sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Um rato?

Há cerca de um mês, mais ou menos, apareceu um rato na casa dos meus pais, na chamada "parte de baixo", (apesar da casa ser de um andar no nível da rua, há um andar que acompanha o desnível do terreno), que dá para o pátio dos fundos. E por uma semana o roedor deu um baile em meus estimados progenitores: não o encontravam, e não adiantava pôr ratoeira, isca, o que fosse, que o bicho não ia. Ponto alto, que até hoje deixa meu pai vermelho de indignação ao lembrar da historia, foi a vez que os dois desceram ver se o dito cujo tinha sido pego. Nada. Ao subirem de volta, qual não foi a surpresa ao verem rastros dele, que se aproveitara da porta aberta para subir ao andar de cima. No fim das contas, ele desceu, assustou minha mãe uma tarde, ao pular sobre ela, quando ela abriu uma gaveta, e desapareceu. Foi influenciado por essa história que meu irmão acordou hoje, pouco antes das seis da manhã. Ele dormia no quartinho que há no andar de baixo (período de visitas de parentes, sabe como é). Perto da referida hora, escutou barulhos vindos da sala de baixo, que fica ao  lado do quarto. "Putz, deve ser o rato". Pensou. Apurou um pouco os ouvidos, ainda muito sonado. Notou que o barulho devia ser na janela. "Deve estar tentando escalar a porta de vidro da sala pra sair da casa, e não esta conseguindo". Pôs os óculos, e foi ver o tal do rato. Por via das duvidas, saiu vagarosamente do quarto, parou na porta: viu que sua mochila, no sofá, próximo à porta, se mexia. "Credo! O rato esta arrastando minha mochila", raciocinou entre o perplexo, o alarmado e o sonado. Foi quando a mochila rolou e caiu. O que meu irmão viu, então, não foi um rato, mas o braço de um homem, que por um vidro quebrado mexia na bolsa. "Sai daqui agora", gritou a plenos pulmões, em impressionantes decibéis, que soaram bem mais altos pelo silêncio que fazia ao redor. Antes do segundo berro eu já tinha levantado da cama e me encaminhava para ajudar meu irmão, sei lá no que. As curucacas agitadas, a cachorra latindo ao longe (a mais que prudente distância da casa e do ladrão), meu pai tentando fazê-la calar, para não incomodar os vizinhos, e o berro do meu irmão foram o suficiente para eu saber que havia algo errado (meus pais levaram um tempo mais). Encontrei meu irmão na escada, "Chama a polícia", e explicou que um braço tentara roubar suas coisas, e que o homem - dono do tal braço - saíra correndo depois dos seus sonoros berros (inclusive instigando a covarde cachorra a pegá-lo). O ladrão fugiu, perseguido por um transeunte que passava e ouvira os chamados. Depois, esse homem - que lamentou não ter uma arma na hora -, me encontrou e contou sua versão dos fatos. A vizinha do lado também comentou que ouvira os gritos. Por todo o dia foi nosso grande assunto. Me lembrei de um conto do Mário de Andrade, e notei o quanto não há de evento social numa tentativa de roubo na madrugada. 

Pato Branco, 27 de dezembro de 2013.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Sob os mesmos tetos [memórias feitas de saudades]

