sábado, 15 de junho de 2013

Premeditação na violência policial e quatro erros de avaliação dos donos do poder

Leio na Grande Imprensa que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, responsável último pelos atos da polícia militar sob suas ordens “afirmou que atos abusivos de policiais serão investigados. 'Não temos nenhum compromisso com o erro. A polícia tem uma corregedoria. Então será apurado qualquer abuso que tenha sido cometido. A polícia trabalha. Exceção, se houve um abuso isolado, isso vai ser rigorosamente apurado'”.

Sobre abuso das nossas polícias, isso merece um texto só para o tema. Qualquer investigação séria vai mostrar que não houve excesso dos abusos por parte da polícia militar paulista nas manifestações do dia 13 de junho – e não falo isso com ironia. O que houve de excepcional foi a aplicação no centro rico da cidade mais rica do país do mudos operandi que essa polícia utiliza nas franjas pobres da cidade – em Capão, em São Miguel, em outras regiões “esquecidas”. Foi a atuação banal e costumaz, feita em doses homeopáticas e diárias contra negros, pardos e pobres, concentrada em uma dose de choque contra a classe média branca. Nada de extraordinário, apenas a democratização da repressão.

A polícia militar, por mais que tente aparentar o contrário, não é burra. Toda as ações contra os manifestantes, no dia 13 de junho, dão a clara impressão de premeditação. O que parece ter havido por parte da cúpula da polícia militar e do governo foram alguns erros de avaliação na hora de montá-la.

Dizem as autoridades que havia um pacto com os manifestantes que foi desrespeitado. As autoridades sabem que há uma diferença grande entre esse tipo de movimento – quase espontâneo – e passeatas organizadas por sindicatos e outros órgãos para-estatais de controle da ordem. As tais lideranças o são porque haviam feito a chamada para o ato, não porque têm qualquer ascendência sobre supostos subordinados. Esse tipo de pacto, se feito, teve o único intuito de servir de álibi para a ação da polícia.

Polícia que demorou para agir, a crer na versão oficial – e não porque fosse possível qualquer negociação – já que os manifestantes não deveriam parar a Consolação. Como comentei no relato do que vi na manifestação [http://j.mp/cG19DMp]: eu estava na linha de frente quando o choque interveio. Antes dele, no máximo uma dúzia de policiais militares fazia a contenção, na altura da Consolação com a Maria Antônia e Caio Prado. Uma dúzia de policiais militares para fazer a contenção de milhares de manifestantes é uma provocação, é um convite a “passem por cima, por obséquio”. Aconteceu que os manifestantes não fizeram esse favor. Foram longos e tensos minutos em que os manifestantes ficaram parados, gritando “Vamos pra Paulista”, mas sem avançarem de fato. Mesmo sem justificativa, o choque resolveu agir – “ataque preventivo”, como poderiam justificar depois, com ajuda de Datenas da vida. Oficialmente, a ordem era impedir que bloqueassem a Paulista – e conseguiram: quem a bloqueou foi a polícia, como seguiam interditando o centro da cidade, mesmo com os manifestantes bem longe.

Pela violência inaugural da polícia militar, pode-se supor que o plano era não apenas dispersar os manifestantes, como esperava-se que boa parte deles desistisse e fosse embora – restando alguns mais “valentes” para tomar porrada sob a justificativa de vândalos. Realmente, ouvi algumas pessoas, logo que a polícia começou a vandalizar, que iriam embora. No Fakebook uma amiga se desculpava por ter feito o mesmo: justificou que temia pela sua segurança. A grande maioria, contudo, permaneceu. Primeiro erro de avaliação das autoridades.

