a questão: quanto tempo vão durar essas manifestações etéreas, organizadas e com a participação de pessoas que não tinham o hábito da rua como local político – e, creio eu, nem da política em local algum, fora da cabine de votação, no máximo dos comentários em blogues? E, principalmente, me pergunto quanto tempo vai durar essa percepção de manifestações de rua como legítimas em uma democracia. Se perdurar tal visão, será um passo importante para, quem sabe um dia, deixemos de ser uma mera democracia pro-forma, tal qual hoje.

São Paulo, 26 de junho de 2013.



sexta-feira, 21 de junho de 2013

A internet ocupou a Paulista.

Pouco depois das 21h do dia 13 de junho de 2013, após subir por uma Augusta cheia de lixo e restos de alguns focos de incêndio, eu chegava ao cruzamento com a Paulista. Havia uma névoa das bombas de gás lacrimogêneo no ar. O choque estava a uma quadra de distância e vinha em direção à Consolação, distribuindo balas de borracha e bombas democraticamente, sem distinção de cor, gênero, opção sexual, renda. Manifestantes, curiosos e moradores de rua eram obrigados a correr. Dois partidos ali estavam bem representados: os contestadores e os defensores da ordem.

Dia 20 de junho de 2013, chego na Paulista com a Augusta pouco depois das 21h, após percorrer a avenida mais importante de São Paulo desde seu início. Há fumaça de churrasquinhos. Ambulantes também vendem cerveja. Na Hadock Lobo, dois carros de cachorro-quente. A polícia está ali, sem nada para fazer com aquele excesso de contingente. Dois partidos? Nada: integração! O povo é um só! O clima, comparado ao da quinta-feira anterior, é outro, é certo, mas está longe de ser a festa unânime que tenta aparentar.

Uma semana depois do excesso de excessos da polícia militar, dois dias depois da omissão da mesma polícia militar no início da manifestação e de truculência no seu final – pouca gente viu ou soube, há algum registro no twitcasting do pos_tv [http://twitcasting.tv/pos_tv] –, vejo manifestantes tirando foto ao lado de policiais militares, a poucos metros dos integrantes do Movimento Passe Livre. De duas uma: ou há uma revolução, ou há uma farsa.

Passo uma primeira vez pela manifestação, logo em seu início – temporal e espacial. Vejo uma faixa de “Fora Alckmin”, bandeira de “Todos contra a corrupção”, muitas pessoas com caras pintadas e enroladas em bandeiras do Brasil. A estas últimas, dou um desconto: como li comentário de amiga no Fakebook: há gente que só conhece manifestação de dia de jogo na Copa e a única referência que tem de protesto político é o “Fora Collor”. As outras duas, algo me diz que não estão no seu devido lugar – ou, como passarei a achar depois: eu não estou no meu devido lugar.

Na República e Cracolândia, onde vou bater um rango com uma amiga, a vida segue normal. O garçom comenta a goleada da Espanha, a feirinha dos barrados do baile acontece na São João, como sempre. Há mais policiais militares do que de costume, mas não vejo carros da Rota, diferentemente da quinta passada. O clima é bem mais leve – e não só porque a manifestação começou longe dali: quinta retrasada, no primeiro ato do Movimento Passe Livre, o clima já era tenso na República.

Volto com minha amiga pra Paulista. Ela acha positivo as pessoas na rua, mesmo que estejam ali por motivos aleatórios, mesmo que tenham ido mais pra ver como é que é. Tenderia a concordar com ela: pessoas na rua, em contato umas com as outras, é oportunidade de diálogo e de convivência com o diferente. Contudo, algo me enrosca essa noite.

A primeira impressão é de que está parecendo a parada gay sem trios elétricos, com blocos no lugar. Vemos alguns vários. Há o bloco dos “Fora Dilma”. Há o dos “Pela democracia – Fora PT”. Há os “Contra a ditadura” (que gritam, “quem não pula quer PT”). Há um contra o Lula (querem tirar ele do New York Times, será isso?). Há os contra a corrupção (e quem é a favor para precisar de um ato?). Há os “Fora Renan”. O grito, não é de se surpreender, é um só: “Vem pra rua, vem, contra o governo”. Sem qualquer organização, munidos de toscos cartazes de cartolina – os acima possuíam faixas feitas em gráficas com ótima qualidade de impressão –, passávamos por vários manifestantes contra Feliciano e a cura gay. Amigo meu depois disse que havia ainda um bloco de anarquistas. O “Fora Alckmin” que vi no início, não viria mais, nem na ida, nem na volta da Paulista. Em compensação depararia com cartazes “Pela vida, contra o aborto”. Leio na internet que, logo no início, havia também um bloco das esquerdas – escorraçadas por portarem bandeiras de partidos, afinal, o povo é um só. Vejo, no fim da Paulista, que há também, como já disse, o bloco do Movimento Passe Livre, praticamente insignificante no ato que ele próprio chamou. Ah, sim! Havia também uma grande faixa que indiretamente se punha contra o passe livre, ao pregar o fim dos impostos.