Havíamos combinado de você morar comigo em agosto. Você tinha planos de sair da casa dos pais há um tempo. Essa mudança te gerava sentimentos ambíguos: queria e não queria. Um dos pontos era que temia que não desse certo e fosse necessário voltar para a casa antiga: não que imaginasse que teus pais não te aceitariam sem problemas: era uma questão sua consigo própria esse possível passo atrás. Outro ponto que atrapalhava eram as questões burocráticas para fechar um negócio. E no início do ano, quando buscava com mais afinco a casa, e achara algumas que interessavam e que a burocracia soava menos complicada, um conhecido que se dispusera a morar contigo e Djalma punha empecilhos aos imóveis encontrados. E era porque esse conhecido iria sair do apartamento em que eu morava que você entraria em agosto, para ficar um mês - menos talvez, a depender de quando eu me mudasse -, para testar na prática se o que te mobilizava era mesmo morar sozinha. Nos enrolamos em fechar o combinado, agosto chegou, e você continuou freqüentando minha casa sem morar nela (mas agora com as chaves e entrada livre, de qualquer modo, já que não havia outras pessoas para nos constranger na liberdade que tínhamos um com o outro). Em meados de agosto, combinávamos de você e seu pai pintarem meu apartamento para a devolução ao proprietário. Eu tinha pressa, nos enrolamos novamente, e você dizia que talvez fosse melhor eu procurar um pintor profissional. Para quarta-feira, dia vinte e oito, meus planos para a manhã eram depositar minha dissertação (seu nome era o primeiro dos agradecimentos, quando eu enunciava alguns amigos), e fazer uma cópia da chave da minha nova casa para você. Meu receio era se você seguiria me freqüentando com a mesma freqüência, diante do meu desejo de não permitir que se fumasse dentro de casa, nem na janela. Creio que continuaria a vir, sim. E creio também que logo eu abriria a exceção para que você fumasse no telhado - e você iria se divertir com esse novo lugar, se sentindo uma gata que observa São Paulo do alto. Você seguiria fazendo a piada de que não respeitaria minha regra de tirar os sapatos para entrar - "que isso já é frescura demais, Dalmoro", falaria, a cabeça meio inclinada para baixo, uma mão para o alto, como a repelir qualquer coisa, enquanto descançaria seu tênis sem se incomodar de fato. Novamente não aconteceu: nos enrolamos, porém desta vez nas tramas da vida, que nos põe na frente pessoas que parece que só chegamos a conhecer por milatre (a insustentável leveza do ser), que nos faz seguir rumos inimagináveis até nos pormos em marcha, e que, no fim, nos apresenta a única certeza da vida com atroz força e precipitação. Lembrei disso porque sonhei contigo novamente. Não lembro se te via ou não, mas você estava presente. Combinávamos de dividir apartamento, eu você e um conhecido da escola de teatro - e não por um mês, mas por tempo indefinido. Ao chegarmos ao apartamento novo (que parecia meu velho) com nossas malas (o que precisamos e temos de valioso cabe em uma mala ou duas e na companhia que está conosco, isso basta para preencher o apartamento nu), eu me dava conta de que não havíamos conversado sobre faxina, barulho, cigarro. Fiquei super preocupado: você aceitaria? Não fazia sentido pôr a amizade em risco dividindo apartamento, mas era tarde. Acordei nesse ponto do sonho, para fechar a porta a uma amiga que dormia em minha casa, na cama-sofá que você tantas vezes dormiu. Contei-lhe meu sonho e então me dei conta de que minha preocupação era exagerada: você já mora comigo há muito tempo e nossa amizade nunca correu perigo por isso.

Para Patrícia Misson. Moradora especial das minhas casas.

São Paulo, 19 de dezembro de 2013.

As complexas dialéticas das relações íntimas

Parece que este fim de ano é moda crise em relacionamentos. Na verdade, pensando um pouco, parece que foi a tônica de todo o segundo semestre – ao menos entre meus amigos e conhecidos. E eu mesmo ando nas minhas crises. Duas amigas que haviam começado namoros há alguns meses vieram ter comigo, esta semana, conversa breve sobre suas desavenças amorosas. Uma iria encontrar o namorado na troca de turno, depois de uma semana sem se falarem: de um lado, reclamações de sufocamento, do outro, falta de atenção. Apelar ao tempo é sempre uma alternativa nessas horas, porém o tempo parece desfazer as esperanças como se desfaz dos minutos que passam com os ponteiros – com minha amiga não foi diferente. A outra recém tinha encontrado a ex, com quem havia recém acabado: estavam juntos há poucos meses, e ela sentia resistência da companheira em trazê-la para dentro de sua vida: o golpe final foi um jantar organizada por ela com os amigos, para o qual não foi chamada, sob alegação de falta de espaço na casa. Na conversa tida há pouco, a companheira dizia que não era questão de excluir, mas de garantir alguns de seus espaços – acontece que nunca tenho espaço com os amigos dela, parece que tem vergonha de mim, comentou minha amiga. Uma frase dela me chamou a atenção (e me motivou nesta crônica): houve um momento em que reclamou que estava cansada de começar uma relação e se ver tendo que pedir pra pessoa mudar: achava que mudanças acontecidas por causa dela não seriam sinceras, eram só para agradá-la e acumulariam ressentimentos para o futuro: queria alguém já pronto, concluiu. Acha que já chegou perto de alguém assim, perguntei. Não, respondeu depois de pensar brevemente. E por que insistir nesse desejo impossível do Outro? Como se não me conhecesse, falou que eu não precisava levar tão a sério as palavras dela. O dia que achar alguém perfeito, desconfie: ou se trata de uma charlatã, que modula seus atos conforme as expectativas do outro, ou você não está observando a pessoa realmente, e sim suas projeções. Lembrei-a então que mudança é pressuposto básico da vida – e que até os mortos mudam. Ela mesma mudara desde que entrara nesse relacionamento: se mostrava mais madura, mais séria, mais ponderada – apesar de geralmente manter sua tônica de oscilações extremas, ou oito ou oitenta, como parecia ser o caso agora. A outra pessoa certamente devia ter mudado desde que começaram a namorar: creio ser impossível um contato íntimo com o Outro que não acarrete alguma dissensão consigo próprio: o Outro nessas horas se torna nosso ponto de estruturação e, ao mesmo tempo, de desestruturação. Uma dialética complicada, complexa, por isso tão rica e por isso sujeita a tantas dores. Por que seria falso uma mudança motivada por uma fala sua, questionei. Porque não foi espontânea, ela não mudaria porque quis, mas porque eu pedi. E acha que as mudanças espontâneas da outra pessoa não foram respondendo a expressões suas – corporais, faciais, sei lá quais mais? Ela deu de ombros: é diferente. Sugeri que ela tomasse um ar – dois dias, se tanto –, e chamasse novamente para uma conversa, aceitando que mudanças – pedidas implícita ou explicitamente – são sinceras, desde que não atinjam pontos muito estruturais da pessoa – parecia ser esse o caso da sua companheira. Ela falou que ia pensar, mas me alertou que havia algo que eu insistia em não saber: há momentos que os sentimentos não seguem meandros racionais.  

