segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Olivia V. (retratos feitos de memórias)

Fora assessora de juiz por cinco anos. Concursada em cargo de terceiro grau, comissionada – o desejo de tantos nos dias de hoje. Não consegui saber se tinha sido o desejo dela também, ou apenas estava lá por desejo e pressão do pai, e para seguir o “fluxo normal da vida” pelo melhor caminho – presume-se. Diz que se sentia mal naquele cargo, se dando conta a cada dia mais de que o sistema judiciário servia principalmente para ferrar quem já estava ferrado – ela atuava como homologadora do nosso absurdo status quo. Aproveitou a transferência do companheiro (e seu apoio) para largar tudo e estudar atuação – estava perto dos trinta anos quando fez isso. “Tinha dias que chegava, via aquela pilha de processos e chorava. Eu me perguntava o que estava fazendo da minha vida”. Olhando para ela era difícil acreditar ela em tal situação: hoje parecia uma pessoa tão alegre, tão leve. Quando falava sério, ora tinha um olhar penetrante sem ser duro, ora olhava como se mirasse no tempo, e não no espaço. Quando sorria, seus olhos eram tão expressivos quanto seu sorriso – ela toda encantadora nessas horas. Sua beleza era feita também desse transpirar leveza. Imaginei ela em roupa social, trancada num escritório, uma peça na burocracia judiciária, a comparei encenando a gata da cena que montamos. Mesmo que não consiga ser atriz de sucesso, não consiga chegar perto do salário que teria se seguisse como funcionária do judiciário, sinto que fazia mesmo sentido ela chorar aquela época.

São Paulo, 28 de outubro de 2013.

São Paulo, 25 de outubro, 19h

Há quem ache que muitos policiais na rua é sinônimo de segurança. Para quem conhece a cidade além da televisão e do preconceito aprendido com seus âncoras – os pitbulls policiarescos ou os pseudo-sérios que falam também de economia –, era possível sentir, nesta sexta, a tensão nos grupos de cinco, seis, sete policiais parados em cada esquina do centro de São Paulo. São sete horas da noite, ouvi no rádio, pela manhã, que o Movimento Passe Livre organizava um ato no centro de São Paulo – depois de uma série de protestos na periferia. Partidários das táticas black blocs, é claro, eram esperados. Estou no cruzamento da Ipiranga com a Barão de Rio Branco, o sinal para pedestres pisca. Resolvo esperar. Um homem termina de atravessar a primeira metade da avenida Ipiranga. Xinga, discute com um motorista que havia parado em cima da faixa. É um homem moreno, claramente de classe baixa – não dá tanta impressão de morador de rua (ou de calçada, como alguns preferem ser chamados), mas não surpreenderia se fosse. O sinal para carros novamente fecha, o para pedestres abre. Um último apressado fura o sinal com seu Nissan novo, quase atropela o homem, que xinga o condutor não sei em quais termos – bem provável que se referia à mãe do motorista, que pela sua pressa, ele estava indo buscar em alguma casa de má fama para as famílias de bem. O carro é freado bruscamente, a luz de ré se acende, e o motorista parte para cima do homem na faixa, que se desvia do automóvel. Há um grupo de seis policiais na esquina para a qual se dirige o homem. Dois saem em direção à rua. Penso com certa alegria que a polícia fará sua parte e o ogro ao volante, no mínimo, escutará qualquer coisa. O carro foge, mas nem precisava. Os policiais se aproximam do pedestre, um deles dedo em riste. “Está querendo arrumar encrenca, é?”, “O cara tentou me atropelar”, “Você já vinha arrumando confusão desde a outra faixa, que nós vimos”. Me afastei, a discussão continuou. A polícia fazia seu papel, cumpria sua tarefa: mantinha a ordem: reforçava o comportamento do motorista, fazia o cidadão respeitar a vaca sagrada brasileira, e ainda mostrava a ele que errado no Brasil é atentar contra o patrimônio, não contra a pessoa. Porque assim como quebrar banco (no sentido de umas vidraças de empresas que lucram bilhões, e não no de causar prejuízos aos cofres públicos por fraudes ou má-gestão) é coisa de bandido, o que autoriza a polícia a atirar (que sejam balas pretensamente não-letais, na verdade, apenas menos letais), usar o carro como arma para tentar ferir alguém não é problema: crime no Brasil é ser pobre e ainda querer atrapalhar o tráfego.

São Paulo, 25-28 de outubro de 2013.

domingo, 27 de outubro de 2013

Não te peço respostas [memórias feitas de saudades]