Em casa ficaria sabendo das agressões contra aqueles que manifestavam positivamente sua preferência política. “O movimento é apolítico”, justificavam – porque manifestar negativamente contra o PT não é partidarismo. Expulsaram aqueles que estavam desde o primeiro ato reivindicando: haviam apanhado da polícia militar, agora apanhavam de civis. A idéia era construir um povo só, unido e unânime, e para isso se valiam de truculência maior do que a do Choque: porque a tropa de Choque reagia com bombas, mas não calava vozes; a PM teve suas ações (fardadas) documentadas e expostas àqueles que achavam que vândalos eram os manifestantes. Ali, no meio da multidão, os grupos anti-esquerda, muito bem organizados, se sobrepunham a qualquer voz dissonante – com fogos de artifício, se preciso. Com agressões e fogo nas bandeiras, se ainda insistissem. O clima era para ser de comunhão: cante com todos ou caia fora. Preferi sair – o quanto antes. Mesma sensação teve o amigo que mora comigo, que chegou logo depois. Tudo me cheirou a golpismo – e eu espero ser uma impressão muito equivocada, causada pela emoção da noite.
Afinal, como diz um dos cartazes desse Gigante que acordou: não é contra a seleção, é contra a corrupção

Supondo que o cheiro de golpe seja delírio meu e de meio milhar de amigos meus, não resta dúvida que o ato deste dia vinte de junho foi uma grande derrota. A começar que a massa de pessoas – que nas primeiras quatro manifestações do passe livre se guiava por São Paulo, enfrentando a polícia militar, o Estado, os políticos, o trânsito, a nossa vida quotidiana de pequenas frustrações – se tornou uma massa de manobra: eram bois que passeavam pela Paulista e reprimiam quem não mugisse como eles – adestrados nos comentários raivosos de internet, regurgitando preconceitos, babando agressividade gratuita (que não era vandalismo, porque pessoas não podem ser vandalizadas, conforme a Grande Imprensa).

Isso por si já seria uma derrota acachapante. Havia mais: a esquerda calada, o movimento passe livre marginalizado, ambos acuados.

Não apenas isso: aquela sensação de insatisfação difusa contra as condições de vida – a vida pobre de viver para trabalhar, a vida precária de cada um em sua bolha, a vida insuficiente que tenta se bastar pelo consumo – rebaixada a uma disputa entre partidos, e a política, novamente, reduzida a uma parte dela, a institucional-partidária – a parte mais precária (e mais visível) da política quotidiana. Fora Alckmin, fora Dilma, fora Lula. Fora Feliciano, fora Fifa. Alckmin pode ir. Para pôr o que no lugar? Palocci? Skaf e a bandeira brasileira projetada na Fiesp? Fora Dilma para entrar quem? Temer? Serra? Fora Feliciano? Feliciano é mosca na sopa: tem Bolsonaro (que elogiou as manifestações do dia 20, não por acaso), tem Garotinho, tem Marina Silva, tem uma série de políticos de conservadorismo extremo para ocupar seu lugar. “Vem pra rua, contra o governo”, não contra o Estado: tudo pode continuar como está, desde que mude o nome de quem manda. Debate sobre mobilidade urbana? Sobre contratos entre poder público e poder privado? (Amigo meu disse que as vaias do passe livre em frente à Fiesp foram duramente combatidas). Debate sobre direito à cidade? Sobre uso da rua, dos espaços públicos? Debate sobre prioridades dos governos? Discussão sobre a extinção da polícia militar? Contestação da forma de democracia representativa? Todos esses pontos, que em alguma hora foram levantados nas últimas duas semanas, morreram na alegria ufanista (proto-fascista) que não tolerava diferenças – desconfio seriamente que a marcha para Jesus deva ser mais democrática do que se tornou a manifestação de hoje.

Contrariamente a uma semana atrás, hoje, quando passei no cruzamento da Paulista com a Augusta, não havia dois partidos se expressando na rua – e a polícia militar estava ostensivamente presente.

São Paulo, 20 de junho de 2013.

ps: o ato era tão contestador que não só a Fiesp ajudou com seu prédio verde-amarelo, como também o banco Safra, ao liberar seu sinal wi-fi ao manifestantes.

ps2: conveniente pro momento:

ps: conveniente para este momento:

"Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem.
Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.
Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais.
A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País."

quarta-feira, 19 de junho de 2013

É mais do que vinte centavos – é menos do que contra tudo

Alguns elementos ajudam a explicar a perplexidade da Grande Imprensa para com os atos que agitam São Paulo há duas semanas e avançaram com força Brasil adentro esta semana. Um deles, muito comentado, é a falta de lideranças nos moldes típicos de sindicatos, partidos e organizações afins: os tais líderes do Movimento Passe Livre têm pouca ascendência sobre a massa que se reúnem ao seu chamado – resultado do angariamento de pessoas ter origem na internet e não fruto de um trabalho de longa data de “conscientização”. Um segundo é a ausência de bandeiras claras – demorou para os ideólogos da Grande Imprensa se darem conta de que vinte centavos não eram o motivo de juntar tanta gente. Soma-se a isso que outro fato incomum é seu caráter não-reativo. Nos últimos dez anos, desde a chegada do PT ao executivo federal e conseqüente desarticulação dos movimentos sociais organizados, o que se vê são movimentos reagindo a pautas postas desde cima, pelos governos de turno – as poucas exceções que lembro são alguns movimentos de minorias e os movimentos por moradia, apesar d'estes só terem conseguido visibilidade quando num momento de luta reativa, a desocupação de Pinheirinho, em janeiro de 2012.