 São Paulo, 19 de dezembro de 2013.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Marginais, bárbaros, selvagens nos estádios: e nós?

O assunto é o da moda, e minha abordagem aqui, eu sei, não é nada original; mesmo assim escrevo sobre o evento entre atleticanos e vascaínos, na última rodada do campeonato nacional ludopédico. As imagens de brigões apanhando covardemente (porque não conseguiram bater covardemente) apenas coroou a face tida como aberração do esporte mais popular do planeta no país do futebol. Vale lembrar, contudo, que o conflito entre torcedores não é novidade no esporte, como não foi novidade neste campeonato. 

Teimando em tratar como excepcional o que é corriqueiro, em negar que isso é parte do esporte e reflexo da sociedade (o enorme contingente de policiais destacado para o estádio e arredores em dia de jogo apenas corrobora a violência inerente e não ritual do futebol-show), a imprensa arrota, verdadeiramente horrorizada e inconscientemente satisfeita (afinal, é notícia, é capa do jornal, é motivo fácil pra colunas), uma série de pretensos desqualificativos desse Outro, reflexo maldito de nós mesmos. De bandidos e marginais a bárbaros e selvagens, o espectro de adjetivos é amplo, mas me restrinjo a um breve comentário sobre esses quatro, muito utilizados.

Sobre bandidos, convém sempre lembrar que doentes e criminosos são crias da própria sociedade onde vivem – atiradores de escolas nos EUA, suicidas em universidades brasileiras de ponta, agressores sem motivos e policiais sádicos ao redor do mundo. Marginais, como o próprio nome diz, é porque há um núcleo do qual alguns – em geral muitos – foram excluídos. Àqueles que acusam o Outro de marginal sobra sempre auto-incriminações implícitas: ou crêem que os tais marginais se põem à margem por opção? Entre viagens pra Disney, baladas caras e carro importado, escolheram tráfico de drogas ou a vida medíocre em escritórios temperada com brigas em estádios.

É a mesma função de auto-comiseração, porém num plano mais ontológico e menos social, o uso do ajetivo bárbaro: vem da tradição greco-romana, quando os homens ainda não eram todos iguais, tratar o diferente não como um Outro, mas como uma sub-raça inferior. Se o Outro nos devolve nosso reflexo e nos obriga a repensar nossa condição no mundo, o bárbaro apenas serve para provar nossa superioridade narcísica frente sua ignorância e rudeza.

Por fim, o adjetivo selvagem, que tanto me agride: um pouco menos de etnocentrismo e positivismo nos cairia bem. Os selvagens, se guerreavam o faziam com fins mais nobres do que a violência gratuita que foi filmada em Joinville: a violência podia ser real, mas era também ritual, o adversário era um Outro digno de respeito – a tal ponto que o ritual de antropofagia significava incorporar as suas qualidades. O que se vê hoje em dia – nos estádios e fora deles, que o diga a internet – é o adversário como inimigo, um ser ignóbil (pelo elevado motivo de não concordar conosco) que merece ser destruído e aniquilado. Não é alguém que respeitamos e invejamos suas qualidades, é alguém que pequeno e que nos perturba por nos apresentar nossa pequenez. A violência gratuita dos estádios não é ritual nem auto-reflexiva, mas é um reflexo de nossa sociedade, em que as pessoas são reduzidas a um insignificante e facilmente substituível parafuso no sistema que tem por obrigação gerar lucro e crescimento econômico. Não é selvageria, é hiper-civilização.

E então abundam propostas de como conter tal violência: aumento do efetivo, fim das torcidas, prisão de torcedores, torcida única, jogo em estádio vazio. A cada proposta eu ouço a afirmação da falência de uma sociedade, de uma cultura em que um jogador de futebol mediano ganha mais do que um escritor ou um intelectual de ponta. E tudo isso é normal, porque violento são os outros.

São Paulo, 10 de dezembro de 2013.