Páro em frente a casa número 128: havia me arrastado até lá desde a estação de metrô, querendo desistir, voltar, seguir vendo coincidências e sonhando o sonho impossível de te encontrar de novo – apenas esse e poder voar como um pássaro são meus sonhos impossíveis. Eu sabia que ali encontraria apenas a não-presença – como ela se apresentaria? Observo a garagem vazia de carro e cheia de plantas (São Paulo seria uma cidade melhor se mais casas fossem assim): as plantas estão bem cuidadas. Lembro dos grandes sacos de lixos que se acumulavam ali nos dias seguintes às não-festas (elogios ao tédio?). Eu trago um pacote do café que gosto na mochila e lágrimas nos olhos. Fico ali parado um tempo, me falta coragem: tenho medo do que sei que não encontrarei. Passa um carro que me tira desse torpor, olho para o céu cinzento (aqueles dias foram de sol), respiro fundo. Havia lembrado no dia anterior das suas férias, em abril, passadas em minha casa boa parte dela, já que nem a viagem para Buenos Aires nem a para Pato Branco aconteceram – esta por causa da minha busca por alguém pro apartamento. Seria legal, seria bom, mas não precisávamos ter tanta pressa: não fosse agora poderia ser num feriado, no fim de ano, em algum fim de semana, nas suas próximas férias. Tenho vontade de me perguntar e se... Me calo – não há futuro do pretérito. Há o presente, e preciso aceitá-lo – com suas dores e suas perdas. Toco a campainha. Adentro sua casa, uma sensação estranha, sei que você não chegará logo mais, porque “saiu para ir ao mercado” (e o ingênuo aqui acreditou nessa história). Sinto o presente bastante presente, fico aliviado com essa sensação. Há a recordação, há a dor (a dor de todos é a mesma), há as formas de tentar contorná-la, há a vida para levar (cada um com a sua). Seu irmão está acompanhado da namoradinha dele (o diminutivo pelo tipo físico dela). Seu pai e os jogos da tarde, do São Paulo e do Porto. Sua mãe conta dos pequenos planos para os dias seguintes – o banal, mas que nessas horas é de grande valor. Sua irmã não está: é dia de Enem. Djalma chegaria mais tarde. E você? E você? No “QGinho”, diferente mas ainda com sua marca, reparo na sua biblioteca. Uma bela biblioteca, cheia de títulos interessantes. Me dou conta, surpreso, de que nunca havia prestado muito atenção nela: sua companhia era sempre muito mais interessante. Encontro os dois livros que havia te emprestado. Um deles, Retratos japoneses, do Ronald Richie, tem sua assinatura na contracapa e a data da leitura: agosto de 2013. Deve ter sido último livro que você leu. Novas lágrimas, me seguro. Há, num canto, um monte de cadernos e papéis. Sigo com meu plano de lançar um livro seu – havíamos conversado sobre isso algumas vezes, lembra? Sabia que você escrevia bem, não imaginava que escrevesse tanto – há ainda os arquivos no computador, emails enviados. As cartas foram queimadas. Sua mãe me mostra um livrinho que você escreveu quando tinha oito ou nove anos. Aqui em casa tenho um outro livrinho, de quando você tinha uns quatorze. Somos parecidos em nossos cadernos: anotações de aulas trechos de livros escritos autorais tudo misturado e desorganizado. Leio um poema que me agrada muito, será mesmo seu? Nunca me mostrou verso algum. “Olírico”, título de um texto que enviou para a segunda Casuística (foi por causa da revista que nos conhecemos, em 2009), é recorrente em suas anotações. Cartas escritas e não enviadas também. Há muitas para mim. Como seus emails, não sei bem o que responder. Seus emails você dizia que eu só devia responder se sentisse à vontade ou necessidade – eu seguiria sendo seu interlocutor. Em geral eu preferia comentá-los pessoalmente. Vejo que faço o mesmo contigo com estas minhas crônicas: bem gostaria, mas não te peço resposta – você segue sendo minha interlocutora assim mesmo. Não apenas minha. Sim, você faz falta, porém ainda é presente, e somos muitos os que seguimos dialogando com você – mesmo sem respostas.

São Paulo, 27 de outubro de 2013.

para Patrícia Misson, de quem não peço respostas (por mais que gostaria).

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Na fila do mercado, numa madrugada de domingo

Oxe, nunca tinha visto, me respondeu a caixa quando perguntei se era comum aquele tipo de cena. Esses esqueitistas, resmungava um homem na fila, no alto de sua sabedoria preconceituosa e senso comum, ignorando que não havia ninguém com prancha ali. Foi a conversa de momento pelos cinco, talvez dez minutos que me demorei ali. Pouco antes havia saído um rapaz, puxado – finalmente – pela sua namorada, aos berros: covardes, dois contra um! Vem só um! Vem só um! Se fazia vítima agora, o macho alfa, que instantes atrás chamava os dois pra briga. Eu entrara na fila de pequenas compras – até vinte itens. Na minha frente um rapaz de uns vinte anos, um saco de pão e uma bandeja de frios. Aparentemente, tudo normal, cada um pensativo com sua compra e na semana por vir. Foi quando o rapaz na sua frente se vira e pergunta que ele está querendo arranjar confusão. Estou aqui na boa, quieto. O da frente insiste, mostrando toda sua testosterona, ignorando os apelos da namorada para que parasse: cadê teu amiguinho? Pouco depois chega o amigo, alargador na orelha, várias tatuagens (como o macho alfa): que foi, ainda enchendo o nosso saco? Nenhum bombado, todos com seus um metro e setenta. Algumas trocas de adjetivos e o de alargador manda calar a boca: vem fazer eu calar. Desafia o macho enquanto empurra o primeiro rapaz, que já havia avisado pra não ralar nele. O de alargador aceita o convite e os dois se abraçam aos gritos de pára da namorada. O primeiro rapaz vê uma garrafa de vodca, pensa rápido e não titubeia: logo voava pelo ar o líquido amarelado ao som de vidro quebrado. Algumas pessoas aparecem para separar: não tem segurança aqui? O segurança chega depois, quando o macho alfa já havia saído com a namorada, se fazendo de vítima. No chão, junto com a vodca, sangue. O primeiro rapaz comenta, indignado, com o segurança: eu tava de boa, ele veio encher, e olha o que ele fez eu fazer com meu brother: reparo no rosto do rapaz de alargador, o sangue jorra do supercílio aberto pela garrafada do amigo

Morais da história: se chamar dois pra briga não os acuse de covarde porque aceitaram o convite; e quando for brigar, só use armas se souber usá-las: você pode acertar seu amiguinho.

São Paulo, 14 de outubro de 2013.