Os tais vinte centavos foram tão-somente o estopim para uma insatisfação generalizada, que não possui foco claro – é uma insatisfação com a situação social do país. Os motivos (em um primeiro momento) são muitos, variados e até mesmo contraditórios. Isso não desmerece o movimento, pelo contrário. Pode prejudicá-lo, é certo: a massa de pessoas, não estando sob o cabresto de uma ou algumas lideranças, tão fácil se aglomerou, tão fácil pode se dispersar. Ou pior: pode achar quem dê as rédeas da situação. Por outro lado, a ausência de uma vocalização clara do que querem atrapalha os movimentos dos donos do poder: o que atender, com quem dialogar? (Com todos, como se vivêssemos literalmente em uma democracia?). Na década de 1960, Herbert Marcuse já levantava que uma das formas de enfraquecer movimentos reivindicatórios e a tomada de consciência era identificar problemas pontuais e saná-los (a genérica “insatisfação pelas condições de vida” viraria um problema de baixo salário ou de transporte público).

Na ausência de bandeiras definidas, a Grande Imprensa e os donos do poder vão tentando impôr as suas – aquelas cheias de boas intenções que servem para mudar absolutamente nada. É o que comenta com propriedade Paulo Motoryn: “a grande imprensa já está mobilizada para maquiar o movimento de acordo com um ideário conservador” [http://j.mp/15kmj30]. Apesar do estopim ser o reajuste nos transportes públicos, não é contra o aumento do custo de vida, como foi dito no Jornal Nacional. Não é contra a corrupção, como tentam definir e confinar os protestos, pois como Alex de Castro fala em seu artigo “O problema com o movimento anti-corrupção” [http://j.mp/11ZS6Zd]: existe alguém abertamente pró-corrupção? Se o motivo para tantos irem às ruas fosse esse moralismo rasteiro apregoado por Veja e seus novos (não tão novos) seguidores diários – Folha e Estadão –, desde o início da república não sairíamos dela. As reivindicações por migalhas, contra bodes expiatórios, até juntam algumas pessoas, mas não duzentas mil.

Se não consegue seqüestrar, esvazia-se. Se as reivindicações não viram à direita, que sejam todas, a ponto de não ser nenhuma. “Contra tudo”, como foi capa da Folha. O esvaziamento do discurso pode ser sentido em uma presença vazia de conteúdo nas manifestações: me chamou a atenção no ato de segunda uma foto publicada pela Folha, de uma família que fora até o largo da Batata “protestar” com um cartaz com dizeres algo como “filho, pai, avô presentes no ato”. No ato de terça, na Paulista, li alguns relatos no Fakebook (não estou em SP para acompanhar in loco) de que o protesto de tão pacífico se tornara uma micareta, praticamente um aquecimento pro jogo da canarinho na copa das confederações, com direito a ufanismo e ambulantes. Caras pintadas enrolados em bandeiras do Brasil são uma excrescência que logo deve ser alçada pela Grande Imprensa como a cara das manifestações.

A questão não é tirar essas pessoas dos atos, antes como fazer com que essa participação seja minimamente pensada e sentida como protesto. Com ou sem partidos, os atos motivados pelo Movimento Passe Livres são políticos, aberta e escancaradamente políticos. Retomar métodos da esquerda tradicional, como vejo em análises pela internet? Defendo antes a derrota do movimento do que seu retrocesso.

Chama a atenção que dos movimentos que chamei de não-reativos, ou seja, que conseguem impôr uma pauta de discussões e não seguir a ditada pelo governo, dois deles, o movimento por moradia e o passe livre, são movimentos urbanos – papel que durante a década de 1990 foi do MST. E é do passe livre que sai o estopim para esse levante que ainda deixa a todos perplexos.

Não acho que os manifestantes sejam incapazes de compreenderem a ligação dos problemas locais com questões globais – talvez preguiçosos, admito. Entretanto, grandes temas não conseguem mais mobilizar como faziam até meados do século passado. São problemas pontuais, ainda que longe de serem problemas menores, que abrem para uma questão mais ampla: a da cidade. Penso que talvez esteja aí uma das chaves para compreender esse movimento e possíveis desdobramentos na política institucional. Não chega a ser plausível, por ora, mas dá pra sonhar em ver políticos no cargo de prefeito não abandonando a prefeitura por cargos mais “nobres”, nas esferas estadual e federal: a política (em qualquer nível) como vocação e não como carreira e profissão.

*

Sobre os acontecimentos não-pacíficos das manifestações desta terça-feira. Eu comentava antes do ato de segunda que a briga era pela opinião pública. A pecha de vândalos e violentos migrou dos manifestantes para a polícia militar e o governador Geraldo Alckmin. Eu chutava que a tentativa seria taxar novamente os manifestantes de arruaceiros. Eu arriscava: “é bem provável que a ordem do governador Alckmin e seu secretário de segurança pública (sic), Fernando Grella Vieira, seja infiltrar mais homens do que geralmente ocorre. A solitária pedra que citei em outra crônica terá a companhia de outras, e pode ser o estopim para a polícia militar reprimir com 'rigor' manifestantes que nada tem a ver com policiais à paisana. Ou pode ser que a polícia não use de toda a violência do dia 13, apenas o suficiente para inflamar os ânimos amainados de alguns, e deixe o 'vandalismo' correr solto. Diga-se de passagem, os tais atos de 'vandalismo', supondo terem sido cometidos pelos manifestantes, são bem leves e ordeiros: barricadas com lixo são necessárias para atrapalhar o avanço da polícia, e a quebra de vidros é coisa pouca, perto do que uma multidão pode fazer. Mostra disso é o respeito às vacas sagradas brasileiras – os carros –, que seriam barricadas bem mais eficientes”.