Por falar em vândalos, um parágrafo à parte. Sempre foi essa a justificativa para deslegitimar todo o movimento. Do outro lado, tentava-se argumentar que era uma meia dúzia que se aproveitava. Até a intervenção da polícia, era impossível qualquer ato do tipo, porque quem ousasse vandalizar qualquer coisa, seria impedido pelos demais manifestantes. Depois da polícia agir... horas há que é necessário: queimar lixo no meio da rua vira necessidade: é tempo que se ganha para fugir da truculência. O grosso da “depredação” dos bens públicos e privados, contudo, não viria daí, e sim de vidros de estações e bancos quebrados. Começa que ação contra coisas é bem diferente do que contra pessoas – um vidro troca-se, um olho, não. E é de se questionar o quanto isso é feito por manifestantes mais exaltados. A polícia já havia avisado que poria policiais à paisana na manifestação – oficialmente para filmar e identificar esses “arruaceiros”. Contudo, quando filmam um policial fardado quebrando o vidro da própria viatura – não fosse a gravação e depois seria apresentada como outra prova do vandalismo que justificaria a ação violenta da polícia –, não é preciso nenhuma teoria conspiratória para saber que os policiais à paisana não estão para filmar, mas para exaltar ânimos, quebrar agências e estações – no mínimo metade é ação deles –, tacar a solitária pedra que vai justificar o avanço animalesco da polícia (este último exemplo não me refiro à manifestação do dia 13).

O terceiro erro de avaliação foi que a Grande Imprensa apoiaria a ação incondicionalmente – em editoriais, os mui democráticos Folha e Estadão já haviam pedido ações mais enérgicas contra os manifestantes. O problema é que a Grande Imprensa notou que não poderia distorcer os fatos o quanto precisaria, e que a população começava a formar uma opinião independente sobre as ações da polícia. A enquete no programa do Datena, perguntando se o espectador concordava com aquele tipo de protesto, e com ampla maioria do sim era uma mostra ao vivo disso (depois a pergunta foi alterada para “protesto com baderna”). Bater frontalmente com os espectadores seria admitir sua parcialidade, sua mentira – tiveram que recuar, em nome do que chamam de “credibilidade”. Segundo erro de avaliação foi da mídia, ao achar que o espectador seria refém da sua versão, custasse o que custasse.

A pancadaria democrática do início do protesto foi abusada até o final e depois dele. Como também comentei em meu relato, a Paulista já fluía normalmente e do outro lado da rua, vi três homens serem atacados por três bombas da polícia – qual a necessidade de dispersar uma “multidão” de três pessoas? O objetivo dos “excessos” mesmo sem a menor justificativa parece ser amedrontar os manifestantes para o próximo ato – não funcionou agora, mas no próximo... É esse o caso dos tiros em jornalistas, mais no fim do protesto. Segundo a jornalista da Folha – que tem a versão mais plausível – o policial mirou nela e atirou: estava num estacionamento, não havia manifestação, nem manifestante por perto. Curiosamente no olho – único lugar que uma bala de borracha pode causar um estrago mais grave à pessoa. Curiosamente, não houve manifestantes com esse azar, e sim profissionais da imprensa: um manifestante poderia ser justificado como “efeito colateral” dos confrontos, que não havia essa intenção, que tivera azar – e a versão da polícia militar e do Estado predominaria. Contra alguém da imprensa, a versão da polícia fica sob suspeição – inclusive porque o tiro foi dado quando o clima estava mais ameno, numa rua que em nenhum momento foi um dos principais campos de batalha. Foi, na verdade, um recado para os manifestantes que pretendem ir ao próximo ato, reforçado pelos discursos das autoridades, do governador Geraldo Alckmin, inclusive: quem aparecer segunda vai se machucar, vai perder o olho, vai estar com a vida em risco – afinal, “quem não reagiu está vivo”, e isso vale pra “bandido” quanto pra “baderneiro”.

Arrisco afirmar: esse é o quarto erro de avaliação das autoridades: segunda-feira poucos, pouquíssimos vão ficar em casa por medo do que aconteceu no dia 13.


São Paulo, 15 de junho de 2013.

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