Respeitaram o ato de segunda: talvez porque seria dar muito na cara infiltrar homens logo no primeiro ato após aquele que descortinou quem eram os violentos na história. Para a sexta manifestação, usaram um pouco de cada tática que levantei: alguns infiltrados para agitar alguns mais exaltados – sempre há – e a omissão da polícia militar para dar conta dessa meia dúzia. A completa ausência da polícia militar só pode ser ter sido deliberada – ou então é de uma incompetência que justificaria sua extinção até por aqueles que a defendem. De qualquer forma, a inação dos fardados não foi menos incompetente (mesmo para seus objetivos), e o recado que fica é que parece que a polícia militar só sabe agir com violência – do contrário, não age.

Os atos de vandalismos desta feita foram muito diferentes de todas as outras: nas demais aconteceram quando a manifestação estava em estágio mais avançado e, salvo na quinta, em reação à truculência da polícia militar. Os atos contra a prefeitura aconteceram logo no início, puxados por uma meia dúzia que se movia com desenvoltura e poderiam ter sido impedidos muito facilmente – se as forças de segurança não tivessem se omitido.

Os demais atos que se seguiram, nada mais que conseqüência do primeiro. Achar que a partir dali a polícia militar, o Estado, ou qual outro órgão da “ordem” que possa estar interessado em causar tumulto não esteve presente soa certa ingenuidade: conforme o portal Ig, no “minuto a minuto” das manifestações: “o prédio onde fica a agência bancária incendiada foi um antigo hotel. Nele há uma ocupação de sem-tetos. Aproximadamente 300 pessoas moram no local, mas não há informação de feridos”. Com centenas de agências bancárias pelo centro da cidade, os “vândalos” acertam de incendiar justo a de um prédio ocupado pelo movimento de luta por moradia? É um senso de coincidência muito grande por parte dessas pessoas!


PBco, 19 de junho de 2013.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O que esperar do ato desta segunda, 17?

Os protestos de quinta-feira-13 e a forma como o Estado reagiu à manifestação até então pacífica puseram a disputa pelo espectador e a opinião pública no centro da manifestação desta segunda – tática levantada inteligentemente pelos manifestantes. Na manifestação do dia 13, a polícia militar, atendendo aos apelos da Grande Imprensa – vale lembrar os editoriais da Folha e do Estadão, para não citar a abjeta mídia televisiva – por mais “rigor” na repressão aos “baderneiros” conseguiu com isso reverter a opinião pública que, como praxe num país conservador e de forte raiz ditatorial como o Brasil, se punha contra os “arruaceiros” e a favor da polícia descer o cacete em todos aqueles “vagabundos”. Nesta segunda, a disputa será por colar a pecha de “vândalos” novamente naqueles que protestam.

Conforme a Grande Imprensa, a polícia militar não pretende utilizar o choque desta feita – que ficará de reserva, para qualquer eventualidade. Não ter o choque – tropa apta a “controlar” rebeliões em presídios, por exemplo – no trato com os manifestantes é positivo. Contudo, a falta de preparo da polícia militar em lidar com a população, com o povo, com manifestações, não torna o cenário muito tranqüilo.

Torço para estar errado, mas vejo grandes chances do protesto não ser tão pacífico como desejam os que dele participarão. E não falo por causa dos exaltados, que esses se controlam enquanto a multidão não é “provocada” por bombas de gás e balas de borracha. Como a briga é pela opinião pública, é bem provável que a ordem do governador Alckmin e seu secretário de segurança pública (sic), Fernando Grella Vieira, seja infiltrar mais homens do que geralmente ocorre. A solitária pedra que citei em outra crônica terá a companhia de outras, e pode ser o estopim para a polícia militar reprimir com “rigor” manifestantes que nada tem a ver com policiais à paisana. Ou pode ser que a polícia não use de toda a violência do dia 13, apenas o suficiente para inflamar os ânimos amainados de alguns, e deixe o “vandalismo” correr solto. Diga-se de passagem, os tais atos de “vandalismo”, supondo terem sido cometidos pelos manifestantes, são bem leves e ordeiros: barricadas com lixo são necessárias para atrapalhar o avanço da polícia, e a quebra de vidros é coisa pouca, perto do que uma multidão pode fazer. Mostra disso é o respeito às vacas sagradas brasileiras – os carros –, que seriam barricadas bem mais eficientes.

As sugestões dos manifestantes para que filmem os “exaltados” pode ser positiva, se depois for possível mostrar que se tratam de policiais militares – conseguir um IPM seria pedir demais e inócuo. Controlar os ânimos dos manifestantes de fato, isso parece difícil, mas não de todo impossível – a multidão é capaz de controlar os que a formam, quando ainda sob seu próprio controle.

Foi algo que discuti com amigos, ainda durante a manifestação do dia 13, com a avenida Paulista livre de carros e pessoas para o choque passar: tendo a polícia militar apelado para a violência, talvez seja o caso de apelar para a irreverência. Como os skatistas que vi arriscarem umas manobras nessa hora, na Paulista, ou como o magistral dançarino de “Stayin Alive”, no vídeo reproduzido no youtube. Independente disso, um grupo mostrou saber fazer uso do poder das imagens e tem feito “intervenções” capazes de rodar o mundo: os manifestantes com flores é uma delas, e a citação de Os fuzilamentos de 3 de maio, de Goya, não parece ser por acaso – penso que novas imagens do tipo podem surgir hoje, que esse pessoal é bom.

Pelas proporções que o ato promete tomar, é bem provável que os governos – municipal e estadual – cedam e revoguem o aumento da passagem ainda esta semana. Daí, inclusive, o "inusitado" apoio de formadores de opinião que até ontem eram contra os manifestantes e abusavam de adjetivos pejorativos para se referir a nós. É sabido que os protestos não são por vinte centavos – são por direitos, como gritam muitos cartazes, e são também por causa de qualquer insatisfação difusa. Se essa insatisfação for canalizada para outras bandeiras (que seja ainda na linha do transporte público, algo como “R$ 3,00 ainda é um roubo”), achar um novo estopim, pode ficar impossível controlar as séries de manifestações – mais fácil, então, ceder agora os vinte centavos, mesmo abrindo o “perigoso” precedente de que disputar o poder de fato com os políticos traz resultados. Estes atos, de qualquer forma, deixam no ar o risco de a Copa do Mundo ser realizada sob estado de sítio.

Havia terminado este texto quando vejo na internet a notícia de que entulho foi depositado no Largo da Batata, local da manifestação de hoje – santa coincidência! O Estado põe seus primeiros infiltrados.

São Paulo, 17 de junho de 2013.


sábado, 15 de junho de 2013

Premeditação na violência policial e quatro erros de avaliação dos donos do poder

Leio na Grande Imprensa que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, responsável último pelos atos da polícia militar sob suas ordens “afirmou que atos abusivos de policiais serão investigados. 'Não temos nenhum compromisso com o erro. A polícia tem uma corregedoria. Então será apurado qualquer abuso que tenha sido cometido. A polícia trabalha. Exceção, se houve um abuso isolado, isso vai ser rigorosamente apurado'”.

Sobre abuso das nossas polícias, isso merece um texto só para o tema. Qualquer investigação séria vai mostrar que não houve excesso dos abusos por parte da polícia militar paulista nas manifestações do dia 13 de junho – e não falo isso com ironia. O que houve de excepcional foi a aplicação no centro rico da cidade mais rica do país do mudos operandi que essa polícia utiliza nas franjas pobres da cidade – em Capão, em São Miguel, em outras regiões “esquecidas”. Foi a atuação banal e costumaz, feita em doses homeopáticas e diárias contra negros, pardos e pobres, concentrada em uma dose de choque contra a classe média branca. Nada de extraordinário, apenas a democratização da repressão.

A polícia militar, por mais que tente aparentar o contrário, não é burra. Toda as ações contra os manifestantes, no dia 13 de junho, dão a clara impressão de premeditação. O que parece ter havido por parte da cúpula da polícia militar e do governo foram alguns erros de avaliação na hora de montá-la.

Dizem as autoridades que havia um pacto com os manifestantes que foi desrespeitado. As autoridades sabem que há uma diferença grande entre esse tipo de movimento – quase espontâneo – e passeatas organizadas por sindicatos e outros órgãos para-estatais de controle da ordem. As tais lideranças o são porque haviam feito a chamada para o ato, não porque têm qualquer ascendência sobre supostos subordinados. Esse tipo de pacto, se feito, teve o único intuito de servir de álibi para a ação da polícia.

Polícia que demorou para agir, a crer na versão oficial – e não porque fosse possível qualquer negociação – já que os manifestantes não deveriam parar a Consolação. Como comentei no relato do que vi na manifestação [http://j.mp/cG19DMp]: eu estava na linha de frente quando o choque interveio. Antes dele, no máximo uma dúzia de policiais militares fazia a contenção, na altura da Consolação com a Maria Antônia e Caio Prado. Uma dúzia de policiais militares para fazer a contenção de milhares de manifestantes é uma provocação, é um convite a “passem por cima, por obséquio”. Aconteceu que os manifestantes não fizeram esse favor. Foram longos e tensos minutos em que os manifestantes ficaram parados, gritando “Vamos pra Paulista”, mas sem avançarem de fato. Mesmo sem justificativa, o choque resolveu agir – “ataque preventivo”, como poderiam justificar depois, com ajuda de Datenas da vida. Oficialmente, a ordem era impedir que bloqueassem a Paulista – e conseguiram: quem a bloqueou foi a polícia, como seguiam interditando o centro da cidade, mesmo com os manifestantes bem longe.

Pela violência inaugural da polícia militar, pode-se supor que o plano era não apenas dispersar os manifestantes, como esperava-se que boa parte deles desistisse e fosse embora – restando alguns mais “valentes” para tomar porrada sob a justificativa de vândalos. Realmente, ouvi algumas pessoas, logo que a polícia começou a vandalizar, que iriam embora. No Fakebook uma amiga se desculpava por ter feito o mesmo: justificou que temia pela sua segurança. A grande maioria, contudo, permaneceu. Primeiro erro de avaliação das autoridades.

Por falar em vândalos, um parágrafo à parte. Sempre foi essa a justificativa para deslegitimar todo o movimento. Do outro lado, tentava-se argumentar que era uma meia dúzia que se aproveitava. Até a intervenção da polícia, era impossível qualquer ato do tipo, porque quem ousasse vandalizar qualquer coisa, seria impedido pelos demais manifestantes. Depois da polícia agir... horas há que é necessário: queimar lixo no meio da rua vira necessidade: é tempo que se ganha para fugir da truculência. O grosso da “depredação” dos bens públicos e privados, contudo, não viria daí, e sim de vidros de estações e bancos quebrados. Começa que ação contra coisas é bem diferente do que contra pessoas – um vidro troca-se, um olho, não. E é de se questionar o quanto isso é feito por manifestantes mais exaltados. A polícia já havia avisado que poria policiais à paisana na manifestação – oficialmente para filmar e identificar esses “arruaceiros”. Contudo, quando filmam um policial fardado quebrando o vidro da própria viatura – não fosse a gravação e depois seria apresentada como outra prova do vandalismo que justificaria a ação violenta da polícia –, não é preciso nenhuma teoria conspiratória para saber que os policiais à paisana não estão para filmar, mas para exaltar ânimos, quebrar agências e estações – no mínimo metade é ação deles –, tacar a solitária pedra que vai justificar o avanço animalesco da polícia (este último exemplo não me refiro à manifestação do dia 13).

O terceiro erro de avaliação foi que a Grande Imprensa apoiaria a ação incondicionalmente – em editoriais, os mui democráticos Folha e Estadão já haviam pedido ações mais enérgicas contra os manifestantes. O problema é que a Grande Imprensa notou que não poderia distorcer os fatos o quanto precisaria, e que a população começava a formar uma opinião independente sobre as ações da polícia. A enquete no programa do Datena, perguntando se o espectador concordava com aquele tipo de protesto, e com ampla maioria do sim era uma mostra ao vivo disso (depois a pergunta foi alterada para “protesto com baderna”). Bater frontalmente com os espectadores seria admitir sua parcialidade, sua mentira – tiveram que recuar, em nome do que chamam de “credibilidade”. Segundo erro de avaliação foi da mídia, ao achar que o espectador seria refém da sua versão, custasse o que custasse.

A pancadaria democrática do início do protesto foi abusada até o final e depois dele. Como também comentei em meu relato, a Paulista já fluía normalmente e do outro lado da rua, vi três homens serem atacados por três bombas da polícia – qual a necessidade de dispersar uma “multidão” de três pessoas? O objetivo dos “excessos” mesmo sem a menor justificativa parece ser amedrontar os manifestantes para o próximo ato – não funcionou agora, mas no próximo... É esse o caso dos tiros em jornalistas, mais no fim do protesto. Segundo a jornalista da Folha – que tem a versão mais plausível – o policial mirou nela e atirou: estava num estacionamento, não havia manifestação, nem manifestante por perto. Curiosamente no olho – único lugar que uma bala de borracha pode causar um estrago mais grave à pessoa. Curiosamente, não houve manifestantes com esse azar, e sim profissionais da imprensa: um manifestante poderia ser justificado como “efeito colateral” dos confrontos, que não havia essa intenção, que tivera azar – e a versão da polícia militar e do Estado predominaria. Contra alguém da imprensa, a versão da polícia fica sob suspeição – inclusive porque o tiro foi dado quando o clima estava mais ameno, numa rua que em nenhum momento foi um dos principais campos de batalha. Foi, na verdade, um recado para os manifestantes que pretendem ir ao próximo ato, reforçado pelos discursos das autoridades, do governador Geraldo Alckmin, inclusive: quem aparecer segunda vai se machucar, vai perder o olho, vai estar com a vida em risco – afinal, “quem não reagiu está vivo”, e isso vale pra “bandido” quanto pra “baderneiro”.

Arrisco afirmar: esse é o quarto erro de avaliação das autoridades: segunda-feira poucos, pouquíssimos vão ficar em casa por medo do que aconteceu no dia 13.


São Paulo, 15 de junho de 2013.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

SP não pode parar? (apenas outro relato do dia 13/06)

Sete e dez da noite, mais ou menos. Uma mãe com uma criança de colo - um ano, se muito - sai do carro, na rua Caio Prado, e corre desesperada em direção à Augusta, em meio à fumaça. "Puta merda!, que idéia errada", penso na hora. A mulher nota isso antes de passar pelo primeiro carro atrás do dela, quando uma bomba estoura pouco metros na sua frente. A criança berra, a mãe consegue voltar pro carro antes do grosso da multidão começar a correr na direção contrária, por causa das bombas. Começava aí o tal vandalismo das manifestações em SP, que a Grande Imprensa e o Estado dizem ocorrer – até então a mulher estava há vários minutos presa no trânsito, em meio a baderneiros, arruaceiros e vândalos, e não se desesperara.

Eu chegara atrasado à manifestação. Seis e meia estava em frente ao Theatro Municipal. Havia quase um clima de virada cultural, o trânsito impedido, as pessoas ocupando a Xavier de Toledo - mas a utilizavam para ir e vir, não com rodas de samba. O viaduto do Chá estava fechado: manifestantes? Nem sinal deles: a polícia fizera dele uma base. Caminhei até a República, tranqüila, encontrei a manifestação quase em frente ao Copan. Corri para o início. Estava no cruzamento da Consolação com a rua Caio Prado. "Vamos pra Paulista!", era um dos gritos dos manifestantes, que não avançavam, impedidos por uma barreira de alguns poucos policiais militares. Não contei no relógio, mas depois que cheguei, a manifestação ficou bem uns cinco minutos parada num clima tenso de disputa de território. Passei por trás da barreira. Próximo ao canteiro central, observei e analisei a situação: aqueles poucos policiais militares segurando milhares de manifestantes, havia algo errado: logo ou chegaria reforço - vai que nossa polícia militar tinha sido minimamente inteligente e faria a contenção! -, ou aquilo era provocação e, diante da resposta não-violenta dos manifestantes, logo viria bomba. Fui ingênuo em achar que era a primeira opção e que a polícia militar direcionaria os manifestantes para a praça Roosevelt. Mas não fui tão ingênuo em acreditar tanto na minha ingenuidade e tratei de ver qual parecia a melhor rota de fuga: me pareceu a Caio Prado.

O clima era tenso, palavras de ordem eram gritadas, mas não havia - ali na linha de frente da manifestação - nenhuma afronta à polícia, além do "Vamos pra Paulista" que não se concretizava em ato. Isso até a primeira bomba - que, definitivamente, não foi disparada da população, e sim contra ela. Foi pouco depois que vi a cena da mãe desesperada com a criança de colo. "Não corre, não corre", alguns tentavam acalmar a turba que explodia por entre os carros, respeitando as vacas sagradas que entopem nossas ruas. "Vinagre aqui! Vinagre aqui!", alguns "terroristas" compartilhavam o antídoto para as bombas de gás lacrimogêneo da polícia. Eu tinha os olhos cheio de lágrimas, a garganta ardendo e o nariz escorrendo a ponto de achar que estava sangrando por causa do gás. As primeiras bombas causavam grande corre corre, a partir da quarta ou quinta, era apenas passar o estrondo para os manifestantes tentarem voltar à posição.

Nessa hora, uma amiga que dormiria em minha casa me ligou avisando que havia chegado mais cedo - duas horas - e me esperava no metrô. Fui encontrá-la no Anhangabaú. O barulho das bombas e a freqüência com que estouravam davam um ar de ano novo - minha amiga até brincou e cantarolou qualquer canção da época. O cheiro de vinagre estava no ar. No viaduto do chá - ainda interditado - o choque já havia saído. Fomo comer algo, aproveitei para beber um mate pra aliviar a ardência na garganta causada pelo gás. Na lanchonete, entraram três rapazes em trajes fora de época, um usava cartola, outro tinha uma bicicleta que devia ser antiga na época do meu avô. "Estamos num filme do Pasolini, é isso?", brincou minha amiga. Pouco depois passou um carro da Rota, atrás um militar branco, boina meio caída, o olhar vidrado. Minha amiga concordou que o soldado parecia soldado da SS. Uma das cenas tinha mais peso na realidade, era a segunda. Subimos por uma rua Augusta transformada em cenário de filme, com lixo e pequenas fogueiras em toda sua extensão até a Paulista, lojas fechadas. Carros da polícia militar e dos bombeiros (e até um carro da polícia civil) passavam em alta velocidade.

Na principal avenida da cidade, quem a bloqueava não eram os manifestantes, mas a própria polícia militar. Os focos de manifestação haviam sido dispersados. Tivemos que correr de algumas bombas de gás lacrimogêneo, até acabarmos na esquina da Bela Cintra com a Paulista - onde três pelotões da cavalaria montavam base. Eu me perguntava no que aquela manifestação uma hora antes, pouco mais, precisaria de cavalaria. Ainda havia fumaça das bombas quando notamos um homem sem uma perna. Andava calmamente com sua muleta e parou próximo a uma tropa que estava ali. Calmamente acendeu o cigarro, observou, analisou a situação. Havia mais policiais que manifestantes, mais curiosos do que policiais. Um policial militar tentava fazer os curiosos se dispersarem. Sem poder usar de bombas de gás, não tinha lá grande autoridade. O homem, depois de muita exortação, calmamente se retirou do meio da rua. Veio até nosso lado e ali ficamos, acompanhando à distância, as movimentações. Soubemos que havia um grupo maior na Angélica; vimos uma fogueira na Bela Cintra com a Luís Coelho. Ouvíamos o barulho de bombas vindo da direção da Augusta. Chegavam comentários sobre a jornalista da Folha. Ônibus do choque passavam. Um amigo voltou da Consolação. Lá, com o trânsito já fluindo, um grupo de quinze pessoas, se tanto, gritando "Sem violência" no canteiro central, havia sido dispersada pelos policiais com mais bombas. "Saíram correndo, no meio dos carros, não sei como não foram atropelados", comentou meu amigo. Só depois a polícia militar fechou a via para evitar maiores "efeitos colaterais".

Na Paulista, vejo um rapaz sendo abordado por, pelo menos, seis policiais. Achei que estava pichando uma agência bancária. Depois conversamos com ele: que pichação, que nada, apenas passava e acharam que tinha cara de suspeito. Diz que ficou chocado com a aula de reacionarismo dos policiais: "de que lado você está?", "vai dizer que não estamos fazendo o certo, que não estamos protegendo a sociedade?". Conceitos abstratos para agredir pessoas concretas.

No fim, a avenida já liberada dos "vândalos" a polícia militar resolveu, enfim, cessar suas manobras e liberá-la para o tráfego. Já passavam das dez e meia. Conversávamos com mais algumas pessoas na esquina quando escutamos três bombas e vimos três homens correndo. Ninguém pode dizer que nossa polícia não é democrática: uma bomba para cada um. E a truculência diária das periferias e locais ermos agora no centro da cidade, na "avenida mais rica do Brasil", ao vivo na TV.


São Paulo, 14 de junho de 2013.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Contra o que protestam em SP?

Na quinta-feira, seis de junho, passam por mim, na rua Augusta, nove da noite, muitas motos da polícia militar, quatro carros da força tática, dois do choque. Um tanto alheio ao Fakebook e noticiário, sabia da manifestação por ter ouvido, alguns minutos antes, a conversa entre dois policiais militares, na República. Ainda assim me admirei: tudo isso para uma manifestação? Depois ficaria sabendo que aquilo não era nada. Na terça, dia onze, oito horas da noite, na Paulista, trinta e quatro (dessa vez me dou ao trabalho de contar) motos da polícia militar passam, direção Consolação, zunindo como um enxame de abelhas. Pouco depois, trinta e quatro passam de volta, direção Paraíso – quero crer que as mesmas. Outras doze logo passam no mesmo sentido. Mais dois carros da força tática. Isso em menos de dez minutos. “Eles chegaram na Paulista, eles chegaram na Paulista”, avisa, alarmado, o dono da banca de jornais ao segurança do Conjunto Nacional. Em casa, vejo no noticiário que cerca de cem manifestantes haviam subido a Brigadeiro e tentavam impedir o trânsito na Paulista. Em meio às manifestações, duas pessoas são feridas por alguém que demonstra que um carro é também uma arma – além de boa parte dos problemas de mobilidade da cidade. Fugiu impune, e desconfio que muitos homens de bem comemoraram sua violência – porque queimar lixeiras e atrapalhar um trânsito é um exagero, ferir ou matar pessoas, conseqüência dos atos da vítima. “Quem não reagiu está vivo”. Vivo e sem hematomas – mas não parecem muito confortáveis nas suas vidas medíocres e vazias, vide o tanto se enraivecem por nada.

A Grande Imprensa faz sua parte: vende posicionamento travestido de notícia – vende ideologia como se fosse verdade, para usar termos mais à esquerda. Baderneiros, arruaceiros, vândalos. Quem muito precisa de adjetivos é porque tem algo a esconder da realidade, se apresentada crua à interpretação dos sujeitos – a liberdade é da imprensa, não do espectador, temido se puder pensar e criar seus próprios juízos (e deixar de ser mero espectador para se tornar sujeito ativo).

O motivo oficioso é o aumento de vinte centavos na passagem do transporte público. O Movimento Passe Livre reivindica além, o direito constitucional de ir e vir, negado (ou ao menos restringido) a quem não tem condições financeiras de bancar o lucro dos empresários do setor – há tempos costumo dizer que há dois modelos de transporte público no mundo: o que serve o público e o que se serve do público; o Brasil claramente segue o segundo.

Há, contudo, alguma outra questão de fundo, que não tem a ver com passagem de ônibus e metrô. Se fosse só isso, não há como negar um certo exagero dos manifestantes – ainda que fácil de compreender. Definitivamente, não é só isso. Se eram cem manifestantes subindo a Brigadeiro, havia no mínimo cinqüenta e quatro policiais – um para cada dois. Certamente já havia mais policiais lá, já que a Paulista estava tomada de militares. Vivemos em uma sociedade com direito ao voto. Daí para uma democracia, a distância é grande. Nossa representatividade é torta e pouco representativa; nossa polícia ainda é militar, nosso judiciário ainda é ineficiente, nossa imprensa age em conluio obsceno com os donos do poder – estatal e financeiro. Manifestações só são toleradas se dentro do Fakebook ou da cabine de voto. Quando afrontam de fato o poder – e quem domina a rua detém o poder, isso é sabido por todo governante –, há o aparato repressor e ideológico armado e pronto para atacar. E esse aparato é desproporcional, exagerado para uma democracia. A democracia pressupõe, exige a dissensão – negá-la como faz a Grande Imprensa, como faz o Estado, é negar a própria democracia.

Há algo além no grito desses manifestantes e na resposta violenta do Estado. Estamos numa situação social confortável, desemprego baixo, salários numa média boa para os padrões tupiniquins. Aqueles que estão protestando não se direcionam contra um bode-expiatório, eleito Judas da vez dos direitos humanos, como Malafaia ou Feliciano. Não reclamam de não terem emprego, como os Ni-Ni da Espanha. Não saqueiam lojas em busca de bens de consumo anunciados como as chaves da felicidade e negados a seguir, como em Londres. Não gritam contra um ditador, como nos países árabes – afinal, temos o sufrágio universal que garante o verniz democrático à nossa sociedade. Não é imitação do que está acontecendo no estrangeiro – sair de casa na chuva e no frio para apanhar da polícia militar não é a mesma coisa que ir passear no shopping; queimar ônibus não equivale a lutar boxe na academia. Não é reivindicação kitsch de uma aura libertária a la 1968, como em manifestações universitárias irrelevantes. Tampouco são organizados para desestabilizar a ordem: os manifestantes não são parte de um pretenso grupo bolchevique ou de criminosos, de modo que não faz sentido a presença exagerada da polícia militar. Ela serve como provocação – justo de quem deveria zelar pela ordem – e tem o efeito esperado: a reação inflamada de alguns manifestantes, que justificaria a pancadaria em todos.

O que os donos do poder defendem? Sabe-se lá quantos segredos de Estado não estão nas gavetas das empresas. É fácil, contudo, saber de quem se defendem.

O que os manifestantes reivindicam? Contra o que, contra quem gritam? Não me parece haver um único motivo – o que ouso afirmar é que não tem nada a ver com vinte centavos.

São Paulo 12 de junho de 2013.